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Mensagempor Elara em 23 Abr 2008, 14:34

Olá amigos,

Trago aqui um conto meu que foi Destaque da Quinzena na antiga Spell. Apreciem, e se possível, comentem!

Chero!

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A quina superior da sala abrigava a pequena aranha. Ela movia-se, ágil a tecer com maestria a rede que prenderia seu jantar, sem se preocupar com o que acontecia alguns metros abaixo de si. Ainda bem. Realmente ela não teria paciência para aquela aula. As paredes cheiravam a mofo, infiltradas pelas fortes chuvas que ocorriam. E era exatamente encostada em uma dessas paredes que estava Érika.

Para ela existia apenas o relógio de parede com seus tique-taques infindáveis. Três mil e seiscentos tiques para uma hora, mais outra quantidade imensa para outra hora. Cada tique como um martelo, cada taque como uma marreta. E a angústia... Ânsia de fim de aula. Olhava para o quadro-negro e não conseguia desvendar o universo cognitivo daquela professora. Um conceito, uma seta, uma palavra circulada, o desenho de uma tigela de comida, a assinatura do exibido Walter, um coração com o nome de um casal qualquer de outro turno. Corre tempo sem passar.

A professora, se para ela olhasse, Erika dormiria. Ela tinha a cara do sono, jeito do sono lerdeza característica do sono. Perfeito para uma noite chuvosa em plenas 21:45. O olhar da professora semimumificada mostrava que ela nunca teve uma vida muito movimentada mesmo. Não há brilho, não há vida, não há fé. Rugas amontoam-se em pontos estratégicos do seu rosto, revelando que o tempo não é pai, e sim padrasto, como já afirma o dito popular. O batom vermelho ressecado em sua boca denuncia que já vinha de outro trabalho, coisa notada também nos seus cabelos, que formavam um coque grisalho desalinhado no alto da cabeça. E tinha pouco mais de 1,60m de altura, o que dificultava vê-la do fundo da sala.

Felizmente – ou não – Erika havia sentado em uma carteira no início da sala naquela noite. E já que nada tinha de melhor para fazer além de esperar, aguardou pacientemente os tique-taques do relógio culminarem na sirene que anunciava o fim da aula, enquanto incontáveis palavras saíam da boca pequena da pequena senhora que ministrava a aula. Érika desvendava aquelas palavras também.

E eram palavras que nada tinham a ver com o universo de Érika ou com o de qualquer pessoa. Igualdade, direitos, liberdade... Essas palavras entravam pelos ouvidos das poucas pessoas que ainda não tinham adormecido como pílulas, cápsulas de entorpecer. O bureau da professora continha as provas que todos esperavam em sua superfície, além de uma Constituição de capa esverdeada e uma misteriosa pasta preta que aquela mulher levava onde quer que fosse. Um dia Érika encontrou com a senhora em pleno sábado à tarde no shopping e lá estava a maleta acompanhando.

O chão da sala parecia-se com o piso de uma daquelas casas em estilo colonial, era uma daqueles jogos de cerâmica que unidos formavam uma figura maior. Érika absorvia-se em tentar montar aquele desenho no chão quando foi surpreendida por alguém que lhe jogara no colo sua prova. A nota era razoável. Oito é o suficiente para passar. Naquele momento o piso era mais importante.
Piso-tique. Piso-taque.

Tentou até perder a paciência formar aquela gravura, quando percebeu que a maioria dos seus amigos fora embora e que só permanecia em sala alguns dorminhocos, a professora e eles. Sim, eles. Os únicos motivos da angústia e espera eternizados naquelas horas curtas. Eles sorriam para Érika. A professora deu boa noite e saiu.

Érika olhou-se no pequenino espelho que levava sempre na bolsa. Será que daria certo? Será que eles e eles seriam perfeita simbiose? Arranjou seus cabelos negros encaracolados prendendo-os desleixadamente e deixando à mostra seu pescoço moreno e suas têmporas rosadas pela timidez. Levantou-se, tomou sua bolsa e seus cadernos, tentando disfarçar que as pernas tremiam ao pensar neles, que estavam ali tão perto.

Ela sentou-se mais ao fundo da sala, reabriu o caderno e tremulante tomou um bilhete, entregando-o ao rapaz em sua frente.

“Márcio, você sabe que a ti só posso escrever, sou muda. Nada tenho a te falar, porém muito no coração. Todo o meu desejo neste momento é sinceramente um beijo teu”.

Eles mais uma vez sorriram para ela, e foi então que Érika os conheceu. Márcio pôs as mãos cuidadosamente sobre as de Érika e eles se encontraram. Eles simbióticos, eles perfeitamente juntos até o próximo tique-taque: Os lábios.

(Elara Leite)
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Mensagempor Malkavengrel em 24 Abr 2008, 00:13

Adorei, não foi atoa que foi Destaque.

