É um conto sobre um personagem que eu usei numa campanha antiga, em que eu tento exercitar um pouco da técnica de narração. Espero que leiam, e comentem, gostando, ou não, do conto. É isso ai, pessoal...
Prólogo:
Eu gosto de visitar tavernas com amigos porque um movimento muito interessante acontece. De anões a gnomos todo ser que bebe um pouco mais – e é escravo de sua moral – costuma soltar a Besta com um pouco de vinho. E isso me é muito útil...
Por isso sei bem o que você quer me servindo esse copo de inebriante néctar, recheado de especiarias. Não, não negue, eu sei pela maneira como você sinaliza ao taberneiro que sirva porções bem generosas para mim. Pela maneira como você, julgando ser muito esperto, joga fora sua cerveja aguada e barata. Sobretudo, pela ansiedade em seus modos, esperando por algo.
Sim, jovem, o que você quer?
Quer saber da minha história?
E o que deseja acendendo essas brasas de um fogo moribundo?Abrindo a ferida cicatrizada? Será que a sua curiosidade vale pelo sofrimento que eu terei? Só para que você saiba os porquês?
Porque mais de uma vez eu clamei aos Deuses para que me dessem consolo. Eles não responderam, pois, para isso, estavam demasiado distante. Clamei, depois, que me dessem vingança. Depois, clamei que me desse o que perdi. Afinal, nós também éramos vítimas, tínhamos filhos e pais, e podíamos amar. Perdemos, porém, tudo. Ah, que seja, ouça, então.
Eu nasci no advento da Era das Guerras de Fogo, no ano que o País das Estrelas foi envolvido na fratricida guerra do Raio da Chuva e da Onda. Ela era assim chamada devido ao brasão dos reis belicosos. Eles cortejavam a magia de meu povo... E, apesar de séculos de neutralidade, nossos anciões – levados pela ambição de alguns – quiseram expandir sua influência e obter mais terras. Mais poder, em suma, e daí o dito: “Contra as Águas Revoltas, surge o Raio que nasce das Estrelas”.
A minha infância em passei na ventura de uma família nobre, rica e feliz. Meu pai era um dos mais bravos capitães, e uma voz respeitada pelo povo. Meu avô era o Guardião dos Planos, o alter ego do próprio Arquimago, e representante da facção moderada. Minha mãe era a princesa dos elfos do Crepúsculo, filha do rei desse povo nortista, descendente do legendário Turudel. Eu, o filho mais velho, herdeiro e – ouso dizer – um grande mago em potencial.
Meu mestre foi o Guardião dos Selos (outro membro do Conselho da Alta Magia, que governava os rumos de nosso povo), o severo e bondoso Rivengil. De sua sabedoria eu me beneficiei, assim como de sua fantástica capacidade de passar a mais complicada das fórmulas cabalísticas com facilidade. Graças a ele muito cedo tomei o manto de Mago-Acólito, o grau mais baixo entre aqueles que tem o título de Mago, um feito considerável dada a minha juventude – eu mal tinha completado vinte anos.
Em meu orgulho eu não me importava muito com os tempos de guerra, e não percebia que meu avô - com sua moderação a favor da paz – perdia muito espaço no conselho. Que meu pai, a testa de seus soldados – a elite dos espadachins de meu povo, que tinham tomado, sozinhos, mais de uma fortaleza e vencido mais de uma batalha – era chamado de covarde e de colaboracionista, pois não matava os soldados adversários que se rendiam. Que os Elfos das Estrelas olhavam com inveja e suspeita para o casamento e a aliança que minha família tinha com nossos primos do norte.
Sim, eu não via nada disso. Estava cego de vaidade, de soberba, como a maioria de meu povo. Só me importava a família e o poder que eu tinha, que não era muito, mas era meu, e o que eu iria ganhar.
Mas não é só isso. Mesmo quando um povo é cego, se seus líderes têm clareza e lucidez o problema pode ser remediado, e nós tínhamos esses líderes, que não quiseram, porém, intervir. Pois a sua cegueira só se rompeu demasiado tarde.
Capítulo I:
Os Elfos das Estrelas são conhecidos pela habilidade com que lidam com as artes. Sua pintura é valorizada mesmo entre os gnomos, sua escultura era admirada nos reinos humanos mais cosmopolitas, sua caligrafia era admirada pelos maiores gramáticos, sua música fazia com que os menestréis julgassem que nada tinham composto de válido.
Os maiores arquitetos sob o orbe dos céus, segundo alguns, são os anões. Se de fato isso é verdade, os elfos deles são pares, com seu estilo fluído que se funde com a natureza. Seus reinos florestais têm casas e palácios dentro das próprias árvores, ou usando ela como parte da estrutura. Não raro um visitante entraria em um salão aos pés de uma sequóia, subiria escadas, e se descobriria em uma inesperada varanda presa à planta.
Uma dos locais legendários e maravilhosos do mundo era, justamente, a capital do País das Estrelas, a cidade de Vianyayia, em uma colina verde; ali a magia tinha sido estudada pela primeira vez, e ali era o coração dos reinos élficos na terra, gêmea da ilha de Rauranán, recordada, agora, apenas em lendas...
