Facínoris ex serpens vulneris
O sol deitou-se e ergueu-se duas vezes desde que as mulheres do povo da Abraão acolheram o ferido templário. Por dois dias ele esteve entregue a sonhos e delírios, imagens de inimigos e traições o perturbava, enquanto seu corpo ardia em febre. A soma de sua férrea vontade de reerguer-se e o suave, quase milagroso, cuidado das judias o mantiveram vivo nesses dias escuros.
Indo contra todas as tendências, em dois dias as forças de Teodoro estavam quase plenas. Os cortes e arranhões pelo seu torso e rosto estavam pouco abertos, com uma grossa crosta crescendo sobre eles. Os ferimentos abertos nos braços, ombro e perna não doíam mais como antes. Deitado na cama de palha, com os ferimentos ungüentados da pasta milagrosa que lhe foi aplicada pelas judias, Teodoro divagava, tentando achar os benefícios de sua empreitada desastrosa.
Num breve esforço o Templar tentou erguer-se, para melhor visualizar o recinto onde estava confinado. Sentando sobre a cama ele pode ver um quarto simples, com uma janela virada para o poente, pelas frestas do teto, os raios lunares iluminavam parcamente o local.
- Não deves se esforçar ainda bravo cavaleiro. - a voz suave, quase juvenil, espantara Teodoro, que se voltou para a porta o mais rápido que seu corpo debilitado permitia.
- Quem sois vós? A mais bela donzela com o mais belo coração cristão, ou uma bruxa cruel, uma sucubos vinda do inferno para me levar? - as palavras de Teodoro soavam galantes, enquanto ele forçava a vista para ver a jovem sentada à porta.
- Não, não sou um demônio nem uma bruxa. Julgo que tenha um bom coração, mas longe de ser o mais puro da cristandade. Principalmente por não ser cristã, meu bom cavaleiro.
- Brincas com um pobre moribundo minha dama. Pois maometana alguma teria a bondade de abrigar um cavaleiro de Cristo e nenhum judeu miserável o faria, por só pensar em lucros. - os olhos do cavaleiro, já habituados à escuridão, conseguiam definir o corpo esguio da jovem e seus olhos brilhantes.
- Por favor meu bravo cavaleiro, não digas palavras tão duras. Talvez tuas palavras sejam verdadeiras quanto aos sarracenos, mas não julgue tão cruelmente o povo de Abraão. Pois é desse povo que pertencem a mim e a minha mãe, duas pobres mulheres que lhe ajudam sem desejar nenhuma outra recompensa sem ser a tua saúde plena! - um fervor apaixonado dominara o discurso da jovem, e seus olhos brilhavam tristemente com a opinião do cavaleiro.
- Então minha dama, creio que realmente não sejas uma bruxa, mas alvo de uma. Seria capaz de apostar minha honra e glória que possuis uma bela alma nazarena em seu peito. Alma esta, alvo de uma vil criatura que a colou em um corpo hebraico.
A jovem encarava o cavaleiro, um breve sorriso brotara de seu rosto, afinal um garboso e valente cavaleiro estava se mostrando encantado por ela. Seus lábios abriram-se para ela agradecer as palavras do templário, quando o som de passos lhe assustara. Atrás de si apareceu sua mãe, fazendo-a retirar-se do vão da porta, saindo das vistas de Teodoro.
A mulher aproximou-se dele, com uma lamparina fraca nas mãos. A iluminação revelava uma mulher de semblante severo, mas de olhos claros e de belas feições. Apesar de ter os cabelos ocultos por um escuro véu, algumas mechas negras caiam em sua fronte, e Teodoro não julgou que ela tivesse mais de três décadas de vida.
- Devias manter-se deitado, Templário. - sua voz saiu severa, enquanto ela olhava os ferimentos no torso de Teodoro - Como se sentes?
- Bem, apesar de enjoado com o cheiro do ungüento, as feridas coçam, mas sei que é sinal de uma boa cicatrização. - Teodoro a encarava, sorriu ao se ver imaginando saciando suas necessidades masculinas com aquela mulher. Que som aqueles lábios severos emitiriam sob o corpo de Teodoro?
