Olá pessoal. Sou um escritor de ficção medieval e gostaria de coletar opiniões gerais sobre minha obra abaixo.
A história inteira é composta de 5 capítulos: "Murmurios da Madrugada", "O Sacrificio de Carlos", "Descida pelo vale dos Ventos", "Predadores da Noite" e "Serata: O choro de um Nobre".
Muito obrigado pela atenção, e não se esqueçam de comentar =).
* A obra é de minha autoria e os direitos autorais estão garantidos pela Fundação da Biblioteca Nacional.
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Murmúrios na Madrugada
Era noite com jeito de dia. A cada minuto que passava mais e mais olhares curiosos eram vistos pelas ruas de tijolos brancos. Os cidadãos da Chama do Oeste saiam de suas casas, carregando suas lamparinas, e tentando entender o porquê de tamanha barulheira durante a madrugada. O rei Lionel havia decretado uma lei de silêncio a partir da hora da lua alta, quem ousara quebrar este silêncio era no mínimo corajoso. Mas não havia guardas-noturnos. Nem vigias. Não havia nenhuma autoridade da lei que fizesse valer o direito do decreto. O que estaria acontecendo? Todos se perguntavam. Uma senhora trajada com um pijama azul-celeste, segurando em um dos braços seu gato de estimação, aproximou-se dos degraus de sua casa, olhando inquisitivamente para seus conterrâneos.
- Boa noite Mafalda - disse um senhor de cabelos grisalhos enquanto ajeitava seus óculos fundos de garrafa.
- Olá Gregório, me parece que a noite não está sendo tão boa. Você conseguiu ouvir alguma coisa daquela gritaria? - replicou a senhora gorda com cara de poucos amigos.
- Não, não realmente. Eu acho que está acontecendo alguma coisa no salão superior. Eu ouvi muitos galopes agora há pouco indo naquela direção.
- Espero que não seja nenhuma das invenções do Flitch, se dessa vez ele criou alguma confusão noturna eu juro que serei a primeira a pedir diante do rei em pessoa pela expulsão daquele traste da cidade.
- Quê isso! Não fale assim do pobre coitado.
- Pobre coitado? Você chama aquele marginal de pobre coitado? Quem foi que destruiu a principal ponte das correntezas? Quem foi que queimou todas as lamparinas das ruas com a brilhante idéia de tentar gerar iluminação a gás?
- Calma Mafalda, ele estava tentando criar coisas úteis. Você sabe que aquela ponte estava quase caindo pela força das águas, e além disso, como pode culpar o garoto por tentar diminuir a carga de trabalho dos Cremores?
- Futilidades. Isso é o que eu digo! Se aquele garoto tivesse pai e mãe ele já teria levado uma surra que o deixaria em pé por dias.
- Boa noite - disse uma voz fina e elegante vinda da direção oposta da rua.
- Esta noite não está sendo boa Griffor, se estivesse eu estaria em cima de minha cama neste exato momento, disse Mafalda.
- Concordo plenamente minha senhora. É uma pena estarmos todos acordados a essa hora - disse Griffor, de forma polida e altiva como de costume.
- Você tem alguma idéia do que está acontecendo Griffor - inquiriu Gregório.
- Ah, sim! Se não me falha a memória, hoje é dia da Exposição da Armada.
- A Exposição da Armada? Isto não deveria ocorrer após o sol raiar? - retrucou Gregório.
- Provavelmente aqueles dementes vestidos de metal quiseram acordar mais cedo para estragar nosso dia - falou Mafalda visivelmente irritada com o fato - o rei Lionel deveria enviá-los para uma missão no monte das Górgotas.
- Mas isso seria uma viagem só de ida - observou Griffor.
- Pois é! Aí sim eles valeriam o que comem - exclamou Mafalda.
- Bem o Gregório disse uma coisa certa, se for realmente a Exposição da Armada eles estão adiantados - retrucou Griffor enquanto olhava para um pequeno objeto metálico em seu bolso.
Nem bem Griffor terminou de olhar seu relógio quando um barulho estridente e ensurdecedor ressoou por cada via, dentro e fora dos canais subterrâneos, através das praças, casas, galpões até transpassar as muralhas externas alcançando o céu cinzento. Os predadores noturnos da região pararam de caçar e, sendo dominados pelo medo do som gutural, fugiram. O Sonido foi ficando cada vez mais grave, e parecia durar uma eternidade. Todos os murmúrios que eram ouvidos aqui e ali foram instantaneamente emudecidos. Neste momento, comentar sobre a estranheza da noite já não era mais importante.
