Democracia ainda que tardia...

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Democracia ainda que tardia...

Mensagempor Ironsoul em 06 Set 2007, 15:31

Era uma vez um país que por muito tempo viveu sob a sombra da ditadura. O povo não podia falar e também não podia escolher os governantes. Quem exigia o direito de falar ou escolher invariavelmente desaparecia. O regime parecia forte e eterno, mas um dia ele desmoronou e surgiu no horizonte um outro modelo político.

Neste país, vivia um homem chamado José. E como muitos outros Josés, ele morava uma comunidade muito humilde. Pelos meios de comunicação soube que logo haveria uma novidade chamada “eleição”.

Com a proximidade desta tal eleição sua comunidade foi visitada por um homem de sorriso brilhante que usava terno e gravata. De maneira muito polida, ele abordou José:

– Bom dia meu bom homem! Venho pedir o seu voto.

– Pedir o que?

– Seu voto. As trevas da ditadura se foram. Agora vivemos sob o sol da democracia. Neste sistema, adotado pelas maiores potências mundiais, o povo escolhe seus representantes através do voto. E estes representantes fazem leis para atender a vontade e a necessidade da população que o elegeu. Isso seria impensável na ditadura. Democracia é o governo do povo!

José se mostrava desconfiado, pois nunca vira aquele homem na vida. Mas qualquer coisa que fosse diferente da ditadura parecia ser boa.

– Vejo que ainda está indeciso. Observei que em sua comunidade muitas crianças estão fora da escola. Se eu for eleito farei uma lei para que nenhuma criancinha daqui fique sem estudar. Votando em mim você estará ajudando a melhorar não só a sua comunidade, mas também o seu país.

José – e muitos outros também – acreditou na palavra do engravatado e com os votos do povo foi eleito por um tal de PNSDQ (Partido do Não Sei Das Quantas) – neste país os políticos eram agrupados em grupos representados siglas estranhas cuja maioria começava por P. No entanto, pouco dias depois da eleição mudou de partido e passou a fazer parte de um grupo de partidos que se auto-proclamava “oposição”.

Nos anos que se seguiram o homem do sorriso largo e das palavras inspiradoras não voltou à comunidade onde José morava. As crianças da localidade continuavam sem escola e todo dia um desgostoso José assistia as notícias sobre os representantes do povo:

“O poder legislativo é um dos mais bem pagos do mundo mesmo com boa parte da população vivendo na miséria.”

“A oposição anunciou que trancará a pauta de votações para pressionar o governo. Projetos importantes – como o aumento de verbas para a educação – deixarão de ser votados.”

“Projeto de lei que prevê aumento de verbas para a educação ainda não foi posto em votação. Outros projetos mais importantes terão prioridade.”

“Legislativo aprova aumento de 50% para os seus próprios salários. Salário mínimo tem aumento ínfimo”.

“Autor da proposta pedindo mais verbas pela educação vota contra o próprio projeto obedecendo à ordem do partido”.

“Em pouco de mais de um ano, Legislativo aprova novo aumento de 50% para os seus próprios salários.”

Ao término da legislatura, o mesmo homem de sorriso brilhante retornou ao lugar onde José morava para pedir votos para algo chamado “reeleição”. Dizia que um mandato só era muito pouco para fazer algo pelo povo e que precisava de mais tempo. Falou sobre suas importantes realizações, como os projetos que propôs e as comissões que participou. José, ao ver o digníssimo legislador que ajudou a eleger, o questionou indignado:

– Doutor, não sei se lembra de mim. O senhor veio pedir meu voto há anos atrás, dizendo que se eleito seria o nosso representante e prometendo que nossas crianças teriam mais escolas. Bradou que a democracia é o governo do povo! Pois bem. O senhor recebe um salário altíssimo para os padrões da maioria da população e que é pago com o dinheiro suado do povo. Mesmo assim, aumentou duas vezes os seus vencimentos. Eu não lhe dei meu voto para o senhor para ganhar aumento e a pobreza continuar para o resto da população!

– A imprensa tem o costume de alardear coisas sem importância como essa. Nossa ajuda de custo estava defasada e o senhor não faz idéia dos enormes gastos que nós temos para nos sustentar e oferecer um serviço para a população que nos elegeu. Não foi um aumento, mas sim uma recomposição monetária necessária para corrigir distorções. Mas não vamos falar disso. Eu sou uma pessoa de palavra. Não prometi que faria uma lei para colocar mais crianças na escola? É de minha autoria o projeto de lei n.º 01144134/124 que destina mais verbas para a educação.

