Kafka Revisited

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Kafka Revisited

Mensagempor Doktor Faustus em 18 Dez 2008, 14:25

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– Essa passou perto. Vai ser um barulhão daqueles.

E, de fato, poucos segundos depois, um grande estrondo fez-se ouvir, disparando o alarme de alguns carros e pessoas mais sensíveis, estas últimas, quando mulheres, agarrando o braço ou pescoço da pessoa mais próxima. Roberto Bernsten, herói da narrativa, era um dos que, no momento do trovão, foi agarrado por uma senhora, uns 30 anos, enquanto se protegia da chuva embaixo de um toldo numa movimentada avenida da cidade. Geralmente Bernsten não se amedrontava diante de chuvas, preferindo chegar em sua casa encharcado para em seguida deliciar-se num reconfortante banho quente. Neste dia, porém, a chuva era tão forte, e os relâmpagos tão estupendos – pois Bernsten era grande admirador de relâmpagos e fenômenos da natureza em geral – que não lhe restou opção a não ser esperar sob o toldo de uma loja na tal avenida movimentada, a menos que quisesse se arriscar na tempestade.

Bernsten não estava só enquanto esperava seu ônibus. Um amigo da Companhia de Teatro fazia-lhe companhia no aguardar, saíram juntos do trabalho, também ministrava uma oficina de teatro – Bernsten se dedicava ao drama e este amigo é um competente clown. Ambos conversavam antes de Bernsten ser agarrado pela senhora de trinta anos (evito o termo balzaquiana). O assunto girava em torno da oficina de teatro e da doença do pai de Bernsten, que se agravava a cada dia. O amigo, um jovem de cerca de 23 anos, magro, cabelos um tanto longos e desgrenhados, cujo ligeiro cavanhaque emprestava às suas feições um aspecto ainda mais burlesco, para não dizer bufo, sabia, apesar de sua especialização artística, mostrar gravidade quando a situação exigia. Após comentarem sobre o próximo curso em conjunto de ambos, ele iria prometer fazer uma visita ao pai de Bernsten, internado no mais caro hospital da cidade há pelo menos três meses.

Não pôde fazer a promessa justamente devido à senhora alarmada. Após agarrar Bernsten, tentou puxar conversa, embora sem grande sucesso.

– Que chuva, não? Espero que passe logo. – disse a mulher, com um sorriso desajeitado nos lábios vermelhos e um olhar um tanto malicioso. Vestia uma blusa branca por baixo de um sobretudo cinza e uma saia preta que terminava pouco abaixo do joelho.

– Acho que não. De qualquer modo, gosto da chuva. Só estou aqui porque acho que seria um tanto temerário voltar andando para casa nesse tempo, com tantos relâmpagos. Quer dizer, há os pára-raios e tudo mais, mas mesmo assim prefiro esperar pelo meu ônibus, até porque hoje acabei trazendo os documentos da empresa de meu pai para levá-los a um advogado, e não quero que eles se molhem.

– Seu pai tem uma empresa? Qual é? – a mulher, percebendo que conseguira estabelecer rapidamente contato com Bernsten, continuava com sua tentativa de diálogo.

– Isso não importa muito... – Bernsten virou-se para o amigo e despediu-se, seu ônibus já estava chegando, ele correu para a pequena proteção que havia no ponto de ônibus e deu sinal para que o motorista parasse, apenas ele pegaria este ônibus, o que era estranho, já que o ponto estava cheio e sua linha geralmente fosse bem disputada.

Subiu, pagou a passagem – mais cara a cada dia, pensou, embora dinheiro não fosse grande problema para ele – e sentou-se próximo à porta de saída do ônibus vazio. Não tentou entabular uma conversa com o cobrador: a pergunta da mulher de trinta anos já o deixara um tanto perturbado. Poderia ter pegado um táxi, dinheiro não era tanto problema para ele, mas, quando não voltava a pé para casa, preferia ir de ônibus, ao menos não lhe dava a sensação a sensação de culpa e remorso por fazer parte de uma minoria privilegiada da sociedade. Embora seu trabalho como ator e como professor de teatro não lhe pagasse muito – e não esperava mesmo um grande pagamento, ganhar dinheiro com a arte em geral significava deixar de fazer arte – ele contava com as ações da empresa do pai que estavam em seu nome, além de uma boa ajuda de custo que, longe de recusar, aceitou de bom grado, embora grande parte de tal ajuda fosse gasta na Companhia de Teatro.

