Castigo

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Castigo

Mensagempor Heliot em 09 Set 2007, 21:03

Repostando um conto do antigo fórum. Espero que gostem.

Castigo

A noite já se mostrava por completo. As estrelas apareciam de modo tão absoluto que chegavam a me assustar. Mas era sempre assim no deserto. As noites, apesar de muito frias, sempre mostravam um céu límpido, tão belo que quase fazia valer a pena queimar a pele durante o dia para esperá-lo. Pena que isso não mais me consolava.

Olhando fixamente para as chamas que crepitavam na fogueira – feita com minhas últimas reservas de madeira – eu os esperava. Não poderiam demorar muito. Talvez fosse melhor me preparar enquanto eu ainda tinha tempo.

Levantando-me sem muita pressa, eu limpo minha armadura, que já estava bastante coberta de areia, trazida pela última tempestade, naquele dia mesmo. Assim que termino de limpá-la, visto-a. Era um ritual que costumava me deixar bastante entediado, mas a luta daquela noite seria especial. De certa forma, eu saboreava colocar cada peça de minha vestimenta de guerra. Era uma das poucas coisas que não me deixavam sufocado naquilo tudo. Ironicamente, a armadura dificultava a minha respiração.

Para finalizar a ação, eu desembainho minha espada, e, com gestos que pareciam ser feitos por um menino que brincava, reviso algumas táticas que poderiam ser úteis durante a luta. Como aquela espada era leve... parecia ser parte do meu corpo.

Guardo minha espada. Visto uma capa vermelha sobre a armadura. Aquele era o símbolo dos generais do meu povo, a elite de nossos guerreiros. Um dos poucos orgulhos que eu ainda possuía. Obviamente, não estava disposto a abrir mão de ostentá-lo mais uma vez.

Escuto suas vozes. Não poderiam ser outras pessoas. Ponho-me em guarda, esperando que surjam, sem sentir medo ou aflição. Não tinha que me preocupar com ninguém a não ser comigo mesmo. Era apenas eu contra todos eles. E uma sensação de onipotência invadia minha alma. Acho que a arrogância era um de meus maiores pecados.

Talvez eu nunca viesse a descobrir o motivo que os levava a gritar durante a ação. Não seria muito mais fácil aproximar-se furtivamente para me apanhar de surpresa? Com a areia do deserto impedindo seus passos de produzir sons audíveis, a escuridão me impedindo de enxergar com clareza sua aproximação e o vento tomando conta de meus ouvidos, seria simples até demais me emboscar.

Mas eles não pensavam assim. Agiam de acordo com suas emoções, e não seus pensamentos. Eram como animais. Sentiam uma sede de sangue quase tão grande quanto a minha. Às vezes, no entanto, eu sentia inveja de sua capacidade de gritar, de exaltar sua fúria, exaltar seu deus e seus sentimentos. Eu queria poder fazer isso.

Ao todo eram quase quarenta. Um pequeno batalhão. Pelo modo como corriam, pelas suas roupas e pelas espadas sarracenas, eram nativos daquele lugar que eu amava odiar. Meu prazer em matá-los seria imenso. Já não era mais uma questão de religião, de ambição ou o que quer que tenha me levado até ali. Eu precisava matar. Eu queria matar.

Conforme se aproximavam, os que estavam mais à frente começavam a se afunilar. Os mais bem preparados pensavam que podiam me matar sozinhos e se desgarravam do grupo. Tolos.

O primeiro a chegar perto não teve tempo de tentar. Sua cabeça foi separada do corpo tão rapidamente que ele com certeza nem sentiu. Talvez tenha sido o mais bem-aventurado de todos os que se encontravam lá naquela noite. O segundo tentou me decepar a mão. Mas ao errar o golpe perdeu o braço.

O terceiro, o quarto e o quinto morreram de modo idêntico: acertei-lhes o abdômen com força, aproveitando a velocidade que eles já haviam adquirido para cravar a espada ainda mais profundamente. Enquanto isso, eu avançava para enfrentar a massa que ficou atrás dos primeiros combatentes.

Nenhum deles era realmente brilhante com a espada. Mas todos eles gritavam. Os gritos que eu não era capaz de dar. Aquilo que eu nunca seria capaz de fazer. Eles pensavam que se tornavam mais fortes com isso, mas na verdade só aumentavam a minha fúria. Quanto mais alto gritavam, mais rapidamente morriam. Não deixava de ser um presente para eles.

Quantos ainda sobravam? Numa contagem rápida constatei que eram uma dezena. Mas destes, três desistiram e correram na direção contrária, enquanto os outros sete os amaldiçoavam. Aproveitando este momento de distração, passei ao fio da espada outros dois. Agora eram cinco.

Se eles tivessem qualquer arma que pudesse me acertar a distância, eu teria morrido. Não compreendia como nenhum deles podia ter levado um arco, uma funda. Nem mesmo uma pedra. Um... dois... três mortos a mais. Apenas dois soldados para me enfrentar. Uma desvantagem que eles jamais calculariam com precisão. Um deles já não mais achava seus gritos tão eficientes. O outro ainda mantinha intacto o espírito da batalha. Como prêmio, eu o estoco enquanto ele corre numa investida contra mim.

