Noturno

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Mensagempor Emil em 07 Out 2009, 23:57

Noturno

Era dessas noites bem escuras e frias, embora já fosse primavera. Como se desgarrada da manada composta pelas outras noventa e uma noites do inverno que passara, tentasse infiltrar-se nas noites que correram soltas a seguir, e falhando miseravelmente em camuflagem, e até no mínimo de discrição requerido, sua presença destoante se destacava e soava ainda mais opressora que quando acompanhada pelas suas irmãs. Lá fora chovia uma garoa fina, insistente e muda, que calava a cidade geralmente barulhenta e parecia esconder gritos, adormecer cães, desativar motores, roubando dos típicos sons urbanos o direito de estarem ali.

Se algum desavisado cometesse enfrentar a garoa e parasse em frente àquela casa quase na esquina, ao observar a escuridão que dela emanava, contrastando com a luz produzida pelos tantos postes da rua a alaranjar o roxo do céu e lhe dar uma impressão empoeirada, adivinharia que todos os moradores dormiam. Adivinharia errado, assim são os desavisados. No último quarto, aquele sobre a salinha de jantar depois da cozinha, uma viva alma aproveitava o silêncio ampliado da madrugada para colocar as leituras em dia. Na verdade não; colocar as leituras em dia pressupõe obrigação, e quem lia ali se atrevia a ler por prazer, propositalmente misturando o melhor e o último do dia.

Sentada na cama, enrolada no edredon, esta personagem anônima, distraindo-se dos textos um instante, alimentada pela paranóia que acompanha a nós todos – uns mais, outros menos –, colocou-se a analisar a situação em que encontrava. Ali e naquele momento estaria protegida contra qualquer ataque surpresa, uma vez que justamente no silêncio incomum daquela noite seria impossível a qualquer um andar pelos corredores da casa sem que seus passos fizessem enorme eco, alarmando a todos os residentes, principalmente a quem estivesse acordado. Mal sabia a incauta figura que, em breve, isso que imaginou ser vantagem se revelaria empecilho para sua salvação.

Foi enquanto (não) lia a mesma linha pela quarta ou quinta vez sem conseguir apreender seu sentido – o sono finalmente vinha com seu abraço aconchegante – e se perguntava, sem o mínimo de relação com aquilo que lhe passava pelos olhos, saudade nada, como será que alguém traduz para o inglês eles passarão eu passarinho, que percebeu seu terrível engano: algumas coisas não precisam caminhar para se derrubar sobre suas vítimas. Que diabo!, justamente aquilo que é incorpóreo se aproveita do mais absoluto silêncio.

Pois ali, quando menos se esperava, no momento mais improvável, com a guarda baixa, completamente despreparada, não é que emergiu a rasgar as entranhas do cérebro, pulsando violentamente, ecoando dentro de sua caveira, a idéia para um poema? Fazia mais de dois anos que não escrevia nada, e desgostava de tudo que escrevera até então. Era tal a qualidade de seus versos que chegou a desacreditar que pudesse um dia escrever algo que prestasse. Naquele momento, inclusive, estava a um passo de perder a fé em qualquer poesia. E esta crueldade é justamente uma das bases de seu poder: atacar primeiro justamente os ateus de sua divindade, prolongando o sofrimento daqueles que crêem, aumentando sua angústia de nunca testemunhar, ainda que como alvo de seus arroubos.

Lutando furiosamente para não deixar a idéia escapar, analisou o quarto em volta. Papel havia, não precisava de muito aquela hora; o intuito não era escrever o poema todo, isso se pode arrastar por meses, e até anos, dizem. Não, tudo o que precisava era uma caneta para rabiscar o que muito bem poderia ser o título ou o verso final, ou nem nada de nenhum dos dois. Se anotasse a idéia em algum lugar, sabia que ela não se perderia. Uma pequena vitória na batalha atual e poderia enfrentar a guerra por quanto tempo fosse necessário. Tinha muitos brancos disponíveis, qualquer capa interna de livro serviria. Mas definitivamente não tinha com que cortar todo aquele branco.

E se saísse do quarto? Talvez se a madrugada não estivesse tão avançada teria alguma chance. Mas explicar à família que os acordara por causa de um poema, revirando a casa atrás de uma caneta para se defender, isso se tivesse chance de procurar. O simples toc toc toc de seu andar desesperado, ampliado pelo silêncio sepulcral e pelo eco violento, soaria como uma metralhadora giratória. Pensou na sua desculpa. Se alguém lhe contasse situação semelhante, não acreditaria, chamaria de loucura com toda certeza.

Olhou mais uma vez ao redor do quarto, sentindo o sono lhe apertar os sentidos, a sensação de paz antes da morte por asfixia. Ajeitou a cabeça no lugar, não se podia render agora. Então viu, emborcado desajeitadamente ao lado da cama, aquilo a que dava nenhum valor, e quase odiava às vezes, por colocar um preço em sua voz, e cobrar trinta e cinco centavos por meia dúzia de caracteres – o celular. Recolhendo-o e abrindo-o rapidamente, sem dar-se tempo para pensar, digitou uma mensagem desajeitada, pulando algumas letras e usando abreviações que desprezava; a situação desaconselhava preciosismos. Apertou enviar com força desmedida, temendo que algo desse errado. Quando a confirmação que estava a salvo veio, ponderou que pagou um preço pequeno por uma vitória tão importante.

