Era uma vez um país que por muito tempo viveu sob a sombra da ditadura. O povo não podia falar e também não podia escolher os governantes. Quem exigia o direito de falar ou escolher invariavelmente desaparecia. O regime parecia forte e eterno, mas um dia ele desmoronou e surgiu no horizonte um outro modelo político.
Neste país, vivia um homem chamado José. E como muitos outros Josés, ele morava uma comunidade muito humilde. Pelos meios de comunicação soube que logo haveria uma novidade chamada “eleição”.
Com a proximidade desta tal eleição sua comunidade foi visitada por um homem de sorriso brilhante que usava terno e gravata. De maneira muito polida, ele abordou José:
– Bom dia meu bom homem! Venho pedir o seu voto.
– Pedir o que?
– Seu voto. As trevas da ditadura se foram. Agora vivemos sob o sol da democracia. Neste sistema, adotado pelas maiores potências mundiais, o povo escolhe seus representantes através do voto. E estes representantes fazem leis para atender a vontade e a necessidade da população que o elegeu. Isso seria impensável na ditadura. Democracia é o governo do povo!
José se mostrava desconfiado, pois nunca vira aquele homem na vida. Mas qualquer coisa que fosse diferente da ditadura parecia ser boa.
– Vejo que ainda está indeciso. Observei que em sua comunidade muitas crianças estão fora da escola. Se eu for eleito farei uma lei para que nenhuma criancinha daqui fique sem estudar. Votando em mim você estará ajudando a melhorar não só a sua comunidade, mas também o seu país.
José – e muitos outros também – acreditou na palavra do engravatado e com os votos do povo foi eleito por um tal de PNSDQ (Partido do Não Sei Das Quantas) – neste país os políticos eram agrupados em grupos representados siglas estranhas cuja maioria começava por P. No entanto, pouco dias depois da eleição mudou de partido e passou a fazer parte de um grupo de partidos que se auto-proclamava “oposição”.
Nos anos que se seguiram o homem do sorriso largo e das palavras inspiradoras não voltou à comunidade onde José morava. As crianças da localidade continuavam sem escola e todo dia um desgostoso José assistia as notícias sobre os representantes do povo:
“O poder legislativo é um dos mais bem pagos do mundo mesmo com boa parte da população vivendo na miséria.”
“A oposição anunciou que trancará a pauta de votações para pressionar o governo. Projetos importantes – como o aumento de verbas para a educação – deixarão de ser votados.”
“Projeto de lei que prevê aumento de verbas para a educação ainda não foi posto em votação. Outros projetos mais importantes terão prioridade.”
“Legislativo aprova aumento de 50% para os seus próprios salários. Salário mínimo tem aumento ínfimo”.
“Autor da proposta pedindo mais verbas pela educação vota contra o próprio projeto obedecendo à ordem do partido”.
“Em pouco de mais de um ano, Legislativo aprova novo aumento de 50% para os seus próprios salários.”
Ao término da legislatura, o mesmo homem de sorriso brilhante retornou ao lugar onde José morava para pedir votos para algo chamado “reeleição”. Dizia que um mandato só era muito pouco para fazer algo pelo povo e que precisava de mais tempo. Falou sobre suas importantes realizações, como os projetos que propôs e as comissões que participou. José, ao ver o digníssimo legislador que ajudou a eleger, o questionou indignado:
– Doutor, não sei se lembra de mim. O senhor veio pedir meu voto há anos atrás, dizendo que se eleito seria o nosso representante e prometendo que nossas crianças teriam mais escolas. Bradou que a democracia é o governo do povo! Pois bem. O senhor recebe um salário altíssimo para os padrões da maioria da população e que é pago com o dinheiro suado do povo. Mesmo assim, aumentou duas vezes os seus vencimentos. Eu não lhe dei meu voto para o senhor para ganhar aumento e a pobreza continuar para o resto da população!
– A imprensa tem o costume de alardear coisas sem importância como essa. Nossa ajuda de custo estava defasada e o senhor não faz idéia dos enormes gastos que nós temos para nos sustentar e oferecer um serviço para a população que nos elegeu. Não foi um aumento, mas sim uma recomposição monetária necessária para corrigir distorções. Mas não vamos falar disso. Eu sou uma pessoa de palavra. Não prometi que faria uma lei para colocar mais crianças na escola? É de minha autoria o projeto de lei n.º 01144134/124 que destina mais verbas para a educação.
– Do que adianta, doutor, criar uma lei para o bem do povo e ela ficar engavetada? Primeiro, ela foi deixada de lado por conta de outras coisas mais importantes, como o seu aumento. Depois a oposição, da qual o senhor faz parte, trancou a pauta a votação seguidas vezes. E quando finalmente foi para à plenário, o senhor votou contra seu próprio projeto para obedecer a ordem do seu partido, que não era o mesmo pelo qual o senhor se elegeu! Nossas crianças ainda estão sem escolas! O senhor tinha que defender as necessidades de quem votou no senhor e não os interesses do seu partido. O senhor disse que o voto é importante, pois elege os representantes do povo, mas eu faço parte do povo e o senhor não está me representando! Para mim, isso não parece ser democracia.
– Ah! É compreensível que o senhor não entenda toda a complexidade da política, uma vez que viveu tantos anos nas trevas da ditadura. Todas estas coisas fazem parte do jogo democrático. Além disso, a democracia é muito mais do que o voto. Democracia também é liberdade. O senhor deve ser lembrar bem dos tempos do silêncio e da surra, não é? Se você tivesse dito metade do que me disse naqueles tempos de ditadura, você seria silenciado e surrado. Mas somente na democracia que nós vivemos o senhor pode dizer o que acha e não será perseguido por isso. Democracia é não é somente eleger seus representantes. É também o direito à liberdade de expressão. Ou vai me dizer que prefere a ditadura?
– Claro que não! – retrucou José. Melhor viver na democracia do que na ditadura. Mas convenhamos, doutor: felizmente não vivemos na ditadura, mas infelizmente ainda não vivemos em uma plena democracia.