Forjadores de Almas
Não era a primeira vez que voltava ao castelo abandonado e nem seria a última. O cheiro dos anos invadia suas narinas, trazendo-lhe sensações as quais sempre julgara estranhas. Ajoelhou-se, depositando parte de sua bagagem no chão e procurou calmamente por sua pederneira. Acendeu uma tocha com paciência e cautela, para que as faíscas não atingissem a velha tapeçaria sob seus pés. As chamas dançavam banhando com seu brilho quente as paredes de pedra e os móveis que restaram.
Levantou e colocou-se a andar devagar pelo breve corredor, tendo a mão direita livre a deslizar os dedos finos sobre a poeira acumulada do lugar. Chegou à grande sala, ainda com seus acentos de madeira e veludo vermelhos, com mesas de boa qualidade e castiçais de cristal e prata ainda com suas velas. Andou mais um pouco, tomando o rumo da porta de carvalho tombada, deparando-se com um aposento repleto de estantes e teias de aranhas. Embora tenha feito alguns meses desde que voltara às ruínas, o ar lhe fazia parecer que mais tempo teria se passado.
A luz bruxuleante tocou as capas dos livros que lutavam para resistir ao abandono, mas não foi por eles que viera dessa vez. Na verdade, aqueles livros nunca despertaram seu real interesse. Não aqueles...
Uma escrivaninha estava posta no centro da sala. Se sua memória não falhava, haveria uma chave de prata “que abriria os portões do Reino da Morte”, e um recipiente de prata e cristal com mechas de cabelos de sua família. Não deixou de conter seu sorriso pálido, tingido pelo vermelho leitoso do fogo, quando abriu a dura gaveta e encontrou as duas coisas que procurava nesse dia.
Na parede, o olhar frio de seu pai vigiava seus passos calmos que se afastavam em direção a porta derrubada pela força e pelo tempo. Nem mesmo se deu ao trabalho de encarar aqueles olhos azuis severos. Atravessou a grande sala, tomando caminho por entre portas e corredores escondidos, onde apenas aqueles que pertenciam ao clã dos forjadores de almas, poderiam conhecer.
Descera os breves degraus de pedra antiga e seguira deixando os olhos correrem sobre as paredes ricamente decoradas com as imagens de homens e mulheres conjurando criaturas do fogo, da terra, da água e do ar. Mais a frente, cavaleiros de armadura lutavam contra criaturas de luz e de trevas, apenas para se mostrarem retratados vitoriosos com seus novos servos. Seres celestiais e infernais, condenados a servidão eterna pela marca da Noite, tendo meros mortais como senhores e algozes.
Os Forjadores Arcanos.
Ratos e morcegos fugiam ao perceber sua aproximação. Escorpiões e cobras retornavam para suas tocas, amedrontados por sua presença. Parara apenas quando a longa moldura chegou ao fim, incompleta. Longos metros de chão ainda precisavam ser percorridos, assim como longos metros d parede faltavam ser preenchidos com a última geração existente de seu clã.
Não sentia o abatimento tomar seu peito, pelo contrário. Sentia-se feliz por poder reerguer os Forjadores Arcanos com o poder que adquirira ao longo dos anos em que estivera no exílio. Não tardou para ver as portas do mausoléu, guardadas por duas estátuas do deus da morte sentado, adormecido com suas asas de plumas a abraçá-lo. Aquela deidade, sempre tida como fria e cruel, sempre lhe pareceu agradável, naquela posição, onde sua foice repousava por cima dos ombros.
As portas, de um aço escurecido guardavam o brasão da família, uma pedra circular com asas de morcego abertas. Retirara a chave de cristal e prata, que reluzia ao brilho leitoso do fogo. Contemplou novamente às estátuas, como que para se certificar de que realmente estariam adormecidas. Só então abriu a fechadura de metal escuro.
Chegara à capela onde os corpos de seus pais e seu irmão repousavam, e além deles, muitos outros antes. Os esqueletos petrificados lhes prestavam saudações com suas foices erguidas. Respirou fundo aquele ar sepulcral, como se precisasse daquilo. A luz do sol se obrigava a penetrar fraca no local, pelos vitrais espalhados nas paredes. Pessoas de braços abertos, como se recebessem os falecidos calorosamente. Mesmo a luz e o calor de sua tocha pareciam querer se retirar do lugar onde o deus da morte repousava de olhos fechados, sentado em seu trono de pedra. A estátua mais perfeita que seus olhos claros poderiam fitar ao longo dos tempos.
Deixara o peso de seu equipamento de viagem cair ao chão, com cuidado. Precisava agir rapidamente, antes das chamas se extinguirem. Encontrou os dois sarcófagos de pedra branca, cujas placas traziam o seu nome e o nome de seu irmão. Novamente sorriu.
Apanhou as velas que precisaria em sua mochila, e as dispôs ao redor do caixão daquele que viera do mesmo ventre, desenhando um círculo, e acendendo-as na medida em que os colocava no chão empoeirado. O Ritual iniciara no momento em que seus pés, vestidos pelas botas negras, adentraram no círculo.
Conduzira a cerimônia da forma como aprendera quando criança. Se obtivesse sucesso, saberia rapidamente. Antes de terminar, sua resposta veio.
Enquanto entoava os cânticos, ouvia o som dos ossos sendo arrastados dentro do túmulo. À medida que avançava firmemente, era possível escutar os gritos de agonia daquele que estava sendo forjado a partir dos próprios restos mortais. Esforçava-se para que sua voz se sobressaísse firme e clara sem se deixar atrapalhar pelo barulho. E assim seguiu até o fim, quando os gritos cessaram e a última palavra do Ritual fora dita.
Mesmo com o esforço, tomou a chave de prata em mãos. Mesmo com o tampo de pedra branca, conseguiu ouvir os primeiros sopros que ele tomava após tantos anos. Quase podia sentir o chiado do ar ao passar por entre os dentes dele.
Colocou a peça na fechadura oculta da tumba e a girou. Um súbito frio tocou sua pele lívida, umedecendo suas vestes negras, fazendo surgir gotículas sobre sua armadura escura. A tampa deslizou de lado, gradualmente, permitindo que a mão descarnada seja vista, empurrando-a.
A satisfação e a ânsia, aos poucos, foram se apoderando de sua alma. Seu irmão renascendo diante de seus olhos era algo que há muito esperava presenciar. Ofereceu sua mão delicada para ajudá-lo e ele a segurou com firmeza.
O cheiro dos anos e do sepulcro subira no ar. Do caixão de pedra ele se ergueu, apenas ossos e trapos, trazendo em sua fronte a coroa fúnebre dos Forjadores de Almas. A pedra vermelha da alma ligada às asas da representação mais negra do deus da morte. Finos apêndices irromperam de suas costas criando asas de plumas escuras, enlaçando os ossos com fibras e músculos e devolvendo-lhe a aparência jovial e bela que possuía antes da morte.
Sorriu diante daquela visão tão agradável aos seus olhos azuis, agradecendo em silêncio, pela convocação. Sua recompensa seria ainda melhor.
- Não temos tempo para perder. – Disse ele calmamente, curvando sua cabeça para beijar a mão delicada. – Ele nos escolheu para executar Seu plano...