Tudo se mistura com a noite
“Tudo se mistura com a noite”, dizia uma canção. Nas fronteiras flutuantes da escuridão Oto navegou. Com as mãos no bolso e olhando para os próprios pés. Pisoteou os rebanhos de folhas secas, varridos para os cantos das ruas e calçadas. Elas choravam a cada passada sua. Dobrou três esquinas enquanto descia porque hoje fazia um percurso diferente e não passou pela praça da semana passada - auditório de tempestades. A cidade era uma velha senhora que cultivava roseiras em seu jardim ou um velho resmungão que batia em seu cachorro. Da terceira esquina atravessada Oto avistou num canteiro, na entrada de uma antiga casa, uma árvore ainda mais antiga e, amarrado ao seu tronco com duas correntes pesadas, um homem tacanho. Tinha o pescoço descansado e a cabeça caída sobre o próprio peito. Os braços abertos estavam algemados ao tronco. A outra corrente lhe amarrava a barriga. Estava quase ajoelhado e parecia dormir, sustentado apenas pela corrente que não o deixava cair ao chão. Oto caminhou até ele e adentrou o seu jardim. Não havia qualquer grade ou cerca.
- Senhor... Por favor? – empurrou-lhe com o braço como se faz com animais que estão supostamente mortos. – Tudo bem? O que se passa por aqui?
O homem resmungou, piscou os olhos e bocejou. Olhou para Oto com desânimo e sono.
- Eu é que lhe pergunto; o que se passa por aqui?
- Comigo não há nada errado. Além do que, eu estava apenas passando. Não sou eu quem está amarrado a uma árvore com duas pesadas e reluzentes correntes.
- Ah, pois sim! Há este pequeno detalhe! E presumo que gostaria é de saber qual é o sentido destas correntes. Não?
- Se já se acostumou com essa pergunta, e é o que parece, então significa que está aqui há algum tempo.
- Em cheio! Mas essa sua suposição, apesar de inteligente, não leva em conta que, se vivemos no mesmo mundo, não é lá muito comum encontrar homens da minha idade amarrado em árvores tão tarde assim numa noite tão escura. Quer dizer; não é raro encontrar um velho corajoso como eu? – o homem sorrira-lhe sarcasticamente. Seu sorriso tinha traços provocativos.
- É verdade. Desta vez você está certo...
- Tudo bem. Permita-me explicar para aquele que me acordou de um sonho delicioso. – olhou para os céus e entristeceu-se. – Mas antes, poderia coçar o meu pescoço? – o homem se contorcia. – É que as algemas não me permitem isso, e tem sido uma tortura o dia todo. Quando consigo dormir, alguém como você me aparece! Mas, não tem problema, é melhor alguém para conversar do que o tédio da coceira. E, se não fosse só isso, me é muito difícil dormir nesta posição de tronco! Mas deixemos para lá. Não foi o suficiente para me deixar nervoso. Mesmo assim, depois, se a conversa não for lá muito interessante, eu posso pegar no sono... Mas ande, coce aqui, por favor!
Oto aproximou-se e coçou o seu pescoço, mas com a timidez de um estranho.
- Chamo-me Artur. – recomeçou. A coçada lhe descera como um gole de café pela manhã. - E moro nesta cidade desde que nasci e, se assim aprouver ao destino, nela morrerei. Para ser mais preciso; nasci nesta casa aqui. – apontou a casa com a cabeça. – Nela não morrerei porque já me cansei de nela viver. Vendi esta casa a um rapaz há alguns meses. O rapaz era um forasteiro que tinha a pretensão de destruí-la para transformar o terreno num estacionamento de automóveis. Pois bem, quanto a isso não criei caso algum porque esta parece ter se transformado numa constante; demolir casas antigas, que tanto representam a nossa identidade e a de nossa cidade, para convertê-las em amontoados secos de cascalho. Com isso não tive problemas em me contentar, e foi até de muito bom grado, meu senhor. Até dei algumas dicas ao rapaz, que as acatou todas! Fui bem simpático. Sou um sujeito realista e não me agrada o romantismo daqueles ideais estéticos de quem, se lhe fosse dado o poder de rei do mundo, sem saber, proibiria a atualização das coisas. Uma restauração já não é suficiente para destruir algo? Quer dizer; é claro que o valor das coisas é adquirido com o tempo... – o homem parou por uns instantes e olhou para Oto. Notou certo desinteresse e, como se lhe fosse uma obrigação conservar o interesse de sua platéia, continuou com maior altivez em sua voz – Deixemos isso de lado, oras! A quem interessa reflexões filosóficas neste turno da noite? E depois, rapaz que não me disse o próprio nome, que horas são?