Os olhos dela recaíram sobre o sorriso injustificado de Teodoro, fazendo-a afastar-se. Seus olhos se confrontaram, o semblante da mulher se tornou sombrio.
- Nessa velocidade, creio que poderás partir dentre três dias cavaleiro. Teu cavalo está bem alimentado e descansado, mesmo magoado como estas será capaz de cavalgar até o castelo hospitaleiro que se encontra aqui perto.
Após as palavras duras a mulher retirou-se, puxando a filha pelo braço. Teodoro as observou se afastarem e sorriu. No final de tudo, ele poderia tirar algum proveito dessa situação. Com o mesmo sorriso malicioso que encarara a judia, ele dormiu.
Ao entardecer seguinte, a jovem judia se aproximava cautelosamente do quarto onde repousava quem ela acreditava ser o mais nobre cavaleiro. Eles mantiveram uma conversa por toda a manhã, apesar dos olhares de reprovação da mãe da jovem. A garota estava encantada pelos contos de guerra e devoção que Teodoro revelara-lhe. Teodoro, com um sorriso garboso e palavras encantadoras, prendera a inocente jovem em um começo de paixão inconseqüente.
Apesar de todas as diferenças, ela estava encantada plenamente por Teodoro e pelo o que ele representava para seu povo. Com um imenso espanto ela parou a porta, quase deixando a bacia com água limpa cair. A visão do templário, prostrado de joelhos em frente a janela, banhado com raios dourados do fim de tarde e agüentando as lastimas de seus ferimentos apenas para fazer suas orações, enchera o seu coração de uma estranha devoção por um homem, um sentimento que a jovem nunca cogitara existir.
Ajoelhado próximo à janela, Teodoro pensava em como fazer para recuperar aquilo que havia perdido. Apesar de seu plano não ter saído plenamente como ele arquitetou, ele conseguiu vitórias valiosas com tudo isso. Seus maiores rivais dentro da Ordem estavam mortos, o veneziano foi levado em cativeiro, podendo assim ainda ser resgatado. Os ferimentos apenas irão dar mais credibilidade para a sua fantástica estória de como ele resgatou os cristãos. Tinha que pensar apenas em uma forma de lucrar com a situação presente.
Ser acolhido e cuidado não seria algo vergonhoso, se não fosse pelo fato de tê-lo sido por judeus. Isso seria uma mancha em sua honra e um possível rombo em suas economias.
No momento em que a jovem adentrou o recinto, Teodoro imaginava uma forma de se livrar da situação. Poderia facilmente matá-las, mas apesar de ser a mais segura forma de apagar essa mancha não seria nunca a mais lucrativa.
- Atrapalho suas obrigações meu nobre cavaleiro? - a voz soou sussurrante, acanhada.
- Jamais, minha bela Sarah. Estava ao final de minhas orações, e creia, o bom Deus me perdoaria caso eu as interrompesse para dar a devida atenção à tão preciosa jóia. _ disse Teodoro, sorrindo, enquanto se erguia com alguma dificuldade - Mas o que a trás até minha presença, minha caríssima dama?
- Vim lhe trazer água para limpar-lhe os ferimentos. - a jovem se aproximava com um sorriso meigo nas faces um tanto ruborizadas pela presença do cavaleiro.
Com o auxilio da filha de Abraão, Teodoro sentou-se na cama. Ele a observava enquanto Sarah retirava as ataduras e limpava os ferimentos. Em alguns minutos o torso de Teodoro se encontrava nú e úmido, seus ferimentos limpos, prontos para serem ungüentados novamente.
- Peço desculpas, minha dama. Não devias dar-lhe tal trabalho, muito menos fazê-la passar pela vergonha de me ver despido. Espero que isso não fira sua honra nem afaste de ti o teu pretendente.
- N-não te preocupes, Teodoro. - o rosto dela encontrava-se rubro como uma romã, seu peito arfava e suas mãos tremiam - Creio que isso não seja tão grave, além de não poder afastar aquilo que não existe.
- Como assim não existe, minha Sarah? Por um acaso teu povo, além de ser cães avarentos, são ignorante e cegos? Como deixar tão preciosa dama sem um pretendente? Esse é o mais pérfido ato que poderiam cometer. Saiba minha donzela, que se eu não fosse preso a uma promessa que fiz ao meu pai de servir plenamente a ordem de Salomão, proteger a Santa Terra e a incompatibilidade de nossas religiões, eu a tiraria como minha futura mulher! - Teodoro fingiu a mais profunda paixão em suas palavras, juntando as mãos de Sarah entre as suas e as beijando.
