clepsidra
Acordo antes de Audrara acordar. Meu aposento parece-me tão escuro hoje que é como se a sombra que reina cidadela afora nascesse dele e usasse minha janela para se espalhar, espantando a fosca (mas insistente) claridade da lua. A cortina semiaberta bruxuleia, e me levanto da cama e me encaminho até o parapeito e me debruço sobre ele. Sou a silhueta negra de um grande cachorro, recortada do reflexo lunar tênue e cinzento dos prédios – e o céu que vislumbro dali me segreda que a manhã não tardará a chegar. Mergulho de volta na penumbra e atravesso o quarto para deixá-lo sem dele tocar mais coisa alguma.
Há dois confrades me aguardando no corredor e nenhum deles porta tochas ou velas, todos descendentes de cães (como eu) e muito bem dispostos e preparados para o escuro. Tochas e velas, álcool, pano, madeira, pavio e cera, e tudo isso é sinônimo de fiasco para o dia de hoje. Convém que não cheguemos perto dessas coisas, mesmo.
“Gand’hagah”, cumprimentaram-me ambos, e partimos. Dobramos esquinas e atravessamos aposentos como se houvéssemos ensaiado aquele caminho durante anos, e desde pequeno eu soube que era meu dever, como um Gand’hagah da Confraria, trilhá-lo quase exatamente como foi escrito quatro séculos atrás.
Há uma sala circular além da porta dupla que alcançamos, e em seu centro resta uma incrível clepsidra de tubos e balões de vidro, embaraçados e trançados até desembocarem num frasco muito pequeno e preso a um suporte de arame, quase cheio dum líquido azul-translúcido e bastante fluido. Um gargalo no zênite do frasco goteja nele últimos vestígios do líquido que correram pela clepsidra. Vazio, o resto do aparato de vidro é um mar de espelhos, e os outros confrades que me aguardavam ao redor do relógio estão nele tão imersos quanto eu.
“Chegou a hora, Gand’hagah”, e o enunciado não me desperta – me lança num torpor onde o gotejar azulado parece uníssono à pulsação atrás de minhas orelhas. “Tens tempo para a deodorização, e então...”
“E então aguardaremos”. Coço meu pescoço e meu focinho. Não é necessário ser um canino para farejar a tensão que paira no ar, e jamais estaríamos nervosos por eu ainda estar trajando meus robes de sono. Outros dois confrades se aproximam, solícitos, e prenuncio suas palavras sem precisar encará-los.
“O banho está pronto”, e eles consentem. “Descerei agora; voltarei devidamente preparado e vestido”, e eles me acompanham.
Não há apenas uma sala de banho na Confraria dos Perfumistas Régios. Há uma para nós, cães sagrados. Há uma para homens. Há uma para fêmeas de cada espécie. Há uma que não possui odor. Esta última é apenas um andar abaixo, e todos os pelos de meu corpo se eriçam assim que entro. Cinco fêmeas em pelo aguardam-me em pé. Os confrades não entraram, ficaram à porta. Resto apenas eu e cinco das mais belas vunyas que já vi. Cada uma delas se prostra sobre as quatro patas e ergue a cauda, e devo farejá-las. Esta casa de banhos me propõe um pavor que não o da nua e estonteante beleza – mas o da completa e mórbida ausência de cheiros nas paredes, nas águas – nas fêmeas. O banho pode começar.
Ao fim, sou eu o impuro e irreconhecível dentre os meus. Usamos águas e loções – produzidas por nós mesmos – capazes de neutralizar os odores até da besta mais selvagem. Sou vestido com robes e turbante cerimoniais dum igual tom púrpura, mas inodoras da mesma maneira que eu estava. O caminho de volta à sala da clepsidra é outro, e são corredores e escadas pelos quais ninguém trafega senão para livrar de cheiros quaisquer. Já ante uma das portas da sala circular, sou anunciado. Todos devem se retirar, por motivos que uma tradição antiga não me permite enumerar em voz alta ou transcrever em pergaminho. Adentro.
Aproximo-me com calma da estrutura de vidro. Sobram menos que três gotas para que o frasco esteja satisfeito. Nestes últimos minutos encaro a grande clepsidra, hermeticamente fechada há quatrocentos anos. A um metro e meio acima do frasco, um balão vazara através de um único tubo e tivera, gerações e gerações atrás, dado início ao ciclo que hoje se encerra numa tímida gota azul atravessando o gargalo.
Não ouso falar. Uma era se encerra assim que, com esforço, desencaixo o frasco do resto do sistema vítreo, e o líquido assume uma tonalidade escura assim que entra em contato com o ar, voltando ao azul original depois de instantes. O azul respira. Tampo-o com outra peça de vidro, cubro-o com púrpura. Desta sala saio e tomo de imediato uma escada em caracol, que parece não ter fim. Os passos nos degraus de pedra, o coração como uma bomba d’água no peito, o frasco palpitando sozinho em minha mão – tudo parecia seguir o mesmo ritmo de desfecho.
E quando alcanço o topo da escada, ganho a torre mais alta da Confraria e noto que o dia está claro. Meus olhos lacrimejam; o Sol surge lentamente por detrás dos Pântanos Azuis e eu, em defesa, estendo e exponho-lhe o frasco. Sob a luz, o azul é violentado e sangra, como se uma fumaça mais escura mergulhasse num líquido da cor do céu matutino. E o escuro se expande. E o escuro conquista o frasco.
Entre mim e o Sol, o líquido torna-se cada vez mais translúcido e sua nova tonalidade joga-me de joelhos contra o chão, e meu espírito regozija no sucesso de tão secular tarefa. Estava pronto e seria, dali em diante, impossível aos vunyatra explicar para os demais povos a sensação de enxergar o vermelho pela primeira vez.
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Acho que comecei a ler TSag anteontem e o primeiro Reino da leitura foi Daguna. O texto do Led, entre muitas coisas, me inspirou a escrever algo sobre, e terminei o produto disso agora há pouco. Queria mostrar pra ele, mas ele tá sem interwebs e eu mesmo fico ansioso quando crio (especialmente quando gosto do resultado e quando sou incentivado a postar), daí... eis.
Cunhei um termo ou outro e tentei encaixar tudo nas ideias existentes acerca, principalmente, dos vunyas. Puxei "Gandha-gah" do Veda, onde aparece significando "aquele que distingue aromas" ou similar; nessa concepção, é um título muito específico e raro, mesmo dentro da Confraria.
Comentem, PLZ.
Editado: "minhas robes" corrigido.