- Meia-noite. Desculpe não ter dito o meu nome, é que fiquei curioso e a conversa não me deu esse espaço. Chamo-me Oto. Só não me pergunte o que me trouxe aqui.
- Caro Oto, se ainda sei desvendar rostos como eu o sabia nos tempos idos, você não é um daqueles que se escondem atrás dos altares para doutrinar o povo. Estou certo? Quer dizer; nesta hora da noite, andando, travando conversas com um louco como eu. Muito respeito tenho eu por gente assim! Não se sinta ofendido com minhas primeiras palavras. Elas só servem é pra quebrar o gelo.
- E eu só não fui embora e não te deixei sozinho porque ainda não me contou a razão de estar amarrado à árvore. – disse Oto, retribuindo-lhe o sarcasmo.
- Ah sim. – Artur endireitou-se. - É que, depois de alguns dias aqui, acabei pegando uma estranha mania. Sempre termino falando aquilo que não deveria. Começo uma frase respondendo à uma pergunta e termino começando outra. Talvez eu tenha sido afetado pelo contato direto e contínuo com esta árvore. Talvez seja uma alergia! – deu uma longa risada. – Ou talvez seja a noite mesmo... A verdade é que me amarrei a ela para que não fosse demolida junto a casa. Tentei fazer o comprador prometer que não a demoliria, tentei convencê-lo em ir ao cartório assinar a promessa, mas não adiantou. Quer por que quer destruí-la! Ao que parecia ele ia tomar posse da casa na semana passada e, num lance de desespero, que acabou me rendendo alguma fama nos jornais da cidade, acabei amarrando-me aqui. Outra gente tem me apoiado, mas nenhum se revezou comigo na corrente. E quem teria a coragem? Os outros só servem pra me trazer comida e me limpar. Não tenho devaneios naturalistas, meu rapaz, mas o valor simbólico e pessoal desta árvore para mim não encontra explicação em qualquer idioma no embusteiro que é este mundo! E veja, não tenho medo nenhum de ser serrado junto com ela! Pois que serrem! Já estou velho, e minha casa não é mais esta! Que eu morra com minha árvore! Eu que não sou nenhum romântico acho isto lindo! Imagine!
- Seria estranho... Por que nunca li nada sobre o senhor no jornal da cidade?
Artur não respondeu de imediato. Olhou para sua casa.
- Não sou homem de mitigar as coisas, Oto. Quer dizer; sou mesmo um pouco contraditório, não sou? É a arma que encontrei para me defender dos corsários desta cidade! Ou você acha justa a decisão do outro?
- Você já pensou em transferir essa árvore de lugar? Plantá-la em outro jardim? Não seria ótimo se você a plantasse no jardim de sua nova casa?, se é que você comprou uma nova casa para viver...
- É claro que já! Não sou lá tão burro assim! Essa foi uma das primeiras cogitações, oras. É óbvio que não há meios de transferi-la, porque senão eu o faria. Suas raízes são profundas e aduncas. Qualquer corte terminaria por matar a árvore, que já anda lá meio mal! Quer dizer; ela é mais velha que eu! Talvez seja a árvore mais velha desta cidade! – disse e começou a coçar a perna direita com o sapato de sua perna esquerda. Conviver com aquele homem seria acostumar-se com suas eloqüentes gesticulações. Ainda atado às algemas, era perceptível que ele era dono delas todas e que não eram conseqüências de algo momentâneo principalmente porque eram naturais acima de tudo.
Oto olhou para o resto da noite e a cidade estava tranqüila. Nada havia naquelas redondezas. Nem um vento sequer. As nuvens eram soberanas no céu. Impediam que as estrelas rissem daquelas piadas.
- Artur... – um olhar sério foi a resposta ao chamado. – Minha hora chegou. Tenho de ir. – caminhou em direção à rua. Ia descer.
- Pense no meu caso, Oto. Preste atenção nos jornais! Ajude-me nesta luta! Sei que está pensando; por que vendi a casa, e por que não me desfaço dessa árvore? É injusto com a casa não apegar-me a ela, não é? Sei que é isto o que pensas! Foi esta a pergunta que todos me fizeram. Pense nisso, Oto! Pense na resposta e a traga de presente para mim! Conheço-te há pouco tempo, mas confio em você. Pense!
- Não sei se terei tempo, Artur. Adeus! – disse, e misturou-se com a noite.
À distância era Artur quem se misturava com a árvore.