Queria apenas chegar em casa, tomar um banho quente, comer o macarrão alho e óleo de sua namorada – com a qual dividia o apartamento a quase um ano – assistir a mais um pedaço da representação do Faust com direção de Peter Stein, fazer sexo e, afinal, dormir. Na verdade, poderia resumir toda a relação acima com “chegar em casa”, já que, com pequenas variações, era o que fazia praticamente todos os dias de segunda a sexta.

Bernsten regozijou-se ao lembrar que era sexta-feira. Sábado ele e a namorada normalmente iam fazer algo diferente da rotina, como passear no parque, ir ao cinema, assistir a uma peça de teatro na qual ele não fosse ator, a um show ou concerto etc. Os domingos eram passados na casa dos pais da namorada, onde ficavam até as duas da tarde para, em seguida, irem à casa de algum amigo, ou receberem amigos em casa. Não iam à casa do pai de Bernsten: este não gostava do ambiente de lá, sempre abarrotado de outros empresários, sócios, advogados, economistas, as conversas sempre iguais, qual o lucro do mês passado em relação ao mesmo período do ano passado, qual a cotação do dólar, quanto caíram as bolsas, em que investir os lucros da empresa, o que fazer com relação ao sindicato, processar ou não a empresa de transportes pela demora na entrega dos produtos, processar ou não a empresa de transportes pela demora na entrega dos documentos, apelar ou não no caso do funcionário demitido e outras amenidades. De qualquer modo, com o pai internado, as reuniões do pai aos finais de semana cessaram, e Bernsten não precisaria “fazer uma forcinha” para aparecer por lá de vez em quando.

Era evidente que a carreira de ator era bastante estressante, especialmente com o preconceito que as pessoas têm em relação a tal profissão. Mais de uma vez Bernsten, ao ir às tais reuniões fim-de-semanais do pai, ouviu, com um certo ar de desprezo, porque ele ainda não fora chamado para fazer uma novela ou filme. Em geral não se dava ao trabalho de responder, mas, de vez em quando, dizia que “não era tão bom assim”. Na verdade Bernsten já havia feito um filme, uma participação pequena, mas bastante elogiada, e se não fazia novelas era apenas por não concordar com algo que ainda se utilizava dos mesmos recursos narrativos de romances de dois séculos atrás, isso para ficar apenas na forma dessa arte. Bernsten estava contente com sua carreira no teatro, onde ele podia, além de fazer um trabalho sério e relevante, ensinar outras pessoas que há diversas formas de se ser um ator.

O ônibus já estava chegando próximo ao ponto em que Bernsten desceria, podia ver o prédio onde morava poucos metros a frente, já quase sentia o perfume da namorada, o cheiro do macarrão alho e óleo, a fragrância do sabonete e o shampoo escorrendo com a água quente.

Pouco antes de pressionar o botão para descer, ouviu seu celular tocando. Não havia problema: poderia descer no próximo ponto, que ficava apenas um pouco mais distante de sua casa. Era a mãe, dizendo que o pai havia acabado de falecer.

– Seu pai morreu há pouco. – disse a mãe, após um pouco da conversa trivial, que sempre é usada para diminuir o impacto de uma notícia importante e muitas vezes dolorosa. – Ele ordenou que você vá para a empresa e tome conta dos negócios da família. Os acionistas já sabem dos detalhes e te esperam na sala de reuniões.

Bernsten já havia descido do ônibus quando recebeu tal notícia. Encerrou a ligação, apenas para fazer outra logo em seguida.

– Amor? Sou eu. Só liguei para avisar que não vou poder ir para casa.
"Não, não são plantas, apenas fingem sê-lo. Mas nem por isso vocês devem menosprezá-las. Pois é precisamente a circunstância de elas pretenderem sê-lo e darem o melhor de si nesse sentido o que as torna merecedoras de todo o nosso apreço."
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Mensagempor Magyar em 18 Dez 2008, 21:40

Nossa,

Admito que não sou fã de contos muito grandes. Não sei, peguei uma certa repugnância por detalhes em demasia. Mas adimito que adorei o modo como conduziu a narrativa, falando dos costumes e modo de vida do personagem que mudam com um simples telefonema (apesar de ser uma notícia chocante, apesar de prevista).

