A céu aberto

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Mensagempor Madrüga em 29 Nov 2008, 19:15

Ninguém viu acontecer. Subitamente, sem aviso, de um dia para o outro, o céu se abriu; é claro que essa expressão tem uma certa licença: aquele dia fatídico amanheceu com uma fenda nos céus, espécie de fissura que se estendia de horizonte a horizonte. Dentro, todos esperavam ver planetas, o espaço, qualquer coisa; contudo, uma bruma avermelhada e relampejante se amontoava na fenda.

Se alguém sabia o que estava dentro da fissura, guardou o segredo para si; se alguém tivesse visto o fenômeno acontecer, nem poderia contar para ninguém: pois parecia que a abertura dos céus causara uma estranha interferência em tudo que viajava por aí; rádio, telefone, internet, televisão... até a energia elétrica vinha aos borbotões, com quedas e picos que destruíam e tornavam inúteis quaisquer aparelhos. Parecia até que a comunicação humana falhava e ninguém se entendia muito bem; efeito do medo, pode ser, mas aquela rachadura celeste, impávida, oprimia a todos com seu peso enigmático.

É claro que, no caos inicial, todos correram para seus carros, para seus aparelhos de televisão, tudo em vão – eu mesmo confesso que tentei dar a partida em meu carro e não consegui. Era como se, de repente, aquela fissura gargantuana tivesse revogado todas as leis que faziam nosso mundo funcionar: quem foi que disse, certa vez, que quando o céu se abrisse não haveria mais lei? Penso e não consigo me lembrar; mas era certo que o mundo estava de cabeça para baixo. Poderia nem estar, estavam todos sitiados em suas próprias cidades sem saber o que fazer e para onde ir.

Durante dias, todos esperaram; nada acontecia, nada irrompia da fenda, não soavam as sete trombetas. Os alimentos, como era de se esperar, rareavam; mercados eram saqueados, tudo era rapidamente consumido na medida do possível – afinal, sem fornos ou geladeiras, era tudo que se podia fazer. Não demorou muito e a massa faminta, impotente por não poder sair das cidades, voltou-se a cães, gatos e pombos; os animais mais imundos eram iguarias disputadas na faca ou no porrete.

Aumentavam grupos de nômades, famintos e praticamente selvagens, que vasculhavam casas e prédios e mercados em busca de migalhas; não demorou muito para que o canibalismo virasse a norma, e hordas de antropófagos assolavam as ruas. De meu esconderijo, um prédio cujas únicas chaves acredito possuir, vejo tudo impotente; estou cercado de aparelhos eletrônicos, modernos e inúteis, e só dependo de facas e um bastão. Não posso acender fogueiras para não atrair as matilhas de canibais, e estou sitiado nessa fortaleza, ode ao avanço do homem – que de nada me serve.

E enquanto meus estoques terminam, subo ao terraço mais alto e fito o céu avermelhado, aquela enorme fissura, ricto divino, e faço só o que posso fazer: espero ansioso, faminto, pelo desfecho de tudo... se é que ele virá.
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Mensagempor Léderon em 29 Nov 2008, 19:41

Gostei, Madruga. Ficou aberto e curioso.
Acho que o mais interesante foi o elemento principal mesmo, o tempo passando. No início não dá nem pra saber em que mundo ou época se passa, e algumas linhas abaixo percebe-se tudo. Parabéns!

Só teve uma frase ali que eu achei meio repetitiva, mas imagino que seja muuito difícil de trocar palavras: "se alguém tivesse visto o fenômeno acontecer, nem poderia contar para ninguém[...]" Alguém/ninguém, sei lá, a sonoridade se repete com frequência - opinião pessoal mesmo. ^^'
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Mensagempor Youkai X em 29 Nov 2008, 19:42

Como você se inspirou a fazer esse conto, Madruga? Imaginei agora o quão perturbador seria isso acontecer.

O bom é que ele é genérico e de amplo alcance no mundo, onde muitos poderiam ler e temer que ocorresse algo no conto (só não é universal ainda porque tem muita gente pelo mundo, apesar de não muuuuitas, que vive sem depender realmente de aparelhos elétricos modernos XD )
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Mensagempor Lady Draconnasti em 29 Nov 2008, 23:33

Ui.

Bem vindo de volta à Contonópolis, Madrüga, Guardião da Pena Vorpal.

A princípio imaginei que o título traria um conto com o sentido mais usado da expressão, e não uma forma mais ou menos literal dela.

