Esta é a minha contribuição para o Contos 100.
Para ser bem sincero, eu não tinha a menor idéia do que escrever. Tudo que o sabia é que eu tinha me comprometido a escrever um conto dentro do prazo do projeto. Hoje foi um dia muito chuvoso aqui no Rio e isso serviu como "pontapé inicial". Depois fui jogando algumas idéias no papel tentando conectá-las. Uma referência foi a música Girl Afraid do The Smiths. Levei cerca de uma hora para fechar o texto "bruto" e mais uma hora e meia entre acertos e revisões.
1515
Ronaldo andava a esmo pelas ruas chuvosas de Copacabana. Passos perdidos o levaram até a Avenida Atlântica. O dia cinzento e as gotas frias de chuva expulsaram os ciclistas do calçadão, pedestres da ciclovia e os banhistas da areia da praia. A única coisa imutável era o trânsito congestionado de mais um dia útil na cidade.
Para o rapaz, no entanto, tudo o que estava ao seu redor não tinha importância. Passadas desanimadas o levaram lentamente até a esquina da Atlântica com a Rua Santa Clara. Chegando ao local olhou em direção à praia quase vazia e teve a impressão que duas pessoas o observavam. Fechou os olhos por um momento e meneou negativamente a cabeça. Abriu os olhos, mas não viu ninguém. Sabia que algo estava errado, porém não se lembrava o que era esse algo.
Sentiu o relógio queimar-lhe o pulso e decidiu conferir as horas com discrição com medo de algum assaltante à espreita. Quinze horas e doze minutos. Pensou por um momento. Pensou por mais um momento. Sabia de maneira inconsciente que o ato de olhar o relógio indicava que tinha marcado um compromisso com alguém naquele lugar e naquele horário, mas não se lembrava de encontro algum. “Vou esperar um pouco”, disse Ronaldo para si mesmo procurando resignar-se com a situação. Cético, sempre achou uma bobagem essa coisa de pressentimento, mas desta vez sentiu que algo estava para acontecer.
Alguns minutos depois foi abordado por uma mulher definitivamente mais velha do que ele. Sem aviso ou palavras ela sugou seus lábios em um beijo longo e demorado. Ronaldo sentiu-se bastante surpreso pelo sabor familiar, mas não desfez o laço dos lábios e das línguas. Algo mais forte que a sua vontade o impedia de romper o enlace. Seus dedos acariciaram a pele vincada do rosto da senhora, enquanto as mãos dela dedilhavam suas costas. Ao término da carícia o rapaz abriu os olhos, certificando-se da identidade da mulher e, encarando-a, exclamou:
— Você!? Como me encontrou depois de tanto tempo?
— Você não se lembra do nosso encontro? — interrogou a mulher. Seus olhos faiscaram por um momento, como se já soubesse a resposta e ela tirou de dentro da bolsa um pedaço de papel cuidadosamente dobrando em quatro partes. O entregou para Ronaldo que o abriu um tanto desconfiado:
“Atlântica com Santa Clara. 1515”. Essas eram as palavras do bilhete. Palavras escritas com a caligrafia do rapaz.
Ronaldo tentava se lembrar do bilhete. O que o levara a escrevê-lo? Qual seria o porquê de marcar um encontro naquele local?
Os pensamentos do rapaz foram rompidos pelas palavras ríspidas da mulher:
— Eu te amo seu crápula. Amo minha filha também. Você roubou o amor que ela tinha por mim e, Deus me perdoe, roubei o amor que ela tinha por você.
Ronaldo se lembrava da garota. Herdara a beleza da mãe, mas tudo que sentia pela jovem era uma amizade fria. A recíproca parecia verdadeira. Tempos depois conhecera a mãe da amiga, o que resultou em um turbulento, secreto e excitante relacionamento.
— Mas sua filha nunca olhou para mim... — justificou-se Ronaldo, que nunca fora capaz de ver o brilho nos olhos de sua amiga. — Além disso — continuou — faz anos que ela morreu. Por que está me ...
O rapaz não completou a frase. Tentou falar novamente, mas o esforço foi infrutífero. Agarrou com força lado esquerdo do peito como se tentasse inutilmente arrancar uma mão invisível que esmagava seu coração. Primeiro usou uma mão, depois duas. E o bilhete, agora amassado, ainda estava firme em uma de suas mãos a despeito da sua agonia. Logo depois veio o horror ao ver a face amarga da mulher.
Outra violenta pontada de dor o fez perceber que estava tendo parada cardíaca. Mas como isso era possível se era tão moço e saudável? Pensou em uma resposta para a própria questão, mas logo desistiu devido à urgência de sua condição. A mulher não chamaria socorro e o deixaria morrer ali. A praia, os passageiros nos ônibus, os poucos pedestres que conseguia ver com seus olhos já semi-cerrados pareciam tão insensíveis ao seu sofrimento quanto a mulher que um dia amou. O seu fim chegara, disso tinha certeza, embora não soubesse o motivo de tamanha desgraça.
Mas no exato momento que aceitou a morte Ronaldo percebeu o quanto aquilo era ironicamente familiar.
A mulher ajoelhou-se na calçada molhada e abriu o punho cerrado do rapaz. Pegou o pedaço de papel, o desamassou e dobrou-o cuidadosamente em quatro partes. Por fim, o depositou ao lado do cadáver, esperou o semáforo lhe dar passagem por entre os carros e traçou um caminho de destino incerto pelas calçadas onduladas de Copacabana, deixando para trás um rastro de lágrimas misturadas com a chuva.
A mulher, alheia ao que acontecia ao seu redor, pareceu ignorar o curioso diálogo de dois homens que observaram discretamente toda a cena recém-ocorrida:
— Esta mulher sempre faz isso quando chove em dia de semana?
— Sim.
— Desde quando?
— Não sei bem dizer. Pelo menos há cinco anos. Foi quando eu comecei a observá-la nos dias de chuva.
— É realmente muito estranho. Que tipo de loucura leva a uma mulher a beijar o ar, falar palavras desconexas e deixar um papel no chão sempre no mesmo lugar, sempre na mesma hora e somente quando chove?
— Eu não sei. Mas sabe o que é mais estranho? Eu descobri que há alguns anos atrás um homem foi encontrado morto justamente naquele lugar.
— Será que há alguma ligação?
— Não sei. Talvez seja mera coincidência...