Tristes Contos de Fadas - Vozes
As estrelas no céu escuro brilham pálidas com seu sorriso triste. A lua fria e solitária banha suas vestes ricas de seda azul-escura e adornos prateados. O jovem homem repousa deitado sobre o telhado do castelo, longe das vistas dos guardas ou das insinuosas damas da corte. Não está com ânimo para nada...
Ouve a canção do vento soprar palavras doces em seus ouvidos. Vozes cristalinas ressoam puras com o farfalhar das folhas das árvores. Vozes alegres e infantes chamando-o para colher trufas na floresta e brincar...
Fecha os olhos melancólicos, de um rapaz que teve uma vida conturbada, mas sua visão sempre lhe assombra. Phillip, seu melhor amigo entre os humildes... na época uma criança... Como pôde ser tão estúpido em fazer aquele passeio sozinho e chamar o amigo para acompanhá-lo... O corpo sangrento estirado ao chão em pedaços...
Já faz dez anos que ele se foi... A noite estava como esta agora...
A lua cheia já tinha se levantado e já se mostrava por cima das copas tão altas para as duas crianças, que tinham se afastado da cidade, apenas pelo prazer de fazerem algo proibido.
Saíram em busca de uma aventura para poderem se vangloriar no dia seguinte, para os demais amigos que preferiram ficar em suas casas. As estrelas brilhavam no alto do céu negro limpo. As árvores cantavam com o vento que soprava suave, mesmo em tão fria hora. Em busca dos monstros tão citados nas historias do padre Morris...
Estavam munidos apenas de suas espadas de madeira e algumas pedras. Infantes inocentes que não sabia o que os aguardava.
Andaram por algum tempo, ora seguindo o rio, ora seguindo a estrada, jogando pedaços de pão para não se perderem. Nada encontraram. Tentaram retornar, mas seu rastro havia desaparecido.
Tentaram não se desesperar. De repente tudo ao redor ficou assustador. Sua imprudente coragem se esvaia para a terra e esfriava suas almas.
O vento começou a sussurrar ameaças. A vegetação sibilava como serpentes. As sombras pareciam vindas de pesadelos. A água tornou-se agitada de repente. Vozes distantes sopraram em seus ouvidos para correrem antes que fosse tarde...
Tarde para que?
As bestas das histórias tomam formas em suas mentes. Criaturas do Abismo. Enviadas da mulher-demônio que habita as florestas. Mãe dos cães que caçam homens. Deusa dos pagãos, que sacrificam os filhos de Deus...
O corpo estendido ao chão, retalhado, após o ataque das feras de olhos verde-incandescentes. Víceras expostas nas presas dos cães negros. Sangue que banhou a terra escura e se deixou absorver pelas raízes da velha árvore a qual se abrigara na copa sem folhas.
As vozes o avisaram dos Caçadores. Correram. Subiram na alta morta. Ele conseguiu escala-la primorosamente, apesar do medo. Phillip escorregou no musgo que a recobria... o galho que se partira em sua mão, rasgando sua pele... caindo em meio aos lobos assassinos...
Pouco se recorda do que veio a acontecer depois. Uma das feras tentava alcança-lo aos saltos. Tentava cravar suas garras no tronco rude e sólido. Olhos verdes que transbordavam ódio e fome...
Olhos que não lhe saem da mente...
Não consegue derramar lágrimas pela lembrança triste. Nunca conseguiu, desde a morte de sua mãe. Alguém o chama distante. Novamente as vozes?
Não. O som torna-se mais próximo. Alguém descobriu seu esconderigio. Era Henry, aquele com quem foi criado como irmão. O príncipe do reino.
Nenhuma palavra dita. O jovem sequer volta sua face ao nobre, preferindo admirar a lua pálida que toca todo o seu corpo. A luz fantasmagórica que o hipnotiza, trancando-o no passado, quando sua mãe ainda era viva...
O silêncio do jovem angustia ao príncipe, como o vento sopra frio e cortante desta noite que antecede o primeiro dia do outono. Estaria seu amigo se recordando da mãe? Pensando no pai, que ninguém sabe quem é ou como é?... Ou meramente observando as estrelas do funesto céu sozinho...?
Por algum tempo, nenhum dos dois se move. O nobre decide fazer a vontade de seu “irmão” e torna a descer para a sala abaixo. Antes de perder o jovem abatido de vista, Henry lhe joga uma pequena insígnia, que cai sobre seu peito.
Pouco depois que o príncipe o deixara, o rapaz pega o brasão e se coloca sentado no telhado, permitindo-se que alguém de fora do castelo possa vê-lo.
Um anjo triste...
Mechas negras de seu cabelo bem aparado recaem sobre seus olhos azul-safira. Mesmo imerso em sua escuridão, seu rosto bem formado lhe confere assombrosa beleza.
As vozes continuam a assobiar em seu ouvido... canções e poesias em uma língua que ele desconhece, mas que lhe é familiar ao mesmo tempo. Uma delas o faz recordar da canção que sua mãe lhe cantava antes de dormir... Uma canção que fora ensinada pelo homem que o gerou...
As palavras se formaram, a princípio estranhas, mas logo começaram a tomar algum sentido para o jovem. Seus lábios finos acompanham sua melodia saudosa, chegando a cantar para si.
Seu coração se aquece. Sente como se braços cálidos o envolvessem. O perfume das rosas o rodeia, como se ela ainda estivesse viva. Sente-se em paz. Ouve uma risada infantil familiar sobre seus ombros fortes...
Assustado, vira-se para trás, mas nada vê além das telhas cinzentas que recobrem o local. Pontos de luz esverdeados se erguem da vegetação para dançar a noite toda.
Ao terminar seu devaneio o frio lhe percorre a coluna ao ouvir novamente a risada inocente a qual ele confirma pálido ser a de seu falecido amigo...
Chama por seu nome, mas não ouve resposta. Toma sua atitude como tola. Deve estar sonhando, imerso em tantas recordações e dúvidas. Como o segredo que sua mãe levou consigo para o túmulo, e os pequeninos olhos que viu brilharem em meio aos vaga-lumes...