Um conto curto, mas que não deixa a desejar (ok, talvez uma continuação mas talvez corresse o risco de perder o brilho).
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Mensagempor Bahamute em 30 Nov 2008, 12:14

Cara, eu simplesmente AMO cenários pós apocalipticos, como invasões de zumbis, cidades sitiadas em guerras nucleares (seriado Jericho), e por aí vai.

Teu conto tem tudo isso, gostei de cada parte, ficou muito bem escrito e elaborado. Gostei do desenrolar e do final.

Parabéns!
Aquele abraço!
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Mensagempor Lanzi em 30 Nov 2008, 12:28

O tom "informal" encaixou-se muito bem ao relato da personagem. Há um certo charme que não consigo definir, como qualquer conto ou filme ou livro em que o "eu-lírico" conta com frieza o apocalipse na forma de espectador, sem ter participado do mesmo pra depois, no final, encaixar-se.

A escrita nem merece ser comentada, pois você a domina e sabe disso, o que é muito melhor.

Conhecendo - mesmo que seja levianamente - os seus gostos e exigências, consegui identificar seu rosto no conto devido, e especialmente à isso, a falta de explicações. Característica que eu passei a procurar em contos, filmes, livros, seja lá-o-que. E, embora não seja legal rotular o texto de outra pessoa, em contos de ficção científica - nem sei se o seu é - esse é um fator muitas vezes esquecido. Então temos milhares, a grande maioria, de contos de Ficção Científica com uma espécie de "síndrome do Scooby-Doo". Onde há um mistério que permeia o grosso do texto pra no final ser revelado todo mastigadinho pro leitor.

Eu, assim como você, prefiro a dúvida.

Parabéns.
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Mensagempor Emil em 08 Dez 2008, 18:27

Fazia tempo que eu não lia nada seu -- pelo menos, nenhuma ficção --, e confesso que eu sentia saudades. O último foi aquele em que o protagonista escolhe uma vítima randomicamente e a mata, na esperança de que algo semelhante ocorra a sua professora.

Bom, eu adoro os seus narradores, e fiquei surpreso, dei um sorrisão, ali quando ele vira personagem, pra então virar narrador novamente. Achei o máximo e fiquei com inveja.
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Lutai primeiro pela alimentação e pelo vestuário,
e em seguida o reino de Deus virá por si mesmo.

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Mensagempor Lanzi em 09 Dez 2008, 12:20

Emil escreveu:Fazia tempo que eu não lia nada seu -- pelo menos, nenhuma ficção --, e confesso que eu sentia saudades. O último foi aquele em que o protagonista escolhe uma vítima randomicamente e a mata, na esperança de que algo semelhante ocorra a sua professora.


Esse é das antigas eim...
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Mensagempor Madrüga em 16 Dez 2008, 22:50

Lederon escreveu:Gostei, Madruga. Ficou aberto e curioso.
Acho que o mais interesante foi o elemento principal mesmo, o tempo passando. No início não dá nem pra saber em que mundo ou época se passa, e algumas linhas abaixo percebe-se tudo. Parabéns!

Só teve uma frase ali que eu achei meio repetitiva, mas imagino que seja muuito difícil de trocar palavras: "se alguém tivesse visto o fenômeno acontecer, nem poderia contar para ninguém[...]" Alguém/ninguém, sei lá, a sonoridade se repete com frequência - opinião pessoal mesmo. ^^'


Ah, não vou mudar, deixa lá. E quanto ao primeiro comentário, acho que nessa caso a concisão ajuda muito; é um conto, tem de ser curto e transmitir muito com pouco.

Youkai escreveu:Como você se inspirou a fazer esse conto, Madruga? Imaginei agora o quão perturbador seria isso acontecer.

O bom é que ele é genérico e de amplo alcance no mundo, onde muitos poderiam ler e temer que ocorresse algo no conto (só não é universal ainda porque tem muita gente pelo mundo, apesar de não muuuuitas, que vive sem depender realmente de aparelhos elétricos modernos)


Na verdade foi com uma frase do filme Donnie Darko. Eu quis retirar ao máximo qualquer referência concreta, porque às vezes elas podem ajudar a dar verossimilhança ao texto, mas ficam soltas ou estragam tudo.

Nasti escreveu:Um conto curto, mas que não deixa a desejar (ok, talvez uma continuação mas talvez corresse o risco de perder o brilho).


Acho que mata a idéia. É como agora que vão filmar S. Darko, espécie de continuação de Donnie Darko. Ou Efeito borboleta 2.

Baha escreveu:Cara, eu simplesmente AMO cenários pós apocalipticos, como invasões de zumbis, cidades sitiadas em guerras nucleares (seriado Jericho), e por aí vai.