- Não é possível... - balbuciou Mafalda enquanto esfregava o seu braço dolorido devido ao frenesi do seu gato diante do som.
Os olhares curiosos pouco a pouco passaram a se alargar em espanto e incredulidade. Como se um lampejo de compreensão clareasse todos os pensamentos, as pessoas começaram a entender o que estava ocorrendo. Aquela noite estranha passaria a ser histórica. A corneta de Nuriel, após mais de 50 anos de inatividade, soara mais uma vez. E eles sabiam, tudo iria mudar.
...
- Acalme-se, não há mais nada que você possa fazer - uma voz aflita murmurava
- Jamais deixarei a minha terra, nem abandonarei meu rei. Não enquanto eu respirar, largue-me - falou impetuosamente um senhor alto enquanto puxava o braço fino que o segurava para longe de seu corpo.
- Alatheu, por tudo que você mais preza nessa vida, agora não é hora de lutar. Não entregue sua vida em vão.
- A minha vida não será em vão, e a darei de bom grado em nome dos meus deveres. Agora, saia da minha frente mulher.
- Eu não deixarei você ir - a mulher com seus negros cabelos curtos colocou-se à frente da porta, olhando atentamente das mãos grossas do cavaleiro para o olhar ávido em sua face. Seu corpo frágil não seria capaz de impedir sua passagem, ela provavelmente seria lançada ao lado com tanta facilidade quanto um vento leva uma pena. Mas estava determinada a resistir o quanto fosse necessário, se isto significasse salvar a vida do seu homem. Sabia que não agüentaria, mas custasse o que custar, não iria sair da frente daquela porta.
Rapidamente o cavaleiro amarrou seu coturno, fixando a aba de sua calça internamente, e colocou as braçadeiras de prata talhadas com ondas douradas, marca dos Éromes, última peça de sua armadura que faltava pôr. Agarrou sua espada, e colocando-a no estojo, dirigiu-se para o seu último obstáculo.
- Aline entenda, você se casou comigo sabendo que um dia isso poderia acontecer. Eu sou um cavaleiro real, e não me permitirei viver enquanto a vida do meu rei estiver em perigo. Você não ouviu a corneta? Que a sorte nos livre deste infortúnio, e que ela tenha sido soada por engano. Entenda, e saia - ordenou a voz firme.
- Não - desta vez Aline vacilava, já não conseguia mais manter sua postura, seus olhos começavam a sentir o lacrimejo da angústia.
Um baque forte foi ouvido atrás da porta de madeira. Aline, como que por instinto, pulou para o lado deixando o espaço livre que foi preenchido rapidamente por Alatheu, com sua espada já em punhos. Novamente o baque foi ouvido, desta vez com uma força brutal que fazia as dobradiças tremerem. Com um rápido movimento, Alatheu abriu a porta, e com a força do seu corpo lançou-se em direção aos ombros largos da sombra. Usando seu antebraço esquerdo, prendeu o sujeito desconhecido pelo pescoço impedindo qualquer fonte de respiração, a medida que a ponta de sua espada parava a centímetros do abdômen.
Os olhos do cavaleiro cerraram-se. Os punhos contraíram-se.
- Alatheu... - sussurrou a voz, que apesar de sair fracamente, denunciava uma firmeza escondida.
- Yorish... - exclamou Alatheu, e imediatamente seu antebraço relaxou abaixando o gume de sua espada. Recuperando o fôlego, Alatheu continuou: vida longa a Lionel irmão.
- Temo que não mais poderemos usar esta expressão, o rei está morto – falou soturnamente Yorish.
Se todos os habitantes de Toril se transformassem naquele exato momento em Gárgulas, ainda assim o olhar perplexo de Alatheu não estaria carregado de tanto torpor - “Lionel, morto?” - sua mente buscava memórias esquecidas de um senhor barbudo, cheio de vigor, aparando um menino franzino e amedrontado. Memórias que o levavam ao salão superior, onde em glória ouvia o juramento real. Memórias de aventuras no penhasco Kitrel, das lutas contra os Cortolhões, da sábia ordem que o poupara da morte tempos atrás. - “Não, não pode ser” - sua mente chegara a esta conclusão. - “Yorish está errado” - pensava enquanto olhava incrédulo para o rosto do amigo. Lionel poderia ser dado como morto, e ainda assim estar vivo, afinal ele sabia como passar minutos como um morto, técnica que tantas vezes já tinha utilizado. Seus pés tremiam, seu corpo desmoronou na parede próxima, sua mão firme afrouxou-se liberando uma espada vacilante, agilmente segurada por Yorish antes de atingir o chão.
