E cá está meu segundo do conto de uma série, até então denominada "Ensaios Sobre a Loucura". Mais detalhes e o primeiro conto em: viewtopic.php?f=24&t=574
Ainda não fiz uma revisão digna, já que o escrevi ontem, então aceito com prazer apontamentos de erros.
Eis:
___________________________________________
O Outro do Amor
Recebi hoje e novamente, meu salário hipotecado. Um argentino que aluga o antigo apartamento de meus pais me envia todo mês quatro mil reais. O nome dele é Martín, e o odeio pelo nome. Não poderia ser pior receber quatro mil reais de um argentino chamado Martín.
Com seu dinheiro eu compro as coisas que me são úteis, como cebola, tomate, cheddar e ácido lisérgico. Afinal, a vida seria ainda mais sem-graça se fosse só receber dinheiro, gastar dinheiro, blábláblá, Martins e Fonsecas, ônibus e televisão. Eu pelo menos obtenho vários prazeres. Na escrita, na culinária e no meu analista. A minha prostituta. Gosto de chamá-lo de “minha prostituta”, mas só pra mim. Chego, sento, falo e faço ele ouvir tudo que tenho a dizer. Tudinho. Reclamo, esbravejo, falo os pensamentos mais obscenos que tenho ou não tenho, de meus planos, raivas e experiências espectrais. Por vezes percebo um olhar de escárnio. Ele é um homem comum, um homem do povo, da moral do povo, o homem que me vê como um alienígena, um homem com piedade de mim, que aperta seu rabinho bem forte pra pensar que não pode me desprezar, afinal é tudo doença, é tudo sintoma. Sinto-mal. E eu o obrigo a ficar sentado ouvindo porque toda primeira semana do mês trago seu dinheiro, a vista, e pago minha prostituta. Eu te pago pra ficar calado!
Fui descontar hoje o dinheiro de Martín e eis que o corretor me liga falando que o argentino quer me ver. Algo sobre o prédio. Fui até lá e ele mesmo me abriu a porta. Huum... Cabelos castanhos encaracolados quase até o ombro...mais argentino impossível. Nariz grande, brilhante e boca seca. Portunhol. Sei lá porquê, mas tive uma enorme vontade de pular e morder seu pescoço, puxar sua veia com os dentes, mastigar seus ossos e músculos. Tive vontade de devorar seu nariz. Era meu dinheiro em questão, não fiz.
O filho-da-puta quer mudar. Ou finge que quer e quer que eu diminua o aluguel. Posso fazer por três e oitocentos, ele não quis, três e quinhentos e ele não quis, três e duzentos! Nada. Martín... Se ele soubesse como esse nome me dá nojo. Torço e até fantasio todos os dias que ele seja apedrejado na rua até virar uma massa disforme, para depois recolherem os restos e darem às crianças famintas.
Volto andando, com todo dinheiro do mês na carteira. Muitas vezes torço pra que venham me assaltar. Tem tempos que não caio na porrada, gostaria de levar uns murros. Pagaria eles pra levar. Iria propor mil reais a três deles para me deixarem fazer parte da gangue. Tenho 43 anos mas sou forte ainda oras, sou esperto e tenho ácido pra todo mundo!
Andando mais um pouco passo por uma loja de móveis. Vejo uma cadeira tão marrom, tão lustrada e tão deliciosa que não resisto e entro. Uma delícia de cadeira. Cheiro ela e é exatamente o cheiro que esperava, de madeira viva com lustra-móveis. Começo a lambê-la na base e a vendedora se aproxima perguntando se pode me ajudar. Adoro abusar das vendedoras, que também têm de me ouvir e ficarem caladas, concordarem ou serem demitidas. São outro tipo de prostitutas, que nos servem porque precisam do dinheiro. Mas hoje não estou nesse espírito. Ignoro-a e vou direto ao caixa, pergunto quanto está a cadeira, pago a vista, peço pra tirar a comissão da vendedora e vou embora levando a cadeira na mão.
No dia seguinte à tarde fui até meu analista e levei a cadeira. Ele estranhou, mas não expressou muito e perguntou
- E o que vem a ser essa cadeira?
- Comprei essa cadeira ontem, e ela é tudo na minha vida.
- Como assim ela é tudo na sua vida?
Pobre coitado. Ele se esforça, mas tem a cabeça dos que tiveram uma vida superficial mesmo. Não compreende nada, mas me serve exemplarmente. De agora em diante vou ter pouco dinheiro, ou nenhum dinheiro. Terei dinheiro pra pagar minha prostituta?
- Então, vou ficar sem dinheiro, como vamos ficar?
- Como assim?
- Preciso que você fique aí sentado e eu aqui sentado, de graça.
- O que aconteceu que perdeu seu dinheiro?
- Não importa. Preciso que seja de graça. Por que você quer.
- Olha, infelizmente de graça não dá, mas podemos tentar renegociar um preço um pouco abaixo se sua situação estiver realmente ruim.
- Minha situação está péssima!
Eu já suspeitava. É uma puta mesmo.
Tiro minha faca do bolso.
- O quê é isso? Calma, sente-se um pouco. Você não acha melhor se sentar?
Enfio a faca ligeiro no seu tórax. Melhor que uma penetração. Ele grita. Será que ele esperava algum socorro nessa saleta de bordel abandonado? Enfio outra e esmigalho seus dedos que tentam ir contra minha face. Ele tenta falar outra coisa e dou mais um corte na barriga, verticalmente.
- Aaaah! Por favor...
Paro a faca quieta dentro dele. Olho bem nos olhos, segurando para não lhe morder e lhe digo tudo:
- Eu te amo, mas como, inexplicavelmente, amo em ti algo mais do que tu, eu te mutilo.
Enfio a mão no corte que fiz em sua barriga e aperto os dedos tentando arrancar algo lá de dentro. Ele grita e treme muito, puxo a mão mas só vem sangue e pedaços de carne. Vendo os músculos de seu pescoço se esticarem ao gritar veio-me o desejo de morde-lo e mordi. Com muita força mordi e me lambuzei. Engoli nacos seus e neste momento ele parou de se contorcer. Em poucos segundos perdi o gosto por devorá-lo.
Arrastei-o com calma até a minha cadeira e deixei ele lá sentado. Arranquei seus dedos, seu nariz e coloquei seus óculos que haviam caído de sua face durante o confronto. Os óculos pendiam pela ausência do nariz, mas não ficou uma figura menos bela. Contemplei. Queria levá-lo para casa mas sabia dos problemas. Não sei como também perdi tão rapidamente a vontade de devorá-lo. Agora já me parecia uma idéia repugnante!
Deixei minha cadeira, peguei minha carteira e fui morar na rua.