Prólogo
É dito que o Basab é uma bússola que aponta para todas as direções. Também é dito que isso faz com que na verdade não aponte para nenhuma delas, e apenas torne seu portador mais um perdido no mundo. O que se sabe realmente é que o livro foi escrito há mais de 300 anos por um andarilho inspirado pelos espíritos, e que suas páginas são abarrotadas de fórmulas tal qual um grimório, e todas elas ensinam os segredos mais bem guardados pelos próprios deuses. Ou pelo menos é isso que se afirma, já que até hoje ninguém foi capaz de ler uma página sequer além de seu prefácio, escrito num bez-shinal rebuscado, enquanto todo o restante jaz num idioma desconhecido. Nunca copiado, é considerado como um dos tesouros sagrados de Daguna, e mantido às sete chaves no Grande Observatório de Irashir.
— Pamiat Sagraha, bibliotecária do Santuário das Potestades.
I - Os Numii em Audrara
- Aproximem-se, filhos da Joia de Daguna! Enfim chegamos, mais uma vez, à sua iluminada cidade, real e sagrada! Que as flores desabrochem com nossa música celestial, e que seu perfume seja sentido até nas terras secas do outro lado do mar! Abençoados sejam os audrar por nos receber de braços abertos em tempos tão negros!
O aedo poderia continuar declamando elogios a Audrara por horas a fio; sua voz parecia encantar os pobres que se amontoavam em torno dos Numii – recém-chegados na capital – e os admiravam como se as potestades tivessem encarnado diante de seus olhos. De fato, era raro o dia em que o povo mais pobre da cidade tinha chance de ver algo diferente, ainda mais tão exuberante quanto aqueles artistas andarilhos, conhecidos nos quatro cantos da nação. Eram pouco mais que duas dúzias de homens e aparentemente viajavam a pé, tendo apenas um carroção puxado por um triceronte, para carregar toda a indumentária e os instrumentos que usavam em suas apresentações.
Não demorou muito e o homem parou de escandir as apresentações do grupo. Em seguida, os numii passaram a correr num grande círculo, para então parar subitamente e iniciar uma dança de movimentos intrincados, rápidos, enquanto todo o grupo se deslocava rua acima, sorrindo e cantando para os que paravam para ver. O aedo seguia tocando um auló; um menino ia por último, puxando o triceronte pelas rédeas junto com todas as parafernálias. O grupo estivera ali um ano antes, também no meio da primavera. Era a época dos festejos do Levante do Séli, quando as águas do rio que passa por Audrara estão mais altas e todo o povo da capital vai às suas margens, prestar oferendas aos espíritos e agradecer pelas bênçãos concedidas nos meses mais frios.
Após terem passado pela parte mais pobre da cidade, os Numii atravessaram os grandes arcos que separam os abastados dos paupérrimos, adentrando a cidade alta de Audrara. Ao contrário das periferias, ali tudo era limpo e organizado: ruas largas, casas altas ostentando suas posses e pessoas andando sem preocupação. O grupo de artistas procurava uma loja, onde encontrariam seu contratante, um velho mercador de livros, famoso na capital e até mesmo fora de suas muralhas.
Mrakan il-Nadrima era como se chamava. Humano, herdara o negócio de seu antigo mestre, um vunyatra de renome que não deixara descendentes. Viúvo e pai de uma mulher adulta, il-Nadrima vive solitário em sua loja-mansão desde que sua filha foi estudar no Grande Observatório de Irashir. Desde então mal fala com ela, ainda que venha visitá-lo de vez em quando, trazendo notícias do seu trabalho e da universidade.
۞
- Todas as casas são iguais! – reclamou um dos numii – Nunca estive aqui antes, mas mesmo que tivesse vindo toda a vida ficaria perdido! – os outros riram.
- Que exagero, Jaref – respondeu um mais velho, olhando em volta – Tudo bem que são bem semelhantes, mas estão longe de serem iguais. Em todo caso, é melhor perguntarmos antes de sairmos batendo em todas as portas.
- Isso porque não são iguais, não é? – retrucou Jaref, irônico.
Dois deles apontaram para uma parede próxima, cheia de cartazes, notas, papeis diversos e iluminuras coladas num mural. O grupo se aproximou de um velho vunyatra com ares de guarda, parado em pé ao lado dos avisos. Alguns encararam os papeis; Jaref e o aedo falaram com o guarda.
- O que procuram na cidade alta, dançarinos? – disse ele.
- É o senhor o leitor de avisos, venerável vunyatra?
Jaref ficava irritado inúmeras vezes com o floreado das palavras do companheiro.
- Não é mais fácil perguntar se ele conhece o homem, Tsarek? – disse, com um cutucão. “E você não sabe ler? Por que não olha pra droga dos avisos de uma vez?”, pensou.
- Quem procuram?
Tsarek pigarreou.
- Viemos a chamado do mercador de livros, o zha-sita Mrakan il-Nadrima.
- Para as festividades do Levante – completou Jaref.
- Seus negócios não me importam – cortou o guarda, que odiava as festas do Levante – mas a casa dele fica além da praça, no segundo beco que conseguem ver daqui – apontou enquanto falava.
۞
A loja de Mrakan era maravilhosa. Havia apenas uma porta de entrada no beco em que ficava, mas tinha janelas grandes e era arejada. Diversas tapeçarias finas pendiam das paredes, exibindo a riqueza do dono. Tsarek, Jaref e o líder do grupo, Enel, entraram no lugar, enquanto os outros numii esperaram na praça próxima, cantando e fazendo truques para quem parasse para ver.
Não demorou até que o próprio il-Nadrima viesse atendê-los, pedindo para acompanhá-lo até os andares superiores, onde teriam privacidade para falar dos negócios. O homem era velho, rechonchudo e se vestia como um príncipe, ostentando aneis e colares de ouro sobre as vestes coloridas.
Fechou a porta assim que entraram no cômodo. O lugar recendia a incenso, e das janelas dava para ver o burburinho da praça: as pessoas indo para lá e para cá graças às festas próximas.
- O velho Sadyapa quem nos falou de você – disse Enel, sem esperar seu anfitrião se sentar.
Mrakan suou frio. O líder dos Numii raramente falava sobre as atividades artísticas do grupo, mas era incisivo quando se tratava das outras atividades.
- O que aquele peleiro disse?
- Que o senhor nunca precisou de nada desse tipo. Que sempre foi o mercador exemplar, honesto e nos conformes. O que eu duvido muito, já que vai contra a natureza dos mercadores.
Os outros dois riram. Il-Nadrima parecia nervoso.
- O que importa é que serão pagos. Metade agora e metade quando me entregarem o que quero.
- Que seria?
- Um livro.
Jaref revirou os olhos. Não sabia ler, não sentia falta alguma, e isso o deixava irritado com o valor excessivo que as pessoas pareciam dar a pergaminhos e volumes de papel rabiscado.
- O senhor vende livros e sei que tem lá seus contatos obscuros, il-Nadrima. Por que precisa que consigamos algo que para você é comum?
- Porque esse – olhou em volta e certificou-se de que ninguém os ouvia – pertence ao Arhat.
(Continua~)