Trago aqui um conto meu que foi Destaque da Quinzena na antiga Spell. Apreciem, e se possível, comentem!
Chero!
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Eles...
A quina superior da sala abrigava a pequena aranha. Ela movia-se, ágil a tecer com maestria a rede que prenderia seu jantar, sem se preocupar com o que acontecia alguns metros abaixo de si. Ainda bem. Realmente ela não teria paciência para aquela aula. As paredes cheiravam a mofo, infiltradas pelas fortes chuvas que ocorriam. E era exatamente encostada em uma dessas paredes que estava Érika.
Para ela existia apenas o relógio de parede com seus tique-taques infindáveis. Três mil e seiscentos tiques para uma hora, mais outra quantidade imensa para outra hora. Cada tique como um martelo, cada taque como uma marreta. E a angústia... Ânsia de fim de aula. Olhava para o quadro-negro e não conseguia desvendar o universo cognitivo daquela professora. Um conceito, uma seta, uma palavra circulada, o desenho de uma tigela de comida, a assinatura do exibido Walter, um coração com o nome de um casal qualquer de outro turno. Corre tempo sem passar.
A professora, se para ela olhasse, Erika dormiria. Ela tinha a cara do sono, jeito do sono lerdeza característica do sono. Perfeito para uma noite chuvosa em plenas 21:45. O olhar da professora semimumificada mostrava que ela nunca teve uma vida muito movimentada mesmo. Não há brilho, não há vida, não há fé. Rugas amontoam-se em pontos estratégicos do seu rosto, revelando que o tempo não é pai, e sim padrasto, como já afirma o dito popular. O batom vermelho ressecado em sua boca denuncia que já vinha de outro trabalho, coisa notada também nos seus cabelos, que formavam um coque grisalho desalinhado no alto da cabeça. E tinha pouco mais de 1,60m de altura, o que dificultava vê-la do fundo da sala.
Felizmente – ou não – Erika havia sentado em uma carteira no início da sala naquela noite. E já que nada tinha de melhor para fazer além de esperar, aguardou pacientemente os tique-taques do relógio culminarem na sirene que anunciava o fim da aula, enquanto incontáveis palavras saíam da boca pequena da pequena senhora que ministrava a aula. Érika desvendava aquelas palavras também.
E eram palavras que nada tinham a ver com o universo de Érika ou com o de qualquer pessoa. Igualdade, direitos, liberdade... Essas palavras entravam pelos ouvidos das poucas pessoas que ainda não tinham adormecido como pílulas, cápsulas de entorpecer. O bureau da professora continha as provas que todos esperavam em sua superfície, além de uma Constituição de capa esverdeada e uma misteriosa pasta preta que aquela mulher levava onde quer que fosse. Um dia Érika encontrou com a senhora em pleno sábado à tarde no shopping e lá estava a maleta acompanhando.
O chão da sala parecia-se com o piso de uma daquelas casas em estilo colonial, era uma daqueles jogos de cerâmica que unidos formavam uma figura maior. Érika absorvia-se em tentar montar aquele desenho no chão quando foi surpreendida por alguém que lhe jogara no colo sua prova. A nota era razoável. Oito é o suficiente para passar. Naquele momento o piso era mais importante.
Piso-tique. Piso-taque.
Tentou até perder a paciência formar aquela gravura, quando percebeu que a maioria dos seus amigos fora embora e que só permanecia em sala alguns dorminhocos, a professora e eles. Sim, eles. Os únicos motivos da angústia e espera eternizados naquelas horas curtas. Eles sorriam para Érika. A professora deu boa noite e saiu.
Érika olhou-se no pequenino espelho que levava sempre na bolsa. Será que daria certo? Será que eles e eles seriam perfeita simbiose? Arranjou seus cabelos negros encaracolados prendendo-os desleixadamente e deixando à mostra seu pescoço moreno e suas têmporas rosadas pela timidez. Levantou-se, tomou sua bolsa e seus cadernos, tentando disfarçar que as pernas tremiam ao pensar neles, que estavam ali tão perto.
Ela sentou-se mais ao fundo da sala, reabriu o caderno e tremulante tomou um bilhete, entregando-o ao rapaz em sua frente.
“Márcio, você sabe que a ti só posso escrever, sou muda. Nada tenho a te falar, porém muito no coração. Todo o meu desejo neste momento é sinceramente um beijo teu”.
Eles mais uma vez sorriram para ela, e foi então que Érika os conheceu. Márcio pôs as mãos cuidadosamente sobre as de Érika e eles se encontraram. Eles simbióticos, eles perfeitamente juntos até o próximo tique-taque: Os lábios.
(Elara Leite)