- Alatheu tem mais uma coisa. A criança vive. Olhe - Yorish fez um gesto com a cabeça, apontando em direção a um cesto, com uma criancinha firmemente embrulhada dormindo milagrosamente apesar de todos estes ruídos.
Ainda sentado, incrédulo, Alatheu olhou vagamente para a cesta. Os Éromes são famosos por serem ágeis, tomam decisões rápidas, que muitas vezes os livram da morte em momentos decisivos. Todo Érome conhece o adágio: "A um átimo de segundo, rompe-se o fio da vida"; eles são treinados assim, desde que nascem. Por isso são letais, ferozes contra qualquer espécie de ameaça, expressam sempre uma calma gélida diante dos fatos, e mesmo na hora em que seus olhos são fechados, as suas faces demonstram uma avidez sem igual, como se suas mentes ainda funcionassem, ainda decidissem, mesmo quando já não há mais um corpo para executar estas decisões. Mas não era assim que Alatheu se sentia no momento, por mais duro que tenha sido o seu treinamento, nenhum Érome resistiria as emoções da falha de sua missão mais fundamental: respirar apenas enquanto no rei houver vida.
- Alatheu, você não me ouviu? A criança vive. Escuta bem. A criança vive! - repetiu veementemente Yorish, enquanto segurava firmemente o rosto do amigo, como se tentasse fisgar para a superfície os olhos do cavaleiro caído.
- A criança vive..., repetia Alatheu, sem se dar conta do que estava dizendo. A criança vive...
- Sim, e ela precisa da gente. Levanta! O tempo é curto, precisamos sair daqui - disse Yorish.
Como se um lampejo de entendimento cruzasse a mente de Alatheu, ele olhou para Yorish, desta vez com um olhar decidido. Reuniu forças, apoiou-se na parede, e erguendo-se disse:
- Muito bem, vamos sair daqui.
Recuperando sua agilidade natural, Alatheu entra velozmente em seu quarto, vai em direção a um baú no pé de sua cama, retira uma mochila de couro antiga, costurada em diversos pontos com fios grossos, e com um olhar rápido verifica o que falta para provisões imediatas. Ele não sabia quanto tempo precisaria ficar em jornada, mas não havia tempo para planejamentos. Contou alguns sacos de rações, pedaços de carnes defumadas separadas em pacotes e frutas cristalizadas. Ainda no baú, pegou papéis, tintas, e penas de escrita, para caso seja necessário deixar mensagens ao caminho. Alguns elementos básicos como cordas, arpéus e tochas já estavam preparados, como se esperassem por um momento de fuga. Alatheu fechou o baú, colocou a mochila nas costas, e andou a passos largos para fora do quarto.
- Eu estou com um péssimo sentimento de que nunca mais te verei novamente -disse Aline em prantos.
- Aline foi para isso que fui treinado, para sobreviver. Não se preocupe, eu voltarei para você. Eu não sei o que está acontecendo, mas se for o que penso, é bom que você saia do castelo, vá para a vila, se esconda entre os moradores, mude de nome e mude sua aparência. Você sabe em que podemos confiar, quando tudo estiver normalizado, voltarei e te encontrarei.
Aline mal pode balbuciar um único som, apenas olhava para o chão, se recusando a pensar ou mesmo acreditar no que acabou de ouvir. Alatheu puxou seu rosto delicadamente, e a beijou com ternura.
- O meu coração estará sempre com você.
Quando ele terminou de dizer estas palavras, um sentimento de urgência ainda maior se apoderou de sua alma. "Como eu posso ter esquecido" - pensou o cavaleiro. Rapidamente ele voltou ao seu quarto, aproximou-se do armário e o empurrou ao lado. Com o pé, ele batia devagar com cuidado e técnica no assoalho.
- O que houve Alatheu? Temos que ir. Agora! - exclamou Yorish.
- Eu sei, eu sei - disse em resposta Alatheu.
Um som oco foi escutado. Alatheu se abaixou, socou o chão em um ponto específico. Abaixo do assoalho havia uma caixinha, não muito grande, mas delicadamente embrulhada por um tecido vermelho com bordas douradas, fino e elegante. Ele retirou esta caixa com reverência, colocou em sua mochila. Se levantou, pegou sua capa, e disse:
- Estou pronto, vamos.
