Um brinde
“Tudo quanto tua mão encontra para fazer, faze-o com todas as tuas forças; porque para onde tu vais, não há obra, nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria alguma”.(Ecle, 9,10)
Assistimos estupefatos o caso da jovem Eloá.
Cem horas de aflição e desencontros, com um final infeliz.
A paixão se veste com diferentes requintes, alguns inesperados e trágicos. Muda, numa questão de momento, destinos que antes se avistavam seguros.
Apaixonar-se é sempre perder um pouco de centramento para se apoiar em outra pessoa. Alojado em corações egoístas, o sentimento não aceita ruptura. E se torna possível a cena que assistimos.
Mas não é sobre a limitação de uma paixão doentia que escrevo. A morte da jovem deixou uma triste história, muitas reflexões e dois rins, um coração, um pâncreas, dois pulmões e um fígado. O rim esquerdo e o pâncreas, recebidos por Emerson Gentil, o coração por Maria Augusta dos Anjos.
Emerson, atacado pela diabetes, tinha pouco tempo de vida. Maria Augusta, que recebeu o coração no dia do seu aniversário, já não fazia tarefas rotineiras como “lavar louça” ou “pentear o cabelo”. Ambos tiveram suas expectativas de vida multiplicadas e a possibilidade de um quotidiano normal.
Eles deram entrevistas. Na fala de ambos, nada de excepcional. Nenhum grande projeto. Maria Augusta “comemorou a possibilidade de subir as escadas do hospital sem sentir o cansaço de antes” e disse enfática “quero cuidar de mim, cuidar do meu casamento, andar de bicicleta, fazer coisas simples”.
Emerson por sua vez afirmou: “agora só penso em tomar muita água e comer o delicioso bolo de chocolate da minha mãe".
Estou perplexo. Como assim só comer bolo? Andar de bicicleta? Tomar água? Ninguém vai estudar até ter cinco pós-doutorados e elaborar o novo paradigma científico? Nenhum deles vai se candidatar a deputado e propor leis que resolvam a distribuição de renda no país? Não vão se engajar em um grande projeto mundial de combate a fome, à AIDS ou qualquer outro flagelo da humanidade? Não querem ser multi-milionários? Escrever “best-sellers”? Nem lançar um CD?
Não.
“Fazer coisas simples”, “cuidar de mim”.
Bem, vou indo. Hoje, não pretendo terminar o resto do trabalho que ficou, até depois da meia noite. Deixa eu me sentar na varanda e retomar a leitura daquele livro (não aquele chato que só estou lendo para falar que li), com meus gatos no colo. Vou responder algumas mensagem de e-mails de pessoas esquecidas. Para algumas, dá tempo até de telefonar. Depois, antes de dormir, vou pegar uma caneca, dessas de festival de chopp e, enchendo-a de água até a borda, fazer um brinde à vida, à família, aos amigos e à lenitiva esperança de que, numa curva, minha alma volte para mim.