Depois de anos sem escrever um conto o tédio do meu serviço acabou me inspirando. Mas estou muito enferrujado e o assunto não flui mais como antes.
Boa sorte para quem for ler.
Pelo menos temos rum
Acabo de acordar, meu corpo dói. O oceano está calmo, mas minha mente está conturbada. Me levanto e precebo que estou sobre alguns pedaços daquilo que foi um barco. Existem outras pessoas comigo, mas elas ainda não acordaram. Acho melhor me sentar e esperar que alguém me esclareça o que aconteceu.
Já é noite e ninguém acordou ainda, estou com muita fome e sede. Melhor me deitar.
“Fomos atacados!”, alguém exclamou no meio da noite, perguntei quem nos atacou, a resposta foi um pouco confusa, parecia que eu não era o único que estava conturbado com tudo que acontecera, se eu entendi bem fomo atacados por um navio pirata. Continuei indagando, mas seja lá quem estivesse me respondendo, tinha as mesmas lembranças que eu: um navio pirata e depois destroços espalhados pelo furioso oceano. O que mais me incomodava não era não saber como naufragamos e sim não ter noção alguma de quanto tempo estávamos a deriva.
O sol está no centro do céu castigando as pobres almas sobreviventes. Éramos sete, todos estavam dormindo; acho que vou fazer o mesmo, a fome e a sede estão me incomodando muito.
Murmúrios me acordaram, todos estavam tratando sobre o mesmo assunto, comida e água. A noite estava muito escura, todos ficaram calados. “Tenho aqui comigo uma garrafa de rum.”, disse um homem que estava ao meu lado. Resolvemos beber, nada melhor que uma garrafa de rum para esquecer os problemas. Bebemos a noite toda.
O sol já está quase tocando o infinito azul do oceano, dormi por muito tempo, efeito do rum com certeza. Encarei meus parceiros de bebedeira por algumas horas, pareciam não ter preocupações, mas algo me deixou bastante preocupado, uma bela senhorita, ela parecia não respirar. Estaria ela morta? Não falei isso com ninguém, afinal todos dormiam e eu não queria acordar alguém com uma dúvida tão funesta. Fiquei adimirando o oceano até que o dia se tornasse noite.
“Lucy está morta!”, ao ouvir isso meu coração parou. Agora eu me lembro, aquela linda senhorita é minha noiva! Como pude me esquecer dela? O desespero tomou conta de nossa embarcação improvisada, não conseguia entender nada que os outros diziam, minha mente parecia estar em meio a uma borrasca. Borrasca... Isso me parece familiar... Me lembro de estar em um barco em meio a uma borrasca. Novamente o silêncio reina.
“Ela já está morta e nós estamos com fome”, era o que eu temia. A fome começa a tomar conta da sanidade de meus parceiros. Não podia reprimilos, já estávamos sem comer a muito tempo, o rum era o nosso único alimento. Ninguém disse mais nenhuma palavra, depois de algumas horas de silêncio todos apreciaram a carne de minha falecida noiva, inclusive eu.
Já faz dois dias que estamos sobrevivendo de carne humana. Choveu na última noite, não me lembro o que aconteceu, só sei disso pois acabaram de me contar, aproveitaram para encher de água algumas garrafas de rum vazias. Estranho o rum nunca acabava, acho que alguém lembrou de salvar algum baú de tal magnífica bebida, não sei quem foi, mas o considero um herói. A noite estava tranquila e como eu todos queriam apenas descansar.
Terceiro dia como canibal. Tivemos que jogar o corpo de Lucy fora, o fedor estava insuportável, descobri que um de nós caiu no oceano durante a chuva de dois dias atrás. Nuvens escondiam a lua, fiquei temendo que chovesse novamente.
O sol está mais impiedoso a cada dia que passa, o fedor de Lucy se impregnou em nossa embarcação, melhor beber mais rum.
É noite, mas desta vez ninguém fala nada. Tento voltar a dormir, Lucy não permite, ela se vingou de todos nós, o fedor está insuportável. Minhas lembranças de momentos ao seu lado surgem como marteladas em minha já conturbada mente. Como pude fazer isso? Eu não a protegi, não a protegi de um bando de esfomeados, muito pelo contrário eu me juntei a eles, será que ela estava realmente morta? Eu tinha prometido protegê-la, eu sempre repetia “Te protegerei até no inferno.”, bastou alguns dias sem comer para que esquecesse minhas promessas.
Minha vontade é matar todos, vai ser fácil, estão dormindo... Não! O que está acontecendo comigo?! A culpa não é deles, fui eu quem falhei com ela! Eles ainda esperaram um bom tempo antes de esquartejá-la... Esperaram minha resposta... Eu não fiz nada... Se alguém tem que morrer, esse alguém sou eu.
Refleti por mais algumas horas, o sol está preste a nascer, melhor fazer isso logo, quebrei uma das garrafas, será que é o melhor a se fazer? É, é o melhor a se fazer... E minha morte ainda garantirá a sobrevivência do grupo por mais alguns dias. Cortei meus pulsos.
O sol nasceu e junto com ele minha lucidez retornou... Descobri que o fedor não era proveniente apenas da Lucy... Garças estavam acompanhando a fúnebre embarcação... Meus companheiros davam a elas o que comer... As aves pareciam estar rindo... Eu também ri.