Esse ato retirara as forças da donzela. Suas cores fugiram-lhe. Lágrimas escorriam por seus olhos, enquanto ela parecia desfalecer. Temendo algo assim, Teodoro afastou-se e borrifou com os dedos um pouco de água na fronte da moçoila.
Com a água ela recuperou aos poucos suas forças. Olhava Teodoro como uma corça assustada, seu peito arfava como se fosse explodir.
- Perdoa-me! Sou um biltre! Devo ser açoitado, não mereço teus cuidados! - Teodoro se jogou ao chão, com mais cuidados e pesar do que faria um apaixonado, mas menos do que faria um ferido. Beijava a base da saia da jovem, fingia uma submissão que nunca antes tinha experimentado.
- Não, não! Não digas tão duras palavras. Por favor levante-se. - tentava erguê-lo a jovem, enquanto sua face era inundada por lágrimas de um coração pleno de felicidades - Eu que sou uma tola, que me deixo guiar pelos meus sentimentos. Tuas belas palavras me deram a maior felicidade que eu terei por toda a minha vida, mas é com pesar que teremos que nos contentar viver separados. Oh, pobre de nós!
Teodoro a observara, em seu intimo gargalhava. O caminho para controlar aquela situação revoltante com as judias estava aberto.
- Infelizmente minha cara. Infelizmente. Se ao menos fosses cristã. Se o fosses! - Teodoro escondera o rosto entre as mãos, fingia soluços, enquanto com uma habilidade gatuna umedecia seus dedões com a língua para depois passá-lo abaixo de seus olhos. O choro mais verdadeiro que poderia providenciar.
- Se eu o fosse meu cavaleiro, no que mudaria nossa situação? - a expectativa e aflição tomavam o corpo da donzela.
- Então eu abandonaria o manto de Templar! Deveríamos antes esperar que meu pai doente fosse para junto do Senhor. Depois iríamos para a Europa, onde seríamos reis!
Emergindo de dentro de suas mãos, Teodoro viu os olhos da jovem brilharem. Ela estava apaixonada e ele ainda prometia-lhe o título de rainha. Por um momento eles se olhavam, até que um sorriso tímido brotou nos lábios de Sarah.
A oportunidade perfeita, ela estava pronta para aceitar, Teodoro só tinha que afastar a possibilidade da mãe estragar tudo.
- Apenas diga que aceita, minha Sarah, então mais logo possível eu retornarei e a buscarei desse local desolado. A batizo agora mesmo, e assim estarás livre da influência de sua mãe.
- Não agora, meu Teodoro. Voltarei quando não tiver o risco de sermos surpreendidos por ela. - apesar de doloroso, ela estava disposta a abandonar o seio da família amada pelo sonho de ser rainha de um bravo guerreiro.
Eles não mais se falaram naquele momento. Sarah terminou de cuidar dos ferimentos de Teodoro, passando o ungüento milagroso sobre os mesmos.
Ao sair do quarto, ela deixou Teodoro com um sorriso de satisfação nos lábios. Teria uma jovem e bela escrava, uma escrava que sabia a formula de um bálsamo milagroso, algo sem preço. Tinha ainda que pensar em como se livrar da matriarca da casa. Quando fosse embora não poderia demorar a retornar, tinha que resolver tudo antes do maldito judeu retornar com suas malditas cabras, de onde quer que ele esteja.
Na mesma noite, Teodoro batizou a jovem Sarah, e a ensinou as orações básicas que ela devia entoar todos os dias. Ao raiar do quarto dia, Teodoro se preparava para partir.
- Venho buscar-lhe o mais breve possível, Sarah. Até lá se mantenha fiel aos ensinamentos que lhe ministrei. Resgatarei meus irmãos em Cristo, não te preocupes, ficarei bem. Tenho a proteção do Senhor e a ânsia de encontrá-la novamente, estarei protegido.