O Sacrifício de Carlos
Os Éromes residem dentro do castelo, e cada um deles é visto como mini senhores feudais, regentes de uma porção da fortaleza. Apesar da estrutura física ser a mesma em cada uma destas porções, na prática, no dia-a-dia, os servos, os afazeres, e todo o resto são completamente diferentes. Claro que todos estavam submetidos a autoridade real, mas até certo ponto, cada um dos Éromes gozavam de um respeito quase que real. Eram nobres. Não por tradição familiar, mas por merecimento. Por isso era difícil achar um Érome arrogante; muito mais fácil achar um rei que não reina, do que não achar virtudes naqueles que foram peneirados para serem, ao mesmo tempo, servos e senhores perfeitos.
A medida que Alatheu e Yorish percorriam o corredor de pedras frias, eram vistas janelas trabalhadas no muro de pedra. Eram janelas abauladas em cada uma das pontas, com uma moldura de madeira tingida a ouro branco. Se qualquer um dos dois tivesse em um dia comum, parariam para admirar a vista da Chama do Oeste. Ninguém sabe ao certo o motivo deste nome. Anekalar Toril, o fundador desta cidade, quando ainda possuía o vigor da juventude, havia se instigado a conhecer uma região de nuvens cinzas espessas. Estas nuvens eram robustas, e pareciam sair do chão, pois do horizonte não se conseguia distinguir onde terminava as nuvens e onde começava o solo.
Ao menos isso é o que dizem os ditos populares, passados de pai para filho, há séculos. Outros ainda desconfiam que apesar de não existir uma chama em Toril, o calor das masmorras internas, tão conhecida região de tortura e procurada por reis, rainhas e governantes, para descobrirem segredos de conspiração dos subalternos, é o responsável por dar a região o nome de Chama do Oeste, talvez uma referência ao calor. Uma coisa é certa, poucos sobrevivem ao terceiro nível da masmorra, e pouquíssimos são aqueles que vivem no quinto nível. Dizem que existe até mesmo um sexto nível, e que todos aqueles que ali estão, já não são mais humanos, ou ao menos não são mais reconhecidos como humanos.
Mas este não era um dia comum. Os cavaleiros avançavam a passos corridos com elmos postos. Os Éromes tinham a liberdade de escolher quais seriam os tipos de armas que se especializariam, uns eram os melhores arqueiros, outros se davam muito bem com maças, mas a espada, por tradição e valor, eram as mais usadas. Alatheu tinha a sua e ele a chamava de Prata Fria. Não gostava de escudos, carregava apenas a arma branca como forma de ataque e defesa. Muito diferente de Yorish. A altura de Yorish deixava qualquer um temeroso em apenas olhar para ele, seus olhos e cabelos claros davam um certo ar de beleza e graça ao jovem cavaleiro. Ele era anos mais novo do que Alatheu, mas já tinha uma maturidade anciã. Seus cabelos longos esvoaçavam desordenadamente abaixo do elmo, com a rapidez dos seus passos.
- Para onde agora Alatheu? Quando sairmos de Nindorrel, para onde iremos?
- Discutiremos isso depois, por hora só sabemos que não podemos ficar em Corsária.
Ele sabia o peso desta declaração. Sabia que nunca mais veria este castelo novamente. Sabia que nunca mais sentiria o calor de Aline em seus braços. Mas o seu dever era maior, muito maior que suas próprias vontades. Alatheu tentou afastar a péssima sensação que veio após ouvir o som de suas próprias palavras.
- Espere! - disse Yorish atento, erguendo um dos braços na altura do peito de Alatheu, colocando o cesto no chão Yorish retirou sua espada da bainha.
Era uma trifurcação. O corredor que acessava os quartos era uma descida suave até a área de serviço. Apesar de nenhum dos dois terem discutido a respeito do assunto, ambos sabiam que a saída pela área de serviços, como se fossem empregados insignificantes, seria a escolha natural do momento. O final deste corredor era a trifurcação, com o próprio corredor sendo um dos ramos, e os outros dois, caminhos para as outras torres dos Éromes e para o Salão Superior. Yorish esperou, quem quer que viria por um destes dois corredores, chegaria a trifurcação, e seria surpreendido pelo Érome.
