É um conto de ficção científica que escrevi recentemente. Dividido em três partes, sendo a primeira a maior de todas.
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Encontro, Parte Um
As recentes descobertas no campo astronáutico e científico haviam causado muito rebuliço nas tortuosas vielas de M, onde se encontrava o Centro Científico e Astronáutico Mundial. A esta altura era impossível garantir um lugar para se sentar no salão de reuniões, ainda que a conferência fosse restrita ao público especializado e o caso não houvesse sido divulgado a mais ninguém – mantinha-se um sigilo regular. O centro estava tumultuado e no meio do salão de mármore verde, Fizz, diferentemente dos outros cientistas que ali estavam, esperava pacientemente a poeira abaixar para começar o falatório. A gritaria ecoava solta no formato em cúpula do salão.
Fizz era um nativo de L. Sua pele era um pouco mais esverdeada, com poucas manchas, e por isso era considerado muito belo. Os cabelos apresentavam um alaranjado que lembrava o pôr-do-sol e embora os primeiros sinais de calvície fossem perceptíveis, tinha apenas vinte e oito anos. O cientista apresentava um costume bem peculiar de manter as orelhas longas caídas sobre os ombros, os que não o conheciam – era raro – olhavam-no de maneira estranha por causa disso. Era magricela, porém não tão alto e nem tão baixo. A sua paciência inabalável era rara entre o povo lepriano, além de ser muito tranqüilo, o que o diferenciava, uma vez que era uma característica bem comum neste povo a agitação. E assim como quase todos os que estavam presentes no salão ele vestia longos tecidos coloridos, típico dos cientistas locais. Na narina usava um alargador devido suas dificuldades respiratórias.
Logo que o alvoroço terminou – ou diminuiu – os leprianos puderam se focar no centro do salão. Não foram disponibilizados lugares suficientes para todos os convidados, portanto ainda havia alguns de pé com agendas em mão para fazerem anotações, outros carregavam gravadores e os mantinham suspensos no ar. Todos estavam muito atentos, cochichando uns com os outros sobre o que viria a acontecer. Muita especulação de pouco valor científico. A verdade é que estavam extremamente fascinados com o recente avanço.
- Senhores, – começou Fizz lentamente e com muito cuidado para não atropelar as palavras - tenho certeza de que todos vocês me conhecem, mas ainda assim, vou apresentar-me: meu nome é Fizz Emprey e sou um cientista astronáutico. Vejo que muitos vieram de longe para tomar conhecimento do que acontece, então não demorarei a expor para vocês as nossas maravilhosas descobertas porque creio que alguns ainda não tomaram ciência delas.
Um pequeno distúrbio murmurado fez Emprey ainda completar: “- Sim, haverá momento para perguntas”. Ele se levantou e começou a caminhar lentamente ao redor do interior da circunferência formada pelas cadeiras fofas e azuladas, olhando diretamente para os espectadores, até cumprimentou alguns educadamente, como era de praxe. Seus passos ecoavam no recinto recheado de pequenos sussurros. Um pássaro dourado pousou na clarabóia e o fez olhar para cima.
- É de conhecimento cientifico que passamos por um processo de estagnação intelectual. – fez uma pequena pausa para organizar melhor as idéias – Digo isto por causa da política adotada por nós, as faixas dos mares do sul, há exatos vinte anos. – ouviram-se cicios. – A política a qual me refiro é da dieta das pílulas, ou regime das pílulas, como vocês preferirem, apesar de que os comprimidos não se limitam somente à alimentação. Sabe-se que a política das pílulas só é usada nas faixas dos mares sul, afinal, é a única região que dispõe de infra-estrutura para botá-la em prática.
- Sei que o grande público ordinário não tem sequer metade do conhecimento que temos sobre a rotina das cápsulas. Reconheci alguns rostos aqui que provavelmente vieram das faixas dos mares do norte, portanto, vou fazer uma pequena introdução sobre essas cápsulas, pois tenho certeza de que vocês ouviram falar sobre as mesmas, mas se não moram aqui então devem ter pouca experiência sobre o assunto, sendo ele essencial para o que virá a seguir.