Meu divertimento já estava quase acabando. Seria sensato fazer a luta demorar um pouco mais? Qualquer que fosse a resposta, eu o fiz. Deixo-o atacar. No lugar de lhe cravar a lâmina no peito, eu simplesmente defendo seus inofensivos ataques. Aquele homem perdeu a luta antes mesmo que ela começasse. Afinal, ele não acreditava na sua chance de vencer.

O penúltimo golpe foi ridiculamente fácil de defender; já era a hora de terminar aquilo. Num movimento simples, atinjo parcialmente a mão que segurava a espada. Arranco-lhe fora o polegar e o indicador, e o pobre diabo larga a espada, enquanto seu sangue mancha a areia.

Ele fica de joelhos, curvado pela dor e pelo medo. Fraco.

Aproximo-me e encosto a lâmina agora rubra de minha arma ao seu pescoço.

- Nem ao menos tentaste me derrotar. Somente por me achar muito superior, anulaste tuas chances por completo. Vais morrer agora. Mas deixo-te dizer uma última palavra.

Ele não poderia compreender a minha língua. Mas de alguma forma compreendeu o meu gesto e meu tom de voz. Escolhe palavras ininteligíveis para serem suas derradeiras. Provavelmente clamou o perdão de seu deus. Não me importaria com isso numa outra situação. Mas ele manifestou-se através de um grito.

Novamente um grito. O que me impedia de gritar também? Por que eu me sentia tão sufocado enquanto erguia aquela lâmina? Por que eu não era capaz de deter minha própria mão naquele momento?

Não a detenho. Ela desce. E no segundo anterior à morte de meu inimigo, a realidade se transforma e um novo ciclo se inicia.

Aqui estou eu novamente, na mesma noite, no mesmo deserto, olhando para aquela maldita fogueira. Meus crimes precisavam de justiça. Assim como eu precisei de sangue naquela ocasião.

Por Deus...

Espero que isso acabe logo.
"Os homens não vivem apenas pela cultura; a grande maioria deles, em toda a história, sempre foi privada da oportunidade de conhecê-la, e os poucos afortunados que puderam vivê-la o podem fazer hoje graças ao trabalho dos outros. Penso que qualquer teoria cultural ou crítica que não se inicie por esse fato isolado de extrema importância, e o tenha sempre presente em suas atividades, provavelmente não terá muito valor"

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Mensagempor Lady Draconnasti em 09 Set 2007, 21:32

Não sei porque, mas eu lembrei de Teodor, e não foi por causa do combate.
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Mensagempor Saxplr em 10 Set 2007, 11:16

Já não era mais uma questão de religião, de ambição ou o que quer que tenha me levado até ali. Eu precisava matar. Eu queria matar.

Meus crimes precisavam de justiça.

Para mim o conto se resume a essas duas frases, aliás, um ótimo conto.
Personagem bem caracerizado, descrições belas de paisagens e descrições ágeis nas batalhas.
A questão da fé e da religião do guerreiro não algo muito original, verdade seja dita, mas você é bem sucedido no modo como a trabalha.

Na última frase, não entendi o motivo do uso do passado, já que a frase começa com "Aqui estou eu novamente, na mesma noite". Não seria mais interessante "Meus crimes precisam de justiça"?

Gostei do título.

Parabéns pelo conto!
Abraço,
Rodrigo Sax
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Mensagempor Dahak em 12 Set 2007, 20:23

Heliot, como vai?
Espero que tudo esteja nos conformes!

Creio que o Sax sintetizou bem o âmago do conto. E se alguém ousasse julgá-lo só por isso, fatalmente desperdiçaria uma ótima leitura.

Digamos que o tema abordado não é incomum, muito pelo contrário. Mas nem por isso o desenvolvimento ficou próximo da mesmice.
Você trabalhou muito bem as idéias, os fatos, a argumentação e tudo mais.

Destaque para suas descrições. Enxutas, sim. Pobres, não.
Estiveram na medida certa, de forma que pudemos visualizar bem o que você propôs sem tirar da imaginação a magia de construir imagens.

Parabéns!
Espero vê-lo mais vezes na seção ;)

Dahak Out
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Mensagempor Heliot em 15 Set 2007, 00:05

Perdoem minha demora para responder aos comentários.

Lady Draconnasti

Quem é Teodor?

Saxplr

Obrigado pelos elogios.

Na última frase, não entendi o motivo do uso do passado, já que a frase começa com "Aqui estou eu novamente, na mesma noite". Não seria mais interessante "Meus crimes precisam de justiça"?


Foi erro meu. Do seu jeito ficou bem melhor.

Dahak

Agradeço pelos elogios também. Fiquei um pouco temeroso por escolher um tema batido, mas pelo jeito não fez tanta diferença.
Vou tentar postar contos com mais freqüência.

Até!
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Mensagempor Lady Draconnasti em 15 Set 2007, 01:06

É, até o momento, o maior FDP dos contos já postados na Spell. Maiores informações, procure o Lobo Branco. O personagem é dele ;)
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Mensagempor Dahak em 16 Set 2007, 22:24

Ah, méritos seus, que soube utilizar muito bem as nuances do tema ;)

E apareça mais vezes sim. Produções assim devem ser compartilhadas =P

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