Não que existisse forma de se fazer isso, uma vez que a única ponte entre os dois mundos já fora destruída.
Fogo. Destruição. Dor. Sofrimento. Moléstia.
Onde estava a dona de tudo isso, a chamada Dama Negra?
Onde estava a senhora conhecida como Morte, temida pelos mortais e admirada pelos Superiores?
Onde estava ela, a chamada Miss Desespero...?
Dear, Dear Miss Despair
Talvez já faça um tempo desde a última vez que ouviu falar de mim. Ou talvez nunca tenha ouvido – o que acho pouco provável. Não existe ser vivo que não me tema. Não existe ser vivo que não sinta medo e desespero ao me ver andando pela calçada de sua casa, a foice nas mãos, buscando a minha vítima.
Ou assim eu pensava até encontrá-lo. O garoto não devia ter mais do que dezesseis anos. Era magro, pálido, fraco. O observei durante alguns dias, pensando se deveria ou não levá-lo.
Existem casos em que a pessoa merece aquela dor. Não há por que livrá-la dela antes da sua hora exata. Ou assim pensava, também. O garoto mudara completamente a minha visão de tudo. Da vida, da morte, do meu trabalho. Trabalho este cuja real necessidade de existir me pergunto agora.
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- Vigésimo quarto período diário.
Segundo ciclo lunar do chamado “ano”.
Ano este que já ultrapassa o de dois mil e doze, que foi quando parei de contá-los...
A humanidade caminha para a minha demissão, os poderes deles desafiando a ordem natural.
Eles estão rompendo o ciclo da vida. –
Já era tarde quando acordou. Não que isso fizesse diferença real para os outros, visto que sua vida era resumida a ficar deitado sobre uma cama, incapaz de se mover. Seus olhos sempre foram tristes, sem vida. Olhava pela janela ao amanhecer e ao anoitecer, esperando a minha visita. Mas naquele dia, em especial, estavam dignos de pena.
Já se habituara a esquecerem sua existência e seu nome. Conseguia se virar dentro de suas limitações físicas, já tendo chegado ao ápice de permanecer caído durante dois dias, sem forças para se levantar pelo simples fato de sua família ter se esquecido de sua existência e ter viajado sem avisá-lo, sequer deixando comida para o garoto.
Eu realmente me perguntei, nos dias em que o vigiei abandonado, se seu corpo iria ceder à vontade que ele tinha de me ver. Feliz ou infelizmente, não cedeu.
Felizmente para quem até hoje não pude descobrir. Nem eu, nem ele.
Aquele foi um dos únicos momentos em que me lembrei do que era ser humana. Senti meu peito apertar com força ao presenciar uma das cenas mais chocantes de minha nada breve existência:
Levantou-se da cama com esforço, conseguindo andar pelo quarto sem o apoio das paredes. Há anos tentava fazer isso, sem sucesso. Desceu as escadas, trêmulo, orgulhoso.
“Hei, pai! Eu consegui!”, exclamou, alegre, ao ver o homem passar pelo corredor.
“Ótimo. Agora aproveite e saia de casa, de preferência carregando as suas coisas.”
Primeiro eu não entendi. Depois, achei cruel. Por fim, senti pena.
“Desculpe...”, murmurou envergonhado. A irmã mais nova – que ele sequer sabia da existência – se aproximou dele, preocupada.
“Moço... Aconteceu alguma coisa?”, perguntou.
“Nada.”
“Por que tá assim, então?”
Antes que ele pudesse responder, uma mulher, que reconheci como sua mãe – reconhecimento este que somente os meus iguais entenderiam – puxou a pequenina pela mão, rude, afastando-a dele.
“Não se aproxime dele, Rafaela!”, gritou, praticamente a arrastando para fora da casa.
Naquela noite, ele chorou. Mais do que agüentava... Mais do que queria agüentar. E, pela primeira vez, eu ouvi uma frase, já conhecida minha, dita com sinceridade.
“A morte é a minha única amiga.”
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Vou postando as outras partes devagar, mas aviso que parei no terceiro dia.
Espero que gostem. ^^'