- Há vinte anos o consumo de drogas, medicamentos e pílulas era muito comum. Os avanços na indústria farmacêutica contribuíam severamente para aumentar a intensidade com que essa prática se disseminava. Cada vez mais havia pílulas para menores necessidades, que sequer precisavam destas. Como fazer com que as pessoas usem aquilo que elas não precisam? – alguns de vocês, mais jovens, devem estar se perguntando. Eu respondo que é simples; propaganda. E não tardou para que quase toda a população leiga e comum usasse esses comprimidos para os mais diversos motivos; sono, enxaqueca, fome. Com essa demanda se elevando rapidamente, as indústrias farmacêuticas obtiveram renda suficiente para investir nessa área que se alargava. Mais tecnologia e pesquisa e a revolução chegou com a pílula para alimentação. Não preciso nem lhes explicar o conflito que isso causou, mas alguns de vocês devem saber só através dos livros; antigamente a alimentação era orgânica para todos, e não só para nós cientistas. Pode parecer repulsivo para alguns que aderiram à dieta das cápsulas, mas é verdade. E essa idéia de conservar o meio ambiente hoje em dia é universal por causa da publicidade feita naquela época. Sustentavam o argumento de deixar de matar animais e plantas para consumirem as drogas. Até que é um ideal muito belo, mas hoje já sabemos como esses comprimidos podem ser prejudiciais.
Todos olhavam muito atentamente para Fizz, mas não deixavam de comentar uma ou outra palavra do que ele dizia, sempre com cochichos direcionados ao nada. Ele se sentou novamente e tomou um bom gole de água. Esse já fora um tema muito polêmico em tempos passados, mas estava sendo deixado de lado hoje em dia, ao menos para as massas.
- Os problemas a qual me refiro são vários. – Continuou - O nosso organismo foi feito para ações naturais. Hoje temos pílulas para os mais diversos meios e, como sabem cada uma tem uma cor. Dependendo da intensidade da pílula azul, pode-se dormir mais ou menos e continuar sem sono. Dependendo da intensidade da pílula rosa, pode-se descansar ou relaxar inercialmente. Dependendo da intensidade da pílula marrom, podemos escolher até mesmo o tipo de comida que iremos sentir em nossas bocas, enquanto a substância liberada garante a nutrição. Podemos falar da intensidade da pílula vermelha, que serve para o exercício físico. Ou até mesmo a pílula amarela, que serve para as jornadas de trabalho. Há dois dias vocês puderam notar que chegou ao mercado uma nova pílula; a preta, que serve para estimular o raciocínio. Nesse ponto, garanto que as indústrias farmacêuticas atingiram nosso ponto fraco, porque defendíamos a idéia de que as drogas limitavam as pessoas. E embora isto seja comprovado, nunca conseguimos levar essa informação às multidões, pois é conveniente aos mandantes terem o controle sobre uma população limitada. Com felicidade, posso dizer que o nosso ramo ainda não foi atingido por esse regime totalitário de comprimidos. – fez uma pausa para mais um gole de água – Tenho certeza de que vocês exigem que eu lhes explique como essa dieta e rotina limitam as pessoas. Pois bem, irei explicar.
- Fizemos estudos que indicam a presença de uma substância em todas as pílulas. Essa substância, apelidada de SUB13, estimula em nosso cérebro a liberação de prazer, semelhante ao gozo, mas se manifesta de maneira mais branda e imperceptível ao nosso consciente. O intrigante é que essa substância prazerosa só é liberada quando fazemos aquilo que a pílula nos induz. Vou lhes dar o exemplo do trabalho: tomo a pílula amarela depois do almoço para ir trabalhar na fábrica, trabalho oito horas sem me cansar e fico feliz no final do dia. Essa felicidade só é possível se o indivíduo trabalhar logo após tomar a pílula amarela. O serviço se torna suportável, além de edificante e prazeroso devido a essa substância. Isto serve para outras pílulas do tipo. Outra constatação que tivemos é de que os comprimidos garantem ao nosso corpo menor imunidade. Quer dizer que uma vez assimilado a essa rotina é muito difícil sair dela. Já experimentamos vômitos, tonturas e diarréia pesada logo nos primeiros dias ao abandoná-la. Aquilo que consumimos é sintético e em grande quantidade, portanto prejudicial ao organismo. Há mais: as drogas cortam a liberdade de pensamento, sendo permitido somente fazer sem se tornar uma ação prejudicial aquilo que cada comprimido estimula. Apesar dos argumentos das indústrias farmacêuticas, precários em valor científico, é raro encontrar algum cidadão ordinário na faixa dos mares do sul que não seja adepto dessa rotina. Mas, ao tomarmos ciência da esquematização, proibimos os cientistas a aderirem a esse regime, até mesmo os proibimos de usar a pílula preta, que estimula a criatividade e raciocínio. É muito difícil convencer as pessoas comuns de que as cápsulas são prejudiciais, ainda mais com o valor de alimentos orgânicos atingindo níveis estratosféricos.
