Minha Casa
Há uma coruja pousada sobre o cárcere de meu quarto. Esta gaiola, ao invés da coruja, projeta sua sombra circularmente, como o molde oblíquo que foi usado para construir minha casa. Minha casa nunca foi uma coruja, mas também nunca funcionou somente como minha alcova. Eu vendi minhas esperanças enquanto esperava entregarem-me as chaves.
Invadi esta casa há alguns anos quando ainda engatinhavam pelos cantos as crianças dos anteriores proprietários. Desenhos minguados beiravam as paredes e pensei ter visto um fauno, pairando nos ares, voando aos tapetes voadores. Quando me apossava, anunciava aos portadores das verdadeiras chaves: “se esta casa, para sustentar-se, vive de delícias fartas, não sois apenas vós quem deveis desfrutá-las”.
Minha casa construiu-se de falsidade, aos raios solares, de vis causas. Pusilânimes roncos, hoje de mendigos, hoje se hibernam em varonis aconchegos. Abriguei, sobre o sangue que derramei neste assoalho, a mais ignota escória de mendigos e sem-tetos.
Somos todos bem-aventurados em resguardarmo-nos num subúrbio de uma infinita cidade, que se estende por inimagináveis campos. Pois, dadas estas condições, é possível desfrutar dessa vida e desse abrigo. A chacina, ainda despercebida, não ecoa, pois muito maior é o barulho emitido pelas luzes do centro da cidade.
E hoje minha saúde, tão debilitada como as asas desta coruja, desliza pelos vãos dos heroísmos. Para quem deixarei este reino?