Ninguém viu acontecer. Subitamente, sem aviso, de um dia para o outro, o céu se abriu; é claro que essa expressão tem uma certa licença: aquele dia fatídico amanheceu com uma fenda nos céus, espécie de fissura que se estendia de horizonte a horizonte. Dentro, todos esperavam ver planetas, o espaço, qualquer coisa; contudo, uma bruma avermelhada e relampejante se amontoava na fenda.
Se alguém sabia o que estava dentro da fissura, guardou o segredo para si; se alguém tivesse visto o fenômeno acontecer, nem poderia contar para ninguém: pois parecia que a abertura dos céus causara uma estranha interferência em tudo que viajava por aí; rádio, telefone, internet, televisão... até a energia elétrica vinha aos borbotões, com quedas e picos que destruíam e tornavam inúteis quaisquer aparelhos. Parecia até que a comunicação humana falhava e ninguém se entendia muito bem; efeito do medo, pode ser, mas aquela rachadura celeste, impávida, oprimia a todos com seu peso enigmático.
É claro que, no caos inicial, todos correram para seus carros, para seus aparelhos de televisão, tudo em vão – eu mesmo confesso que tentei dar a partida em meu carro e não consegui. Era como se, de repente, aquela fissura gargantuana tivesse revogado todas as leis que faziam nosso mundo funcionar: quem foi que disse, certa vez, que quando o céu se abrisse não haveria mais lei? Penso e não consigo me lembrar; mas era certo que o mundo estava de cabeça para baixo. Poderia nem estar, estavam todos sitiados em suas próprias cidades sem saber o que fazer e para onde ir.
Durante dias, todos esperaram; nada acontecia, nada irrompia da fenda, não soavam as sete trombetas. Os alimentos, como era de se esperar, rareavam; mercados eram saqueados, tudo era rapidamente consumido na medida do possível – afinal, sem fornos ou geladeiras, era tudo que se podia fazer. Não demorou muito e a massa faminta, impotente por não poder sair das cidades, voltou-se a cães, gatos e pombos; os animais mais imundos eram iguarias disputadas na faca ou no porrete.
Aumentavam grupos de nômades, famintos e praticamente selvagens, que vasculhavam casas e prédios e mercados em busca de migalhas; não demorou muito para que o canibalismo virasse a norma, e hordas de antropófagos assolavam as ruas. De meu esconderijo, um prédio cujas únicas chaves acredito possuir, vejo tudo impotente; estou cercado de aparelhos eletrônicos, modernos e inúteis, e só dependo de facas e um bastão. Não posso acender fogueiras para não atrair as matilhas de canibais, e estou sitiado nessa fortaleza, ode ao avanço do homem – que de nada me serve.
E enquanto meus estoques terminam, subo ao terraço mais alto e fito o céu avermelhado, aquela enorme fissura, ricto divino, e faço só o que posso fazer: espero ansioso, faminto, pelo desfecho de tudo... se é que ele virá.