– Do que adianta, doutor, criar uma lei para o bem do povo e ela ficar engavetada? Primeiro, ela foi deixada de lado por conta de outras coisas mais importantes, como o seu aumento. Depois a oposição, da qual o senhor faz parte, trancou a pauta a votação seguidas vezes. E quando finalmente foi para à plenário, o senhor votou contra seu próprio projeto para obedecer a ordem do seu partido, que não era o mesmo pelo qual o senhor se elegeu! Nossas crianças ainda estão sem escolas! O senhor tinha que defender as necessidades de quem votou no senhor e não os interesses do seu partido. O senhor disse que o voto é importante, pois elege os representantes do povo, mas eu faço parte do povo e o senhor não está me representando! Para mim, isso não parece ser democracia.

– Ah! É compreensível que o senhor não entenda toda a complexidade da política, uma vez que viveu tantos anos nas trevas da ditadura. Todas estas coisas fazem parte do jogo democrático. Além disso, a democracia é muito mais do que o voto. Democracia também é liberdade. O senhor deve ser lembrar bem dos tempos do silêncio e da surra, não é? Se você tivesse dito metade do que me disse naqueles tempos de ditadura, você seria silenciado e surrado. Mas somente na democracia que nós vivemos o senhor pode dizer o que acha e não será perseguido por isso. Democracia é não é somente eleger seus representantes. É também o direito à liberdade de expressão. Ou vai me dizer que prefere a ditadura?

– Claro que não! – retrucou José. Melhor viver na democracia do que na ditadura. Mas convenhamos, doutor: felizmente não vivemos na ditadura, mas infelizmente ainda não vivemos em uma plena democracia.
Editado pela última vez por Ironsoul em 07 Set 2007, 22:19, em um total de 1 vez.
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Mensagempor Lady Draconnasti em 06 Set 2007, 22:27

Ótima crítica... Mas... o José virou João e depois voltou a ser José?
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Mensagempor Ironsoul em 07 Set 2007, 22:22

Grato pelo elogio e pelo apontamento do erro, Lady Draconnasti.

Durante a construção do texto estava indeciso entre José, João e Jonas. Na hora de revisar o texto acabei deixando passar um "João".
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Mensagempor Saxplr em 10 Set 2007, 09:58

Ironsoul,

Minha opinião diverge da Draconnasti... Achei o texto um pouco óbvio, talvez faltou um pouco de profundidade ou então uma outra abordagem...

Eu achei interessante a linguagem simples e fácil, além do estilo das falas do José e do Político, ficaram bem caracterizadas.

Uma idéia para um próximo conto: Críticas são sempre muito mais interessantes do lado de quem sofre. No caso, seria um conto sobre uma criança que não pode ir para a escola, ou coisa assim.
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Mensagempor Ironsoul em 11 Set 2007, 12:20

Obrigado pelo comentário e pela crítica, Saxplr.

A idéia era mesmo tentar fazer um texto simples e rápido. Fazer uma discussão mais profunda da questão talvez não ficasse bem em uma história curta.

E obrigado pela sugestão, vou tentar pensar algo com base nela.
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Mensagempor JOE_KR em 11 Set 2007, 18:02

Koé!!!

Falar de política é complicado, pois isto pressupõe o uso de um monte de conceitos vagos e problemáticos, tais como o de "povo", "liberdade" e "democracia". Por isso, quando escrever um conto de alto teor político, cuidado: procure sempre deixar claro quem é o "povo", o que é "liberdade" e como vc mede o teu nível de "democracia". Por exemplo, no final, vc menciona a idéia de "plena democracia", sem, no entanto, explicar o que seria esse estágio de "plena democracia" - afinal, no conto o significado atribuído ao termo é, no momento em ele é mais explicado, "Democracia é não é somente eleger seus representantes. É também o direito à liberdade de expressão".

A parte essas nuances conceituais que costumam ser, inclusive, motivo de discussões bastante acalouradas até mesmo entre cientistas políticos, o conto está bem escrito. A leitura é leve, simples e a crítica bem fácil de ser absorvida, apesar de suas complexidades. Aliás, a partir deste texto dá para fazer outras reflexões bastante interessantes para serem tratadas em diversos artigos, mas isso não vêm ao caso.
Não sei há quanto tempo você escreve como hobby, não acompanhei o seu desenvolvimento literário, não li outras obras tuas, sequer sei quantos anos vc tem [isso faz diferença, acredite]; mas, pelo oq eu li aqui, me pareceu que vc escreve bem e que tem certo talento.