Fizz já estava cansado de falar. Apesar de ter muita experiência no assunto, seu cuidado para selecionar as palavras e a busca pela clareza ao discursar lhe deixavam exausto. Tomou outro bom gole de água e pediu para lhe trazerem mais. Iria recomeçar. Devido o esgotamento, decidiu não se prolongar muito mais.
- As nossas descobertas estão contextualizadas. Referem-se ao campo psicológico, neurológico, astronáutico e farmacêutico. – Se levantou para falar mais claramente – Constatamos que nosso cérebro possui algumas habilidades inerentes ao espaço exterior de nosso corpo, a qual ele está ligado imaterialmente; o cosmo. Se estimulado devidamente, a mente pode se desprender e trafegar pelo universo de maneira semelhante aos sonhos, que nada mais são do que isso. O problema é que os sonhos são manifestações do contato de nossa mente com o cosmo, mas de maneira mais simplória, uma vez que ao sonharmos não estamos estimulando o nosso cérebro devidamente para o desprendimento. Isso acontece porque o cérebro naturalmente libera uma capacidade mínima do líquido e o nosso tráfego, durante o sonho, acaba sendo totalmente distorcido e involuntário – ou até mesmo nem acontece, por isso não podemos considerar nossos sonhos como se fossem verdadeiros, mas com a devida quantidade de substância, podemos projetar nossa mente pelo espaço e vagar pelo mesmo de maneira ilimitada, percorrendo velocidades e distâncias infinitas. Sendo a mente – imaterial - uma expressão ligada ao cérebro – material, ela está impassível às leis da física. Desse modo é possível deter o controle sobre a mente e o que vemos ao navegar pelo espaço é a realidade sujeita a pequenas interpretações - porque vemos com a mente e não com os olhos - sem comprometer o produto final.
A desordem que se procedeu no salão foi indescritível. Os leprianos corriam uns sobre os outros enquanto gritavam contra o outro lado do círculo de cadeiras. Ouviam-se urros de admiração. Possivelmente era essa uma das maiores descobertas científicas dos últimos cinqüenta anos, e continuaria sendo nos próximos cinqüenta, sem sombra de dúvida. Fizz não se tornou impaciente porque previa o alvoroço. Sentou-se tranquilamente e sabia que se nenhuma atitude fosse tomada o caos tardaria muito a se acabar. Ia pedindo com serenidade e frieza para que aguardassem o término do discurso. Havia mais porvir:
- Deixem-me terminar senhores; a última descoberta é especificamente ligada ao período histórico em que vivemos. Inventamos uma pílula que ao ser ingerida possibilita em nosso cérebro a liberação de mais substância, a quantidade necessária para o desapego de nossa mente. Isso há dois meses, mas tudo feito seguindo os menores cuidados para serem evitadas fatalidades. Vocês se perguntam; para que tudo isso? Mais uma vez estamos estabelecendo uma ligação com o contexto histórico em que vivemos. Buscamos incessantemente vida inteligente fora de L. Com o desprendimento da mente, fazendo com que ela possa viajar pelo espaço com velocidade incomensurável, será possível encontrar planetas não só habitáveis, mas habitados e com raças inteligentes, que talvez possuam essas mesmas habilidades cerebrais que nós, estabelecendo assim um diálogo imaterial. Sei que pode ser muito difícil encontrar esse planeta e esse povo - também muito complicado estabelecer um diálogo - pois temos um conjunto quase infinito de corpos celestes. Mas com o determinado tempo para a pesquisa e com o treinamento necessário, garanto que poderemos triunfar e alegar a maior descoberta de todos os tempos. O Projeto L será iniciado amanhã e já escolhemos o agente. Está aberta a sessão para perguntas.