Com essas palavras, Teodoro partiu. Nunca tinha se curado tão rápido de ferimentos, apesar de não estar em plenas condições ainda. Porém, o bálsamo fechara a carne exposta e criara uma crosta sobre os arranhões. Contava com que seu mensageiro tivera entregado o seu recado a Abn al-Fladim, e que o maldito mouro que o derrotou tivesse a decência de ouvi-lo desta vez. Se não o fizesse, morreria, mais o levava e mais uns vinte antes de cair por terra.
Kareem conduzia sua comitiva de forma rápida. Não queria correr o risco de ser surpreendido por cavaleiros em peregrinação. Os cristãos se encontravam amarrados, entre dois grupos de soldados. Depois de um tempo, as reclamações se tornaram constantes, pois os europeus fediam a fezes e urina, liberados por eles durante o ataque.
Sua comitiva chegou em seu lar pouco antes do entardecer do segundo dia, sendo recebido com alegria pelos moradores do palácio, sejam escravos ou homens livres. Entre aqueles que o recebiam estava Mohammed Abn al-Jazir, seu irmão, e uma comitiva de 40 homens, sua guarda pretoriana.
Com uma vênia seguida de um abraço, os irmãos se cumprimentaram. O olhar atento de al-Jazir percorreu por sobre a comitiva, mesmo de longe ele avaliava a mercadoria do veneziano, assim como o pobre europeu e suas filhas.
As ordens para guardar as mercadorias, assim como para banhar os europeus e os levarem aos seus respectivos quartos-prisões foram dadas por Kareem, enquanto ele adentrava seus cômodos, acompanhado de seu irmão.
- E então Ulemá, teve algum problema quanto ao favor que lhe pedi? - disse de forma cínica, porém carinhosa, Mohammed Abn al-Jazir.
- Não, meu querido irmão. Apesar da traição desonrosa do templário, consegui realizar teu intento. Como podes ver, estás sobre meu poder, a carga e os europeus. - a voz de Kareem era respeitosa, apesar de soar incomoda.
- E quanto ao kâfir Teodoro?
- Se te referes ao templário que deveria ser poupado, eu deixei esse decisão sob o julgamento perfeito de Allah. Ele se mostrou um pérfido desonrado, não tinha por que deixá-lo impune. Porém, se esse for o desejo d’O Sábio entre sábios, ele manterá sua vida e virá reclamar suas “posses”.
- Entendo sua decisão, Ulemá. E a aprovo, como aprovo todas as suas escolhas, sempre foste o mais ponderado e correto de nós dois. Porém, é de imediato que saiba que a traição não foi por conta do templário, pois ele nada sabia da adição dos homens além dos que ele havia me informado. - sorri al-Jazir - Agora vos peço humildemente, para manter me aqui, junto aos cativos, até que o kâfir venha buscá-lo.
- Minha casa é a tua casa meu irmão, agora e por todo sempre. - Kareem parou frente a porta de um corredor - Agora com a tua licença, irei lavar-me, tirar todo o sangue e poeira que se acumulou sobre meu corpo, após devo meditar e orar, para tentar limpar o pecado que se acumulou sobre minha alma. - Sem aguardar uma resposta al-Faris retirou-se, sumindo entre as curvas do corredor.
O dia tornou-se noite, quando o mouro Kareem al-Faris se encontrou longe de suas obrigações auto-impostas. Ele ansiava por ver a esposa, porém tinha que tratar de outros assuntos de grande importância para a boa manutenção da paz em seu lar.
A passos largos ele seguiu para sua biblioteca particular, mandando Hariq trazer-lhe o mais breve possível o veneziano, agora já banhado.
O surpreso Angelli foi levado até a biblioteca, diferente da forma que ele imaginava, ainda não tinham atentado contra sua saúde, ao contrário, ele se encontrava confortável entre as paredes dos mouros. Poderia até gozar da estadia, se não fosse pelo medo e pelo desconforto que passara quando o obrigaram a tomar um banho.
O pobre europeu adentrou no cômodo, iluminado por velas e lamparinas a óleo. Nunca tinha visto um local com tantos tomos e papiros, ele sabia que a quantidade de livros ali rivalizava com a maior biblioteca das universidades européias, e sabia também que aquela biblioteca moura estava longe de ser a maior biblioteca dos sarracenos.