Pergunto, estudante que que essa menina, direito constinucional? xP

Achei muito boa a comparação do bater do relogio com batidas de martelos. A imerção do personagem na falta de atenção e na noção de "falta de interesse".

No fim muito bom como de costume.

Até mais.
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Mensagempor laharra em 26 Abr 2008, 14:06

Lindo texto, Elara. Muito bem conduzido e finalizado. Dá para perceber que você entrou nele com a idéia do que queria e a executou com perfeição. Me lembrou meus momentos perdidos na sala com o pensamento totalmente voltado à uma garota antiga :cool: É impressionante como a aula fica desinteressante e as coisas mais banais passam a se tornar grandes, como o piso e o tique-taque do relógio.

Só uma curiosidade. O nome Érika foi escolhido ao acaso?

Parabéns pelo texto.
Tentando encontrar inspiração para terminar o conto abaixo:
O Som do Silêncio: Parte IV - A decisão
Reger está às vésperas de uma batalha onde decidirá seu futuro. Durante o que podem ser seus últimos momentos com a Espada e com Alyse, ele se pega pensando sobre a validade de suas aspirações. Acompanhe o conto no link a seguir:
http://www.spellrpg.com.br/forum/viewtopic.php?f=24&t=1067
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Mensagempor Elara em 28 Abr 2008, 14:08

Malka,

Na verdade pensava em uma moça de ensino médio, que estivesse estudando alguma disciplina como Sociologia. Antigamente, havia esse tipo de disciplina na escola. Eu ainda peguei Sociologia na sétima série, depois, tiraram do currículo escolar... Uma pena...

A idéia dos tique-taques com martelos e marretas veio de um pequeno relógio que tenho no meu quarto. À noite, quando tudo está silencioso, os tique-taques dele literalmente martelam minha cabeça. Especialmente em noites de insônia, como a que este texto foi escrito.

Laharra,

Nhaaaaaam, que bom que consegui remetê-lo a um fato passado.^^'

Sim, o nome Érika foi escolhido ao acaso. Não é nada com vc não! :rolando: Sei que esse nome lhe persegue, mas foi só uma coincidência. Esse texto foi escrito muito antes de saber da marcação que esse nome exerce sobre vc^^.

Chero pra todos!
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Mensagempor Lanzi em 17 Mai 2008, 02:03

Bem executado e bem dosado. O estilo de escrita não chama a atenção, mas também não comete deslizes, já que não é repetido. Só não é enfeitado, e talvez nem deva ser.

Eu não havia lido a introdução, dizendo que ele já havia postado. O interessante foi que me lembrei dele no meio, lembrei que já tinha lido, mas foi uma lembrança bem remota, de modo que muito provavelmente a minha idéia sobre ele mudou.

Destaque para as divagações devido a falta de interesse da Érika, que ficaram bem colocadas. Fora isso e o suspense no final, não há nada no texto que me chamou muito atenção.

Parabéns.
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Mensagempor Elara em 19 Mai 2008, 15:59

Lanzi,

Mas, pelo que vejo, algumas coisas prenderam (ao menos um pouco), sua mente ao texto. O que já é um grande avanço para mim. =)

Chero!
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Mensagempor Lorde Seth em 28 Fev 2009, 14:47

Legal Elara, gostei de seu conto, bem escrito e bem elaborado.

Continue assim. E além de um flashback, traga uma coisa nova também.

Abraços!
Para viver a realidade, primeiro é preciso acordar do sonho.
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Mensagempor Lanzi em 01 Mar 2009, 13:19

Uai Elara. Você já não postou esse conto aqui mesmo nesse fórum?

viewtopic.php?f=24&t=2291
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Mensagempor Elara em 02 Mar 2009, 14:14

Bem lembrado, Lanzi.

Uni o tópico com o da primeira postagem e exclui a dupla mensagem, para aproveitar a resposta do Seth.

Obrigada por estar atento.

Chero!
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Mensagempor Dahak em 08 Mar 2009, 19:21

Lalinha!
Tudo bem linda?
Espero que sim.

É muito acalentadora a forma como você escreve, sabia?
Não me interprete mal, não quis dizer que dá sono, lol, quis dizer que é confortante, que é suave, que é doce.

É também muito gostosa a forma como você encaminha as imagens do seu conto, as formas que delineia mas que não desenha, a proposta de nos fazer seguir sua trilha de pensamentos.

Fazendo minhas parte das palavras de um filósofo, vem na medida certa entre a orientação do seu pensamento sem me colocá-lo pronto e esquematizado. Meus parabéns por isso =)

Esse trecho demonstra parte do que eu disse:
Elara escreveu: Cada tique como um martelo, cada taque como uma marreta.

Uma coisa que só a Elara sabe fazer XD
Aquele toquezinho especial, todo seu, pode ser visto aí.

Tenho dois toques para fazer ^^
1 - Em alguns momentos você acentua Érika, em outros não.
2 - O nome se repete muitas vezes.

Um grande beijo!

Dahak Out
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