- Precisamos arrumar uma... - a voz fina de um sujeito magro é interrompida mediante ao som agudo do tilintar da espada de Yorish. Com um movimento rápido e preciso, Yorish desarma o oponente, derrubando em duas partes o bastão de madeira. Olhando em seguida, espada em riste, para o sujeito abobalhado.
- Saia do caminho, não ouse... Flitch? Mas que raios você faz aqui a esta hora da madrugada
Yorish nem bem terminou de perguntar, quando um novo golpe cruzou o ar, mas desta vez não foi um som agudo, mas um som seco, como de um objeto pesado sendo lançado com ímpeto em direção ao braço do cavaleiro. Alatheu foi mais rápido, e percebendo o movimento súbito, lançou-se em defesa do amigo aparando a maça com a lâmina de sua espada. O choque ecoou entre as paredes silenciosas do corredor. A escuridão não dava para distinguir bem quem era o autor do golpe. Yorish recuperando-se do golpe de surpresa esquivou-se ainda com sua espada em riste.
- Vejo que seus reflexos continuam aguçados nobre amigo - disse rindo um sujeito calvo, e tão baixo quanto uma criança diante dos cavaleiros.
- Carlos? - disse Yorish - Você está vivo?
- Sim, estou e peço desculpas Yorish, não havia percebido que você fora o autor do ataque - comentou Carlos, enquanto colocava sua maça nas alças em suas costas.
- O que vocês fazem aqui? - perguntou Alatheu.
O sorriso de Carlos cedeu a uma expressão severa enquanto relatava os últimos acontecimentos.
- Alatheu, esta é a situação. Nosso rei está morto. Dos 24 Éromes, os únicos restantes estão respirando dentro deste corredor estreito. Isso mesmo, somos os últimos de nossa classe. A maior parte dos nossos irmãos foram mortos a surdina, na calada da noite, enquanto dormiam. Não sei bem como isto se iniciou, mas parece que uma grande conspiração foi bem arquitetada, pois não houve nenhum indício estranho de que a Nova Armada estaria corrompida.
- A Nova Armada? - perguntou Yorish.
- Sim, eu discerni as insígnias dos que começaram o ataque ao castelo. E eles não estavam só, alguém os comandava. Félix.
- Maldita seja a hora que a mãe daquele infeliz o deu a luz, disse rangendo os dentes Yorish.
- As defesas internas do castelo foram subjugadas, e cada uma das armadilhas e rotas de escape foram previamente desativadas. Ele planejou bem o golpe. Avisamos a Lionel que aquele garoto era perigoso, ele não quis ouvir, não quis acreditar - retrucou Carlos.
Alatheu e Yorish se entreolharam, um clarão de entendimento cruzou suas faces. A saída dos servos já não era mais uma opção.
- O que é isso? - falou pela primeira vez, agora já recomposto do susto, Flitch. Ele apontava para o cesto que ronronava estranhamente.
- Isto meu caro Flitch é o ponto fora dos planos de Félix - disse Yorish.
- Não me diga, esta é a criança? - falou abismado Flitch.
- Sim, ela...
Uma flecha corta o ar, seguido de um grito de dor agudo. Ao lado de Yorish Carlos geme, enquanto leva instintivamente sua mão em direção ao ombro trespassado. A flecha acertou às costas de Carlos, em um ponto entre as placas da ombreira prateada - um tiro de precisão. Sangue escorria do local por entre as mãos do cavaleiro e pingava no chão.
Uma segunda flecha cortou o ar, mas desta vez já não havia mais surpresa. Flitch lançou-se ao chão em direção ao cesto, e com o seu corpo protegeu e puxou a criança para fora da trifurcação. Yorish impetuosamente empurrou com os ombros o seu amigo ferido, que caiu desengonçadamente ao chão urrando de dor. Ergueu o seu escudo, e ficou à frente do corredor escuro, sem distinguir quem estava lançando as flechas. Mas pela direção que veio o projétil era óbvio que o Érome e o aprendiz já estavam sendo seguidos, e era uma questão de tempo serem interceptados. Alatheu colocou-se atrás de Yorish, usando da cobertura do escudo do amigo, puxou de um bolso de sua calça um pedaço de metal ricamente polido, e rapidamente tentou verificar a origem do ataque. Estava longe, e tudo o que ele conseguia enxergar eram sombras ladeadas com as paredes do corredor. Nenhuma flecha foi ouvida novamente. Alguns segundos se passaram entre o grito de Carlos e o instante em que foi ouvido o som tilintante do desembainhar de duas novas espadas. Os cavaleiros ouviram e entenderam que era hora do confronto corpo a corpo.