Teu conto tem tudo isso, gostei de cada parte, ficou muito bem escrito e elaborado. Gostei do desenrolar e do final.


Valeu, Baha. Quando li seu comentário, pensei que um pouco do tom do meu conto veio de Eu sou a lenda. Algo do tipo, me veio essa impressão. Sabe, o protagonista sozinho, etc etc.

Lanzi escreveu:Então temos milhares, a grande maioria, de contos de Ficção Científica com uma espécie de "síndrome do Scooby-Doo". Onde há um mistério que permeia o grosso do texto pra no final ser revelado todo mastigadinho pro leitor.

Eu, assim como você, prefiro a dúvida.


Adorei a síndrome de Scooby-Doo, XD. Coisa que abomino também, essa necessidade de ter tudo explicadinho; infelizmente, escritores sem talento nenhum usam a completa falta de explicação para justificar um conto ruim. Aí não dá.

Emil escreveu:Fazia tempo que eu não lia nada seu -- pelo menos, nenhuma ficção --, e confesso que eu sentia saudades. O último foi aquele em que o protagonista escolhe uma vítima randomicamente e a mata, na esperança de que algo semelhante ocorra a sua professora.

Bom, eu adoro os seus narradores, e fiquei surpreso, dei um sorrisão, ali quando ele vira personagem, pra então virar narrador novamente. Achei o máximo e fiquei com inveja.


Pior que foi meio sem querer a idéia do narrador, depois que desenvolvi conscientemente; mas, apesar de ser velho como o Lanzi falou, tenho vontade de re-publicar aqui esses contos antigos. Dá saudade também, XD.
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Mensagempor Dragão de Bronze em 16 Dez 2008, 22:54

Eu gostei.

(oh, o Daniel leu alguma coisa na Spell!)
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Mensagempor Magyar em 18 Dez 2008, 01:22

Muito bom o conto!
Ficou envolvente. Deu a impressão de estar lá, vendo tudo acontecer.

Espero ver mais contos seus poraqui!
Inté!
Quem me leva a sério não deveria ter saído do hospício.
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Mensagempor Doktor Faustus em 18 Dez 2008, 14:53

Acredito que não tenha sido a intenção, mas a fenda no céu me fez lembrar imediatamente de "Fenda no Tempo", do Stephen King. A natureza de ambas é totalmente diferente, mas a imagem é bastante parecida - e belíssima por sinal.

Como bastante já foi dito, vou me ater mais às imagens na verdade, a uma em particular. A imagem final, por exemplo, foi muito bem construída: a personagem olha para o céu, mas não com sentimentos religiosos de exaltação/louvor, esperança, mas com dúvida, apreensão. É uma inversão interessante, principalmente se levarmos em conta que a personagem fala justamente em "ricto divino".
"Não, não são plantas, apenas fingem sê-lo. Mas nem por isso vocês devem menosprezá-las. Pois é precisamente a circunstância de elas pretenderem sê-lo e darem o melhor de si nesse sentido o que as torna merecedoras de todo o nosso apreço."
Jonathan Leverkühn, em Doutor Fausto, de Thomas Mann.
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Mensagempor Elara em 26 Dez 2008, 15:41

Tinha redigido um post anteriormente, mas a net deu pau na hora em que postei... ¬¬ Isso é só comigo????

Muito bom o texto, Madruga. Me remeteu imediatamente ao filme Extermínio.

Chero!
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Mensagempor Madrüga em 31 Dez 2008, 15:56

Valeu, Barlin e DdB! :macaco: É bom que o DdB, sem ser grande freqüentador, tenha lido alguma coisa.

Faustus, procurarei ler o referido livro do Stephen King (nunca nem ouvi falar dele, veja só), e gostei bastante de você ter percebido essa imagem final (geralmente é algo que passa meio despercebido).

E Elara... pô, junta aí uma vontadezinha de re-comenta ro texto, quero saber das impressões!
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Mensagempor Lorde Seth em 08 Fev 2009, 13:06

Muito bem Felipe, muito bem!

Muito bem escrito, bem trabalhado e bem costurado.

Agora, contudo, se o céu se abrisse e voltássemos, por assim dizer, à uma medievalidade instantânea (nossa, será que isso existe? :bwaha: ) a primeira coisa que eu faria seria sair da cidade, e não permanecer nelas. Afinal, terra por aí é o que não falta, e menos ainda braços e mãos que me permitam plantar.

Ay, captain? :jester:

Abraços! :aham:
Para viver a realidade, primeiro é preciso acordar do sonho.
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