Degelo
Tentou se levantar do chão frio e lamacento no qual despertara, estava desnorteado e trêmulo. Não conseguia se lembrar de muita coisa antes de cair. Caminhava próximo ao rio quando sentira algo espetar seu pescoço e depois tudo ficou turvo e fragmentado.
Tentou formar imagens nítidas, mas apenas borrões cinzentos eram vistos. Uma assustadora imensidão disforme ao seu redor, repleta de pequenos vultos escuros que se contorciam próximos a ele. Em sua boca, um terrível gosto amargo. Sentia o corpo imensamente pesado, como se estivesse com barris cheios de cereais amarrados nele. Mesmo assim, tentou ficar de pé, em vão.
Foi ao chão, como uma criança que arriscava seus primeiros passos. Sua longa trança negra jazia desfeita, suja pela lama cinzenta e fétida daquele lugar estranho. Arrastar-se foi a única forma encontrada para sair de lá.
Poucos instantes que lhe pareceram eternos.
Não foi muito longe. Precisava descansar, precisava tirar o gosto ruim da boca, precisava se limpar...
A água gélida e silenciosa não estava muito longe, sabia disso. Por algum motivo, sentia isso.
A cabeça lhe pareceu ficar pesada e dolorida, subitamente. Sua visão estava voltando ao normal e ele já podia começar a distinguir o rio em meio aos borrões. Mil agulhas pareciam querer perfurar seu corpo, indicando que a sensibilidade estava retornando gradual e incomodamente.
Assustou-se ao ver o quão deprimente estava em seu reflexo. O cabelo caia sobre seu rosto sujo, mas não escondia as manchas pardas de sangue velho originarias de seu nariz e boca. Estava cruelmente pálido, sua roupa estava molhada como se tivesse acabado de banhar-se com ela e sua armadura estava despedaçada. A pesada manta que envolvia seu corpo e o protegia do frio estava igualmente inutilizada, rasgada e jogada ao leito enlameado.
Lavou o rosto rápida e freneticamente, com o máximo de água que suas mãos trêmulas conseguiam apanhar. Algo incômodo correu para dentro de seu olho esquerdo, causando-lhe estranheza.
Parou e fitou seu reflexo com receio.
Sua face continuava pálida, mesmo com a água gelada respingando dela. Não a sentia queimar, mas sabia que era final de outono, tinha noção do quão fria deveria estar. Seu corpo arquejava ainda cansado, via as pequenas nuvens formadas por sua respiração ruidosa aparecerem bem a sua frente.
Devagar, sentou-se às margens do rio, sem se importar com a lama, e levou a mão esquerda às mechas que tentavam esconder seus olhos. Tamanho foi o choque que não conseguiu se mover.