O primeiro a se antecipar a batalha foi Alatheu, ele girou seu corpo esquivando-se da parte de trás do escudo de Yorish, e desferindo ao mesmo tempo um golpe em meia-lua no oponente mais próximo. O golpe inesperado atingiu a malha do antebraço do guerreiro parrudo com tanta força que fez as placas da armadura de seu braço se soltarem e voarem na direção oposta ao golpe. A malha foi rasgada de um ponto a outro, sangue escorria ao chão e ódio enfurecia a expressão agora visível do baixo guerreiro. Sem se importar com o braço, a sua mão direita girou em busca da perna de Alatheu, que pôde ser rápido o suficiente para pressentir o movimento e esquivar-se, desferindo ao mesmo tempo um novo golpe usando o cotovelo diretamente no nariz do seu adversário.
Enquanto isso Yorish, alheio à segurança de seu amigo, foi com tudo para cima do segundo atacante projetando-se com seu escudo sem se importar com a força da trombada. Só que diferente do adversário de Alatheu, este era mais alto e magro. Não usava elmo, tinha olhos ligeiramente amarelados e esguios, como se tivesse sido acordado a força depois de uma noite mal dormida. Sabendo o que Yorish pretendia fazer, o jovem guerreiro usou seu escudo, ajustou suas pernas e se interpôs à tentativa de levá-lo ao chão. O choque foi oco e abafado de metal contra metal rangindo. Yorish procurou ser rápido, com seu antebraço esquerdo tentou usar seu escudo para desequilibrar seu adversário na tentativa de achar espaço para o golpe de sua espada. Mas seu oponente estava ligado, e com um deslocamento sorrateiro deu dois passos para trás, deixando que Yorish se desequilibra-se com um movimento em meio ao espaço vazio, e girou sua espada buscando a cabeça do Érome. O golpe seria fatal, mas o cavaleiro se abaixou a tempo largando o escudo ao chão. Com as duas mãos, Yorish balançava sua arma em círculos, ressarcindo ataques e tentando acertar algum ao mesmo tempo. As duas espadas se chocaram, olhar contra olhar, a respiração ofegante tornava o ar mais quente, e todo o corredor era uma sensação de abafamento sem fim. As armaduras brilhavam pelo suor dos combatentes.
- Chegou seu tempo Érome, prepare-se para desaparecer... - disse rindo o guerreiro de olhos amarelados.
Yorish não retribuiu o insulto. Apesar de ser não tão mais velho do que o guerreiro zombador, ele era um Érome e tinha o controle sobre seus impulsos. Ele sabia o que tinha que fazer, permitir que a ansiedade do seu adversário lhe desse a oportunidade de desferir o golpe fatal. Então habilmente ele forçou sua espada contra a do jovem guerreiro, e com um único longo movimento tentou abaixar a espada inimiga, que apenas o acompanhou, ainda firme, sem sinal de que cederia espaço. Yorish recuou, e voltou a golpear com agilidade três vezes, em uma seqüência de movimentos que buscavam o tronco do adversário, que ria, a medida que ressarcia os ataques.
Apesar de não ter muito espaço Yorish tentou desferir um golpe de cima para baixo buscando o ombro do adversário, no entanto sua verdadeira intenção era permitir que o jovem guerreiro o derrubasse. E exatamente como previu aconteceu. Seu oponente aproveitou o tempo concedido pela tentativa do movimento descendente, abaixou-se ligeiramente e com uma rasteira derrubou o Érome, que deixou sua espada escorregar sem resistência para o chão liso. O jovem guerreiro confiante, sorriu maliciosamente, e sentiu uma avidez mórbida, como se estivesse construindo sua glória. Lançou seu escudo ao lado, segurou sua espada com as duas mãos e desceu com tudo buscando o ventre do cavaleiro, que já preparado para o golpe de execução sacou de sua calça uma faca curva e a estocou com força e firmeza na garganta do adversário. O sangue saia em jato de pressão para a face de Yorish, que olhava atentamente os olhos amarelados se apagarem.
Yorish empurrou o corpo sem vida do oponente ao lado, e sem limpar o rosto, achou sua espada e olhou em volta. Ele viu Alatheu combatendo contra dois guerreiros ao mesmo tempo. Um estava com o braço completamente dilacerado e tentava a todo custo atingir o cavaleiro. O outro parecia feroz. Não era tão alto como os Éromes, usava um elmo com marcas de afundamento em várias partes. Dava para se perceber pelo cavanhaque com bigode ralos o esforço inútil do combatente para driblar o experiente Érome.
