Sobre outra cena quotidiana

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Sobre outra cena quotidiana

Mensagempor Mirallatos em 16 Ago 2010, 12:16

Ruas abalroadas são um mosaico de tragédias ambulantes. Inclui-se, aí, o discurso de alguns mais apaixonados: “tiro minha arte dali, daquelas pessoas, amorfas, no exercício quotidiano”. Histórias como a do Jair, aos olhos dum performático faminto, seria matéria, de bar ou revista, em meio a alguns círculos de artistas. É que, uma desgraça – ou tragédia, se achar melhor – é algo que aguça a curiosidade e parece estimular a criatividade.

Dei conta disso, ignorando o sol de uma tarde no centro da cidade, quando passei a seguir o rapaz de rosto aflito. Uma vez no meu caminho, insensível aos outros, não teria me importado com nada, não fosse uma pequena esbarrada acidental. Só então notei a pressa, a roupa surrada e a criança aninhada nos braços. Não conheço muito sobre crianças a ponto de apontar a idade, mas a considerar o tamanho, estimei uns 6 meses. O rapaz, por sua vez, devia ter passado dos 20, muito pouco, mas estava surrado pela vida. Era daqueles negros de pele tão escura, que chega ser cinza, o corpo magro dançava dentro das roupas e os olhos eram duma tristeza visível. Seguia apressado, multidão adentro, com um bebê nas mãos.

Naturalmente, não dei importância àquela cena, por mais incomum que o fosse, seguiria meu caminho, mas o chapeuzinho – boné, não sei – tinha caído perto do meu sapato. Veio-me uma irritação instintiva, estava atrasado, suando dentro do terno e ele seguia no caminho contrário. Peguei o pequeno objeto, assumindo que uma criança não merecia aquele sol de pouco mais de meio-dia. Olhei para trás, procurei o rapaz e vi que ele ia longe, era um dos poucos negros e o único com coragem para andar com uma criança naquela calçada barulhenta.

Ele atravessou a rua ignorando o sinal, algo que não fiz obviamente. Logo disparou numa ruela, virando à direita, por trás dum casarão desses antigos que só existem no centro da cidade. Esperei o sinal abrir e quase corri, me perguntei se o esforço era necessário, não tinha nada a ganhar com aquilo. Parei, voltei e quando pensava em atravessar de volta, senti aquela pontada de consciência. Ele parecia pobre. Onde estava a mãe? Tornei inverter meu caminho, segui até a velha construção e virei na esquina.

Ia longe, na sombra de outros casarões coloniais, ainda apressado, mas agora acompanhado de uma senhora que parecia nervosa e muito gesticulava. Pararam na frente de outro prédio decadente, como tudo naquele lugar, que por sinal era suja, fedia a urina e parecia dormitório de gente de rua. Um grupo de pessoas estava na frente, pareciam excitados enquanto olhavam para cima, outros olharam alarmados para o rapaz e a criança. Aquela visão despertou certo arrependimento por ter ido até ali. Eu devia ter voltado, mas acabei prosseguindo.

Pensei em chamá-lo, querendo dar fim a tudo aquilo e seguir meu caminho. Sendo sincero, não costumo me sentir bem ajudando os outros, mas gosto de contar que ajudei alguém, isso sim, inexplicavelmente, provoca um bem estar. O rapaz olhou para trás, viu que eu tinha um objeto que pertencia à criança, mas logo a senhora a seu lado falou algo e ele se apressou em romper o grupo de pessoas, entrando no local.

Concluí, enfim, vendo aquelas pessoas, que uma tragédia estava para acontecer e a força para evitá-la não era maior que a expectativa. Talvez ele devesse morar ali e aquela criança precisava da mãe, ou algo próximo a isso. Talvez eu tenha fantasiado isso depois. Não sei. O certo é que fui me juntar àquele arco de curiosos cujas cabeças se inclinavam para o alto. Olhei também, mas vi apenas sacadas com lençóis ou toalhas dependuradas. O casarão tinha 3 andares, uma escadaria velha, gasta, adentrando um corredor de paredes descascando. Um pequeno gato miou na primeira janela, enquanto alguém comentou algo mais ou menos assim “o pai e a criança subiram”. Logo uma sirene soou no fim da rua, e perguntei a um moleque – sempre os moleques! - o que estava acontecendo:

- Um homem quer matar a esposa por causa do amante.

- Como? – perguntei, me dando conta que apertava o pequeno boné.

- Moço, é coisa de casal, parece que o marido descobriu que não é o pai do menino e quer matar a mulher – enquanto o menino falava, uma viatura chegou ao local.

- E o pai... – não consegui terminar a frase, apenas protegi meu rosto enquanto um corpo enrolado num pano foi lançado janela abaixo. A criança caiu perto, num baque seco, espirrando sangue nos meus sapatos. Alguém gritara lá de cima, ouvi dois tiros, a policia entrou correndo sacando armas e uma mulher desmaiou.

Tempos depois fui entender aquela história e o que realmente tinha acontecido. O tal rapaz era, na verdade, o amante. Teve de levar o filho até lá, aliás, a criança se chamava Jair e, segundo diziam, tinha nascido pretinho. Meu Deus, não tive coragem de olhar mais que uma vez, mas foi o suficiente para ver seus olhinhos abertos, a face inexpressiva e alguma coisa vermelha saindo da boca. Fui embora dali, apressado. No dia seguinte os jornais falavam sobre o acontecimento: “Amante é forçado a matar o próprio filho e é baleado em seguida”.

Ataualpa Pereira
21-06-2010
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