Acredito que esse é um dos contos que eu mais gosto estilo do narrador. Cabe dizer aqui que o escrevi depois de ler "Os filhos de Anansi" do Gaiman, um escritor de quem admiro a habilidade em escrever coisas profundas e tramas complexas de um modo que uma criança de 13 anos entenderia.
Tem um quê de Amelie Poulaint também, não que eu goste tanto assim do filme.
Divirtam-se! Na semana que vem, ou quando a primeira parte atingir sete comentários , eu posto a segunda parte!
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O bilhete premiado
Rodrigo Sax van Kampen
Rodrigo Sax van Kampen
Essa é apenas mais uma história como as outras, pois assim como todas as histórias, essa tem um começo, um meio e um fim. E tem também um personagem principal, chamado Marcos, que era solteiro e tinha lá pelos trinta anos de idade. Não podemos dizer que ele se destacava entre as outras pessoas, já começava a ficar calvo, mas fora isso, nenhuma outra particularidade mais interessante, a não ser, talvez, que Marcos gostava de colecionar bilhetes de cinema. Não do tipo que vai no cinema e guarda o bilhete como recordação, ele não gostava dos filmes, achava-os chatos, ou monótonos, ou então lhe desagradava a trilha sonora. Ele só entrava no cinema quando, sem conseguir o ingresso de outra forma, acabava comprando, e assistia o filme somente para não perder o seu dinheiro. Mas o que realmente brilhava aos seus olhos eram os bilhetes, com o título do filme magistralmente abreviado, o número da sala em negrito, a fonte da letrinha miúda onde se lia que o bilhete não era passível de devolução e o código de barras e seus mistérios criptografados.
Fora isso Marcos era uma pessoa normal. Andava de ônibus e pegava metrô, trabalhava em uma firma de contabilidade e pedia comida chinesa uma vez a cada quinze dias.
Um belo dia, Marcos encontrou na porta de seu prédio um bilhete para um filme em cartaz, que, para a sua sorte, era da sessão do dia anterior. Tamanha a sua felicidade, que guardou cuidadosamente na carteira, entre a carteirinha do clube e a de motorista, para mais tarde adicioná-la à sua coleção. E foi nesse mesmo dia, quando voltava já para o seu pequeno apartamento de dois cômodos, que percebeu outro bilhete perto de sua casa, a mais ou menos uma quadra. O curioso era que não estava jogado no chão ou flutuando ao sabor do vento, mas cuidadosamente preso com fita adesiva na lateral de uma banca de jornais, na altura de seus olhos. Intrigado, pegou o bilhete e juntou-o à sua coleção.
No dia seguinte, mais uma entrada para o cinema estava por perto de sua casa, mas desta vez na esquina duas quadras mais para a frente, preso com a mesma fita adesiva no poste do semáforo. Não se pode dizer que Marcos se espantou com aquilo, mas de fato a misteriosa seqüência de achados era bastante peculiar. De qualquer modo, estava contente por aumentar a sua coleção.
Quando voltou do trabalho, desceu apressado do metrô, caminhando muito atento esperando encontrar mais alguma coisa, no entanto, para sua surpresa, nada mais havia. E a história dos bilhetes misteriosos parou por aí.
Parou por apenas duas semanas. Pois depois desse tempo, num domingo meio chuvoso, Marcos precisou ir até a farmácia comprar um remédio para a gripe que começava a lhe atormentar. E tal a sua surpresa ao ver, colado bem no meio da vitrine, um bilhete para o filme King Kong, que acabara de ceder seu lugar a alguma comédia romântica americana. Olhou para o lado, e avistou o poste do semáforo onde encontrara duas semanas antes o último bilhete e começou a reparar no padrão que faziam. Caminhou um pouco mais para a frente, e ali estava, preso na quina de uma vitrine, mais um bilhete para um filme um pouco mais velho, talvez de um ano atrás. Era repetido, é claro, mas esse pequeno detalhe não chegou a ofuscar o sorriso no canto na boca de Marcos.
Procurou o próximo mais adiante, porém, para a sua surpresa, não encontrou nada além de alguns papéis de chiclete no chão e um recibo de supermercado molhado. Decepcionado, voltou ao seu apartamento e deitou na cama, resfriado, e sem nenhuma resposta.
Nada mais aconteceu em uma semana, a não ser o fato de os ônibus entrarem em greve e Marcos ter chegado atrasado no serviço, ter conversado com o chefe a respeito, quase ter sido demitido e feito as pazes na quinta feira, quando, depois do expediente, acabou indo tomar um chope com os colegas e com o chefe. Mas não é isso que nos interessa nessa história, o que interessa é que depois de voltar para casa, Marcos caminhava atento pelo seu bairro, à procura de misteriosas entradas para o cinema, voltando sempre decepcionado para sua cama, para novamente olhar fixamente o teto.
Eis que chega o domingo, que ao contrário da semana anterior, fazia sol, talvez sol demais, tornando a tarefa de permanecer enfurnado no apartamento um tanto inglória. Por isso Marcos resolveu passear no parque com o seu cachorro. Ele não tinha um cachorro, mas pensou que era o que a maioria das pessoas fazia de domingo, então daria uma volta no parque, quem sabe acharia um cachorro fofinho e sem dono procurando alguém para levá-lo para passear?
Acontece que ao trancar a porta de casa, viu, colado no trinco pelo lado de fora, e com a mesma fita adesiva das entradas anteriores, um bilhete para o filme “E o Vento Levou”. Não para as exibições velhas, mas para uma exibição especial que acontecera no mês passado em comemoração a sei-lá-quantos anos de um dos atores. Um bilhete raríssimo que realmente sentia não ter em sua coleção aparecia agora gratuitamente colado no trinco de sua porta.
(Continua...)