Alatheu não perdeu tempo. Chutou com força o abdômen do guerreiro parrudo levando-o ao chão, e antes de recompor de seu golpe usou os ombros para empurrar o segundo adversário. Prata Fria subiu e desceu esperançosa para atingir seu inimigo, buscando sistematicamente, entre golpes de desarme e de desequilíbrios, uma forma de penetrar a armadura do oponente. Não tardou para que um desses golpes atingisse de uma só vez uma alça de couro da aljava (que rompendo-se esparramou flechas ao chão) e o rosto do oponente. O golpe foi tão forte que Prata Fria dilacerou em um grande ferimento aberto a face direita do guerreiro de cavanhaque. O elmo voou para longe. O guerreiro gritou de dor e tremendo perdeu as forças encostando na parede mais próxima. Alatheu já aguardava o levantar do outro guerreiro, que procurando as costas do Érome, achou a ponta de Prata Fria. A perfuração foi tão forte em seu ventre que alcançou o outro lado do corpo do guerreiro parrudo. Ele se estrebuchou e pendeu para o lado, morto.
O último combatente que faltava estremeceu e procurou pensar rápido. Só que muito mais cedo do que ele esperava a solução apareceu. Passos fortes de botas iam se aproximando da cena e a distância ele avistava mais de seus amigos, cerca de uns cinco, pelo que ele podia notar. A confiança voltou ao seu coração.
Yorish foi o primeiro a notar a aproximação de mais jovens da Nova Armada. Ele sabia que agora a batalha ia ser mais difícil, levantou-se e se pôs ao lado de Alatheu. Mas alguém já tinha feito isso. Alguém já esta lá ao lado de Alatheu. Com sua maça ao ar, Carlos já estava posicionado para a batalha quando falou em bom som:
- Alatheu, Yorish, esta batalha não é mais de vocês. Sumam daqui com a criança. Eu lhes darei algum tempo.
- Nem pensar - falou Alatheu.
- Não seja burro. Quanto tempo você acha que vai durar quando toda a Nova Armada começar a entrar por este corredor? Eles vão matar todos nós. Honre o seu dever, saia daqui - retrucou impassivelmente Carlos.
Yorish percebeu que Carlos havia entendido. O dever dos Éromes não havia morrido com Lionel, ainda estava vivo. Ele puxou Alatheu com força.
- Alatheu é hora de irmos.
Alatheu concedeu um último olhar de pesar ao rosto de Carlos, que lhe retribuiu com um sorriso vacilante. Carlos então passou a frente dos Éromes e balançando sua maça gritou:
- Traidores, canalhas, bastardos...
Enquanto isso os dois Éromes pegavam um Flitch assustado e a criança que estranhamente dormia sem preocupações. Eles então começaram uma corrida em direção a área de serviços, e a medida que se afastaram da trifurcação ouviram sons distantes de morte e destruição.
Pouco tempo se passou até que Flitch, ofegante, fez a pergunta mais óbvia do momento:
- Como iremos sair daqui?
- Não faço a menor idéia, eu tenho alguns arpéus na mochila, acho que a saída vai ser escalar o desfiladeiro externo - respondeu pensativamente Yorish.
- Concordo, o fundamental agora é eles pensarem que estamos fugindo por nossas vidas. Desviaremos a atenção do objetivo de nossa fuga - ponderou Alatheu.
- Mas vocês não estão fugindo por suas vidas? - perguntou Flitch.
Ambos os cavaleiros olharam para o jovem aprendiz que entendendo o olhar incrédulo dos Éromes, limitou-se a ficar calado.
Já era possível avistar o final do corredor que dava em uma porta de madeira bem trabalhada por onde se chegava a área de serviços. Esta área é o local onde a maior parte das funções dos domínios dos Éromes eram executadas, desde a parte da alimentação, estocagem e limpeza, até a parte de armamentos e estábulos. Sendo uma ampla área quadrática e possuindo várias portas em cada umas das paredes, era comum sempre encontrar muito movimento, pessoas se cumprimentando, passando rapidamente, ou apenas jogando conversa fora para passar o tempo. Geralmente era um lugar animado e descontraído, mas aquela hora da noite não havia ninguém: seja porquê as pessoas estavam amedrontadas com a barulheira ou porquê os preparativos da exposição da armada haviam exaurido toda a energia dos serviçais, fazendo eles dormirem como pedras. Mas era bom assim. Quanto menos se visse e ouvisse, mais fácil seria alcançar o objetivo de sua missão.