Havia sempre música na hora do poente naquela cidade, quando várias pequenas lamparinas da cor de prata e dos jacintos eram acesas, e se cantava, baixinho, pelo sol que morria. Todos os habitantes gostavam de tomar parte naquele ritual, o que nem sempre era possível, especialmente quando se é um mago com um aprendiz impaciente, como era o caso de Rivengil, em seu palacete.
- Meu jovem, você deve aprender que a perícia de um mago não é o grau de destruição que ele causa com um feitiço, ou o realismo de sua ilusão, ou as muitas utilidades de um objeto mágico. É o uso, meu jovem, o uso que ele faz do que aprendeu que irá determinar o quanto ele é poderoso. Um mago que não atentar aos vários elementos de uma situação em que se encontre pode ter uma carreira bem curta. Eu, quando ainda mal tinha recebido o manto de mago enfrentei uma situação assim: Um dragão vermelho vivendo no frio!
- Mas isso é possível, mestre? – O aprendiz parecia surpreso, o que não era de estranhar. Dragões vermelhos eram raros, e habitavam, quase sempre, a cratera de vulcões ativos.
- Mas naturalmente. Deixe que eu lhe conte a história toda. Eu e um grupo de amigos estávamos viajando por um reino que não mais existe, e que fica muito ano norte de nossa terra, em busca de glória, tesouros... E conhecimento sobre certos segredos. Lá soubemos de um dragão que assolava a terra, congelando as parcas colheitas e destruindo aldeias. Decidimos fazer algo a respeito, e fomos ao covil armados com todos os recursos para enfrentar um verme do frio. Qual não foi nossa surpresa, então, quando descobrimos que quem atacava as aldeias eram gênios do frio, respondendo a um dragão de fogo. Perdemos dois companheiros nessa luta, porque não atentamos para vários fatos curiosos: ninguém tinha, efetivamente, visto o dragão, e que uma das aldeias que ele atacou estava queimada, não congelada... Esse erro custou à vida de dois bravos imprudentes.
- E o que vocês fizeram depois?
- Fugimos, curamos nossas feridas, e, depois, voltamos para nos vingar. Sobretudo, aprendemos uma valiosa lição... Que você deve tentar entender sem um trauma tão grande, espero.
- Certamente, mestre.
- Muito bem. Por hoje terminamos nosso aprendizado, e devo revelar que não estou insatisfeito com seu desempenho, antes o contrário. Mas você deve ser mais cuidadoso, ainda que não lhe falte análise...
- Mas mestre, o senhor mesmo não me ensinou que o mago deve ser rápido no agir contra seus adversários?
- Sim, no agir e no pensar. Mas são coisas distintas meu querido Kalring. E a diferença está aqui – tocou, de leve, a testa do elfo mais jovem – e do que saíra daí. Em outras palavras, a rapidez está não no usar em si, mas no como usar... Mas já falamos demais. Tenho de partir para uma reunião do Conselho da Alta Magia...
- Mas já não houve uma reunião no conselho?
- Com efeito, o Arquimago já nos convocou noite passada, porém há mais a ser discutido.
- O que, mestre?
- Não sei mais do que suponho.
- E o que o senhor supõe?
O elfo mais velho, vestindo por cima da túnica um manto pesado ouro e branco, olhou com severidade para seu discípulo, avaliando o jovem. Kalring tinha herdado da mãe a beleza de sua pele alva com cabelos negros, curtos, e olhos da mesma cor, com um brilho malicioso. Do pai herdara a constituição física musculosa, e o gosto pela vida ao ar livre, de tal maneira que tinha recebido treinamento na espada antes de optar pelos caminhos da magia. Também era poderoso – considerando o seu tempo de treinamento, apenas uma década – e tinha grande sede de poder, ainda que a bondade fosse o norte de seu caráter. Era digno do manto de Mago-Emancipado, do cajado de ferro que acompanhava essa nomeação. Seu maior defeito era a impaciência e a tendência e a curiosidade excessiva, mas o mestre se consolava sabendo que com a idade ele se tornaria mais plácido... E então seu futuro seria brilhante como o de poucos. Mas uma admoestação era necessária, de modo que ele respondeu, de pronto:
- Quando chegar à hora, você há de saber, jovem. Agora, vá para a sala e pratique aquela magia.
- Sim, mestre.
O discípulo se retirou da sala, e o mestre tomou outro caminho, por outra porta, que dava para um corredor amplo, decorado com móveis onde repousavam flores e pequenos objetos mágicos de onde saíam notas musicais. Das janelas ele podia avistar boa parte da cidade, inclusive o palácio, chamado de Cúpula da Estrela, onde o Arquimago e o Conselho governavam os rumos da última grande nação élfica do sul. Era ali que se realizavam as reuniões, e era para lá que o Guardião dos Selos, Rivengil, iria.
Não andando, certamente, ainda que fosse uma delícia passear pela cidade, nem voando... Afinal, como todo Grande Mago ele tinha vastos conhecimentos sobre magias, e uma dessas era a de teletransporte.
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Seth