Jogou o telefone no chão de novo, deitou-se, aninhou-se entre as cobertas. A última coisa que rondou seus pensamentos antes de dormir foi uma dúvida sobre a segurança de sua idéia. Não sabia dizer se entenderia o recado pra si mesma.
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Lutai primeiro pela alimentação e pelo vestuário,
e em seguida o reino de Deus virá por si mesmo.

Hegel, 1807
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Emil
 
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Mensagempor Lanzi em 08 Out 2009, 11:01

Gostei, e muito! Não sei se porque gosto da noite e de escrever durante a noite (esse conto foi escrito durante a noite, não?), ou porque já tive comigo essas mesmas sensações.

A escrita é perfeita. Aliás, mesmo se o título do conto não fosse esse, e se as descrições omitissem a hora da noite, qualquer um imaginaria esse evento numa madrugada. Tudo no texto conflui para isso. A dormência das sensações, o sono, a própria atividade (por em dia as leituras) da personagem no início. E é uma escrita na medida, e assim como a chega a madrugada, o texto vem e vai embora despretensiosamente. Desprentensiosamente, mas nem tanto, porque a última frase abre margens para inúmeras interpretações; uma epifania pode ter sentido somente naquele momento, assim como um poema e uma frase. Acontece que, muitas vezes, desconhecemos aquilo que escrevemos porque nem lembramos o que sentíamos. E aquilo que sentimos na hora em que escrevemos é fundamental para o auto-entendimento. Ora, mas mesmo assim, mesmo que o sentimento se perca, aquela escrita irá adquirir outros sentidos, dependendo do leitor!

Chamo atenção para os detalhes, que, na minha opinião, são o que dão vida a um texto.

Emil escreveu:. Adivinharia errado, assim são os desavisados.


Emil escreveu:Na verdade não; colocar as leituras em dia pressupõe obrigação, e quem lia ali se atrevia a ler por prazer, propositalmente misturando o melhor e o último do dia.


Eu gosto dessas contradições.

Emil escreveu: uma vez que justamente no silêncio incomum daquela noite seria impossível a qualquer um andar pelos corredores da casa sem que seus passos fizessem enorme eco


Mas não vou elencar aqui tudo que há de bom no texto. Tenho de dar espaço aos outros leitores.

A única coisa que me incomodou (e isso não é nenhum "mas") foi o quarto parágrafo. Está bem escrito, mas, deve ser por alguma limitação minha, não entendi nada daquilo ali.

Parabéns! Abraços!
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Mensagempor Cyrano em 08 Out 2009, 14:26

Bom, muito bom. Epifania é assim mesmo, não escolhe momento nem lugar para ocorrer. Lembrei de um episódio de "Scrubs", o da Privada da Epifania... Rs.

Lanzi, eu entendi o quarto parágrafo. A personagem tentava ler alguma coisa e, já abalada pelo sono, começa a apenas passar os olhos. Sabe quando você tenta ler alguma coisa mas sua cabeça viaja e, na verdade, seus olhos só estão percorrendo as palavras e seu cérebro tá trabalhando em outra coisa? Você lê uma, duas, três vezes a mesma frase e nada!

Pois é nesse momento em que a personagem recebe a visita da inspiração. Nesse exato momento em que ela lia sem ler, e viajava na maionese pensando como "Eles passarão, eu passarinho!" pro inglês. Acho que essa frase é do Quintana, né? Em português é um jogo de palavras, mas em inglês fica difícil mesmo, hehehe...

Ah, é isso mesmo. Mário Quintana. O Google não me deixa mentir:

"Estes, os que atravancam meu caminho... Eles passarão, eu passarinho!" (Mário Quintana)

Identifiquei-me bastante com o quarto parágrafo. Váááááárias vezes estou na minha cama e começo a ler sem apreender nada do que estou lendo. O sono é um inimigo cruel nesses momentos, rs...

Parabéns pelo conto, Emil!
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Mensagempor JOE_KR em 27 Jan 2010, 02:04

Adorei teu conto. A forma como está escrito é excelente: a linguagem, as pequenas nuances narrativas... E não "apenas" isso, mas também a maneira como desenvolveu a personagem e seu drama foi fabulosa!!!

Porém, pessoalmente, eu teria feito ela consegui enviar a msg para si mesma por falta de crédito e ela ter ido ao limbo por falta de espaço na memória. Sim... sou um malvadão!!! Mwahhahaa!!!
Minhas Palavras são escolhidas, minhas obras não têm igual; só para o tolo elas são vazias, para o sábio elas conduzem à glória.

- Hammurabi
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Mensagempor Lorde Seth em 12 Mai 2010, 15:21

Há! Parabéns Emil, muito bom.

Contudo, não era necessário gastar os R$ 0,35 com uma mensagem, bastava salvá-la como rascunho! =]

Abraços!
Para viver a realidade, primeiro é preciso acordar do sonho.
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