Fiz um conto com um tema um tanto semelhante, pretendo ver se posto ainda hoje. Só não postarei agora pois quero ver se mais tarde, ao relê-lo, eu possa melhorá-lo. O meu medo é colocar muita coisa que não tenha o porque ser aparecer na narrativa em si.

Muito bom!
Verei se leio outros textos seus poraqui,
Inté!
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Mensagempor Elara em 26 Dez 2008, 12:58

Faustus,

Sem dúvidas mais uma pérola de bom vocabulário e leitura fluida escrita por você. Parabéns.

Entretanto, não me impactou em nada, não sei por quê...

Me fez lembrar um conto meu, chamado O piano. Depois vou repostar em sua homenagem.

Chero.
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Mensagempor Lanzi em 02 Jan 2009, 12:03

Gostei. E muito.

A escrita, ao meu ver, ficou perfeita e encaixou com o estilo e história da narrativa. Há alguns errinhos aqui e acolá, mas nada que comprometa o mínimo do conto. Os dois primeiros parágrafos, por exemplo, mudaram o tempo da narrativa várias vezes. Não sei isso foi proposital, mas ficou muito bom e interessante. Compatível, pra não dizer outra coisa.

As descrições são fáceis, sucintas e gostosas de serem lidas. O texto, apesar de grande, é rapidinho, porque é interessante. E é interessante desde o primeiro momento. Mais um ponto para você.

Vale também destacar a importância do final "trivial", que torna a idéia por trás do texto muito mais viva. Por causa dessa "trivialidade" e "suavidez" com que o conto termina, acabamos ficando com a sensação de que deixamos uma coisa passar e não entendemos. Isso, pra mim pelo menos, deixou a coisa ainda mais interessante. Foi um recurso que vocÊ soube como e porque utilizar.

Meus parabéns.
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Mensagempor Dragão de Bronze em 03 Jan 2009, 15:27

Nossa, se não impactou a Elara, me impactou. Eu senti exatamente o mesmo que o personagem na cena final. Eu acho.

Muitíssimo bem escrito, gostei bastante.
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Mensagempor Galtor_rj em 22 Jan 2009, 09:03

Gostei. Não achei grande, não. Vi paralelo com "O Veredito", Kafka. Prá mim foi como se o Pai, ao "obrigar" Bernstein a assumir a empresa, o estivesse condenando a morte, como o herói Kafkiano. É por aí, Faustus?


Obrigado pelo bom conto! :cthulhu:
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Mensagempor Lanzi em 22 Jan 2009, 10:59

Nossa, Galtor! Há quanto tempo!
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Mensagempor Elara em 24 Jan 2009, 18:06

Lanzi, eu o ressuscitei^^'

Chero!
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Mensagempor Bahamute em 25 Jan 2009, 02:06

Cara, Gostei! Gostei MUITO!

Comecei a ler o primeiro parágrafo, com o pensamento: "vou ler só este parágrafo para ver como é"
Mas não consegui parar antes de terminar!

Meus parabéns! Ficou muito bom!

E Pô! Que pena do Bernsten, além do pai dele ter morrido, ter de assumir a empresa (que não era a praia dele), a namorada ainda solta um "suspeito" não vou poder ir pra casa hoje... (seria um fim de relacionemento?)

Abraço!
Aquele abraço!
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Mensagempor Doktor Faustus em 25 Jan 2009, 09:15

Desculpem-me por não comentar antes, ou por não comentar outros textos desta vez, mas estou em época de entrega de relatório e isso está consumindo todo meu tempo de leitura.

Sim, "O Veredito" é uma das influências notáveis no conto, e há outras ainda - embora nem eu me lembre mais quais elas são. A sintaxe é outra que eu tentei utilizar, sem muito sucesso.

E, no final, é Bernsten quem liga para a namorada, não o contrário. Dá para notar que o desejo do pai - assumir a empresa - suplanta o do filho - ir para casa e descansar.

Agradeço os comentários de todos. :aham:
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