Alatheu não pensou muito, conhecendo bem o lugar que ele dominava foi em direção a porta que levava a cozinha. A região estava em silêncio, com uma mesa de madeira rústica e tocos de troncos que eram usados como assentos bem arrumados em seus lugares. Pelas janelas avistava-se o céu escuro, não mais tão nebuloso. Desta vez já era possível ver o brilho de algumas estrelas, e a julgar pela posição das luas já era a hora do fogo crescente, e o amanhecer já não estava longe. Foi Flitch que quebrou o silêncio, desta vez com um comentário perspicaz.
- Alatheu, se eu bem me lembro, a última vez que estive em sua cozinha você havia dito que a dispensa havia sido construída com uma de suas paredes voltadas para o desfiladeiro para facilitar a ventilação. Não é verdade?
- Sim Flitch, por quê? - indagou Alatheu.
- Eu acho que tenho como criar uma saída para nós - falou Flitch.
Desta vez os dois Éromes olharam para Flitch, mas com um olhar inquisitivo, como se tentassem entender o que viria em seguida.
- Olha, eu posso quebrar as paredes usando isto - Flitch falou, a medida que tirava um frasco bem pequeno de um dos seus bolsos. Nesta ampola se via um pouco de pó violeta, que mais parecia areia colorida para criança. - É simples, basta colocar um pouquinho disto aqui na parede e digamos que pedras voarão.
- Flitch, você acha que queremos chamar mais atenção ainda? - exclamou Yorish.
- Você tem uma idéia melhor? - retrucou Flitch.
- Vamos lá Flitch, não temos muito tempo a perder - Alatheu lançou ao ar a ordem final.
Flitch caminhou até a dispensa, e lançando a ampola em direção a uma das paredes fechou rapidamente a porta. Um som abafado foi ouvido, a porta estremeceu, e tudo era silêncio novamente. Quando Flitch reabriu a porta, um vento frio circulou uivante por toda a cozinha, fazendo os cavaleiros se estremecerem em calafrios. Ambos olharam incrédulos para o estrago da ampola. O que viam era uma grande abertura desordenada na parede de pedra, o céu acima, e um grande desfiladeiro tão íngreme, que mais parecia uma tábua reta de pedra naturalmente esculpida. Era hora de saírem de Nindorrel, e desta vez podia ser para nunca mais voltarem.
Yorish e Alatheu rapidamente tiraram seus arpéus e encaixaram nos melhores lugares possíveis, desenrolaram as cordas e deixaram elas cair, mas pela altura em que estavam eles sabiam que as cordas não seriam suficientes. Tinham que arriscar e continuar a partir do ponto em que as cordas terminavam, do jeito que desse.
- Boa sorte meus amigos - falou um Flitch mais confiante.
- Como assim boa sorte? Você não vai conosco? - retrucou preocupado Alatheu.
- Da mesma forma como o raio que cruza os ares sem saber por onde é seu caminho, assim é a corrida das águas torrentes pelos meandros da vida. - falou orgulhosamente Flitch, como se visualizasse a si mesmo em uma pintura de um quadro. Naquele momento histórico, ao alto de uma das torres de Nindorrel, com uma vista inigualável do Vale dos Ventos, com membros da mais alta nobreza da Corsária... A sua imaginação iria vaguear ainda mais um pouco, se não fosse o comentário rústico de Yorish.
- O vento carregou teus miolos?
- Estou apenas querendo dizer que não posso deixar o castelo, pelo menos não agora. - disse Flitch visivelmente emburrado.
- Então que assim seja! Fique em paz, não creio que ninguém tenha visto você nos ajudar, mas ainda assim toda atenção é pouca. Quando o dia amanhecer, Toril será um lugar diferente para viver. Adeus - disse Alatheu, enquanto virava em direção a corda e ensaiava os primeiros passos da descida.
- Você realmente não quer vir? - falou mais uma vez Yorish. Flitch sorriu e balançou a cabeça. Yorish colocou sua mão no ombro do aprendiz. - Fique em paz. Adeus - exclamou o cavaleiro, na medida que ajustava o cesto por entre seus ombros, de modo a deixar a criança mais próxima do seu peito quente, abaixo de seu rosto, e bem vísivel aos olhos.
Desta forma, os Éromes iniciaram a descida na encosta do Vale dos Ventos.