No tocante a trama, eu meio que concordo com o Saxplr: talvez ficasse mais interessante se a parte sofredora fosse tratada. Seria legal se vc demonstrasse como a política influenciou a vida de José, ou, pelo menos, como a falta de verbas para a educação prejudicou os filhos dele. O que discordo com o dito pelo Saxplr é que o protagonista tinha que ser um eleitor mesmo, do contrário provavelmente ficaria estranho.
Neste quesito, vale a pena ressaltar uma coisa que me foi motivo de estranheza: José começou o conto bastante alienado, não tendo muita noção do que era "voto", "eleição" ou "democracia", mas no fim do conto ele começa a ter consciência de situação política e, inclusive, certa bagagem para discutir e até elaborar crítica política com um político. Essa mudança, embora sutil, ficou meio estranha.

Bem, é isso ai...

Falow e té +!!!
Ass.: JOE K.R [há quanto tempo não escrevo sobre política...]
Minhas Palavras são escolhidas, minhas obras não têm igual; só para o tolo elas são vazias, para o sábio elas conduzem à glória.

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Mensagempor Ironsoul em 11 Set 2007, 22:18

Obrigado pelo comentário, pelos elogios e pela crítica, JOE_KR.

Sem dúvida, "democracia" é um conceito muito complicado, pois ele é usado para se referir a um monte de coisas. Pessoalmente, acho até que a democracia - como conceito - está sendo bastante banalizada. Todo mundo fala sobre ela (e defende), mas o que é democracia afinal?

No caso do texto, a crítica é em relação a "democracia representativa". Será que existe uma plena democracia representativa se nós elegemos representantes que não nos representam? Mas devido ao uso extensivo do termo "democracia" talvez a crítica a este aspecto do termo, devesse ficar mais clara ao leitor.

Pelo seu comentário - e também do Saxplr - eu percebo que, neste texto, parto do pressuposto que o leitor está pelo menos um pouco familiarizado com o conceito de democracia. Sobre a estranheza que você sentiu pelo "súbito" esclarecimento do eleitor, isto deve ocorrido pelo fato que eu não marquei no texto a passagem de tempo. Novamente, eu confiei de que o leitor possui o conhecimento prévio de que os mandatos eletivos para o legislativo durem alguns anos e que ao acompanhar os acontecimentos ao longo deste período, José tenha adquirido uma compreensão mais crítica sobre a democracia onde ele vive.
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Mensagempor Lanzi em 14 Set 2007, 16:55

Não li os outros comentários, portanto não vou me preocupar se estou dizendo algo que já disseram.

Não vou comentar muito sobre a linguagem objetiva que vocÊ usou. Talvez por causa disso acabei gostando do debate entre o José e o político.

Devo atentar-lhe à algumas coisas que me pareceram falhas: o texto está óbvio, até demais. Como que em tão pouco tempo, um Zé como a personagem do texto, começou a entender tão bem sobre o sistema democrático? Digo, como ele sabia mais ou menos sobre a esquematização se em alguns parágrafos anteriores ele não sabia nem o que era voto?

Ao mais, é uma crítica interessante, mas muito óbvio. Seria mais conveniente se fosse feita de uma forma um pouco mais metafórica e satírica. Tudo isso na minha opinião, claro. Porque um bom nome para o texto vocÊ já tem.
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Mensagempor Ironsoul em 21 Set 2007, 06:53

Lanzi, obrigado pelos comentários, elogios e críticas. Um ponto positivo de você não ter lido os comentários anteriores é que seus comentários acabaram apontando as mesmas críticas feitas pelo Saxplr e pelo JOE_KR, o que me ajuda a ver onde o texto está falho.

O fato da crítica ser óbvia não chega a ser exatamente uma falha, pois era a minha intenção expô-la de forma direta e sem sutilezas para a mensagem fosse entendida. Mas considero como uma crítica bem construtiva a sua sugestão de fazer isso de uma forma metafórica ou satírica.

Quanto ao súbito "esclarecimento político" do José, eu cometi a falha de não demarcar de maneira mais clara que este processo ocorre ao longo do mandato do político que tem anos de duração.
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Mensagempor Dahak em 22 Set 2007, 02:12

Opa, acho que farei coro ao Sax, Joe e Lanzi: faltou profundidade.

A idéia até que é boa, mas creio que pecou um pouco na condução. Era uma idéia para ser explorada em suas minúcias, mas ficou um sabor de exploração superficial.

Independentemente do prisma escolhido, talhá-lo de maneira ideal é super importante.

Por fim, a crítica não ficou ruim. Mas ficou piegas.

Já deve ser o terceiro trabalho que leio seu, então tenho a ciência que você é capaz de produzir coisas muito melhores. ;)

Abraço!


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