As belas cortinas e tapeçarias, assim como a porcelana e luminárias de prata, tudo aquilo cativava o avarento homem. Almofadas de seda espalhadas, jarras e potes da mais fina cerâmica, ornamentos de ouro. Seus passos eram hesitantes, não sabia o que devia fazer ali, como agir.
Ao meio da sala, uma pequena mesa se erguia. Confeccionada do mais belo carvalho, com ornamentos em marfim. Posto em cima da mesma, em cada ponto extremo, separados por uma estatueta de uma criatura de um longo nariz, orelhas e presas, grande e gorda, estava um punhal e um livro, aparentando ser uma bíblia.
Por uns breves minutos o homem olhou para a mesa e seus pertences. Sua mão tremendo pegou o punhal, olhando a lamina, a examinando, foi com um susto que ele deixou o mesmo cair.
- Há uma coisa que por mais que minha pessoa medite e reflita sobre a condição dos europeus, eu nunca irei entender. Apesar de vossa senhoria ter sido bem tratado, alimentado, não termos demonstrado nenhuma hostilidade, desde que chegou aqui, em meio a tantas riquezas e sabedorias, escolheu para analisar primeiro o único objeto realmente ofensivo em toda minha biblioteca. - a voz de Kareem soou fria, ele falava no mesmo idioma latino da região de Veneza, apesar de carregado com um forte sotaque árabe.
Saindo de trás de uma cortina, em sua mão tinha uma pequena caixa de madeira, vestido de branco e dourado, como um grande rei, trazia a cintura sua espada.
Angelli virou-se, desequilibrando por sobre a mesa, caindo pesadamente, arruinando a estatueta. Seu suor frio, seus olhos lacrimejantes, sua insignificância frente à tão augusto ser, não fizeram o olhar do sarraceno serem mais piedosos.
- Agora arruínas meu elefante, trazido do oriente distante. Creio que tuas atitudes selaram teu destino em minha casa, meu precioso italiano. - sua face era fria e imutável como o mais polido mármore.
- Misericórdia meu senhor, misericórdia! Sou um tolo que não sabes o que faz! - num pulo o veneziano estava aos pés de Kareem, os beijando em súplica.
- Acalma-te homem, pois não lhe desejo o menor mal. Erga-te, componha-te. Venho apenas notificá-lo que por tua escolha ofensiva e caráter desastroso, estarás confinado até meu parecer em um recinto separado. Serás alimentado, e terás tuas vontades feitas por um escravo que estará sempre junto de ti.
- Não te preocupes com tuas filhas. Estarão livres para irem onde bem quiserdes em meu palácio. Estarão sempre sobre a tutela de um dos eunucos que acompanham minha mulher, nenhum mal acontecerá a elas.
O homem ouvia as palavras, mortificado, não acreditava em nenhuma delas. Estava arruinado, suas filhas se tornariam prostitutas, escravas para saciarem os soldados e ao mouro cruel. Ele seria frito em óleo ardente, de forma lenta e cruel como ele próprio tinha feito a um judeu, anos atrás em seu castelo em Veneza.
- Para acalmá-lo dou-lhe esse pequeno presente. Espero que gostes do fumo de Damasco, és um dos mais agradáveis dessas regiões - ao dizer essas palavras o árabe retirou-se, deixando ao encargo de Hariq levar o homem até sua cela.
O europeu foi feito cárcere em um confortável e espaçoso quarto. Apesar de não ter janelas amplas, apenas pequenas entradas de ar, era fresco e bem iluminado. Como prometido ele era servido por um belo escravo egípcio, pronto a atendê-lo em tudo que achasse razoável.
As duas belas européias, foram banhadas, vestidas com a mais bela seda, e deixadas livres para andar pelos corredores. Logo elas ganharam o conhecimento suficiente para se aventurarem com menos receio. Confiança em Hariq e no eunuco foi algo mais difícil de adquirir do que em Kareem al-Falis, que logo estava sendo seguido e imitado em alguns costumes.
Em pouco tempo elas estavam encantadas com a polidez, fortuna e honra do árabe, encanto que faziam a mais velha se insinuar para Kareem, o levando a evitá-las.
Os médicos davam boas novas a Kareem dizendo que sua mulher recuperava-se, que apesar dela possivelmente não voltar a ser como era antes, dificilmente ela correria risco maior de piora.
A paz se manteve por alguns poucos dias. Pois com a melhora de Teodoro ele logo chegou ao palácio que deveria ir buscar seus conterrâneos.
Com calma e prepotência, ele atravessou os portões principais, clamando por uma audiência com Abn al-Jazir, ou com o regente daquelas terras.
Em meio ao pátio principal, Mohammad, Kareem e mais alguns guardas receberam o cavaleiro. Com surpresa os mouros viram o cristão sem muitos ferimentos, e os poucos que tinham já cicatrizando.
- Vejo que O Poderoso poupou-lhe a vida, kâfir. - disse com indiferença Kareem.
- Não poderia eu morrer frente à tão pouco. Sou um predestinado do Deus maior, e só morrerei depois de arrancar a garganta do ultimo pagão de tua raça, mouro. - a arrogância de Teodoro despertava a ira dos sarracenos.
-Tua coragem é louvável, Teodoro de Funssac. Porém creio que ela apague tua inteligência. - disse com um sorriso Abn al-Jazir - Mas devo desculpar-me pelo o que lhe acometeu. Infelizmente não encontrei nenhum mensageiro rápido o suficiente para deixar meu irmão a par dos acontecimentos.
- Sem ressentimentos meu bom al-Jazir, agora devo recuperar minhas posses e rumar de volta a Jerusalém. Apresente-me aos malditos que devo fazer sangrar, para assim dar uma real impressão aos meus irmãos católicos que eu vim-lhes salvar a pele. - Teodoro sorria, estava próximo de conseguir seus intentos, não deveria haver mais imprevistos.
- O que queres dizer com “malditos que devo fazer sangrar”? - o olhar frio de Kareem recaiu sobre Teodoro - Não aceitarei que mais sangue seja derramado por você, kâfir. Darei os cristãos e partirás com eles, nada mais!
- Cala-te sarraceno, trato do meu acordo com Abn al-Jazir, limitasse a sua insignificância, cão pagão!
- Bem, saibas que eu sou o senhor dessas paragens, kâfir. Pelo direito que eu tenho, digo-te que nenhum homem cairá por terra sem um bom motivo! - a voz de Kareem soava seca, autoritária.
- Devo concordar com meu irmão, Teodoro. Ele é o senhor absoluto nessas terras, e não irei contradizer tua vontade. Mas como eu tenho um trato contigo, também realizarei tua vontade. - com um sorriso cínico Abn se afastava, fazendo sinal para seus homens se aproximarem - Tu lutarás com meus homens, e aqueles que venceste, serão os mortos. No final, haverá gloria em teu intento homem, mais do que esperavas.
- Não te preocupes, eles não te matarão, mas devo ser justo, se perderes, será vendido como escravo no mercado do Cairo. - com um sorriso vitorioso Abn al-Jazir voltou-se para Teodoro - Espero que aches justa a minha decisão.
Teodoro abriu a boca por duas vezes, mas não conseguiria contestar Mohammed Abn al-Jazir, afinal era de extrema burrice ir de encontro às vontades do “Xeique” da Liga dos Assassinos.
- És dotado de grande justiça al-Jazir, se não soubesse que eras um sarraceno o confundiria com um cristão. - adulou cinicamente Teodoro - Porém, peço-te para deixar escolher meus rivais, um direito de um homem honrado para outro.
- Estejas à vontade Teodoro de Funssac. - disse se retirando para um banco próximo, sendo seguido de al-Falis.
Teodoro passou os olhos e pesou cada um dos oponentes, escolhendo os que ele julgava menos aptos a um combate, afinal ele ainda se encontrava magoado.
Pediu a um escravo que lhe ajudasse com sua cota, enquanto se vestia, ele digladiou-se visualmente com Kareem.
- E por último, por uma questão de honra, eu desafio teu irmão para participar desse embate, de homem para homem, até que um caia por terra. E espalharei entre todos os cantos da terra que ele é um biltre cobarde, caso não aceite esse desafio! - a fúria e arrogância tomaram posse do espírito do Templário nessa hora, ele tinha que se vingar. Assim ele conseguiria tudo que lhe faltava.