Uma Sombra na Fazenda de um Solitário
O arado irrompia a manhã fresca, acordando a terra de seu sono miserável, revoltando o solo da campina, exterminando o orvalho. Seu detentor, um velho fazendeiro solitário, esmorecia-se na embriaguez do tédio enquanto o manuseava experientemente, trabalhando a terra marrom, que agora jazia parcialmente sem grama, daquela região que ambicionava ser uma ostentosa plantação. Esmorecia-se nas profundezas de sua servidão, assim como em todas as outras manhãs decorridas, as quais compartilhou copiosamente com os outros personagens deste cenário bucólico; gado, pasto, árvores já naufragadas em velhice por não terem com quem o que mais partilhar. Nisso se assemelhavam modestamente ao velho, vassalo de si mesmo, que agora ia pisoteando pesarosamente as gramíneas sobreviventes, sussurrando no ouvido do vento palavras incompreensíveis em sensibilidade. Iria preparar outra área para plantar.
Enquanto trabalhava flertava jovialmente com toda a paisagem que construíra em seus duzentos anos de vida. A cerca amarela, sem qualquer arame farpado brutalmente desnecessário, que abrangia os limites da sua propriedade, já não era a mesma cerca amarela que por si fora sido construída. Envelhecera ainda que simultaneamente com o velho e, mesmo assim, não se compreendiam nem se assimilavam, pois aquela tonalidade de amarelo já estava mirrada, ao longe, percorrendo uma distância incógnita, enquanto o velho envelhecia uma velhice diferente, sisuda, carrancuda e relutante.
Ao lado da cerca fincada na terra residiam algumas hortaliças, plantadas e cultivadas carinhosamente por aquela mão antiga e aveludada que, após tantas desilusões consigo mesma, havia alcançado uma ajuizada sutileza em seus movimentos. E contornando as tais hortaliças, prodigiosamente coloridas, realçando sua florífera adolescência, encontravam-se pequenos caminhos de terra, severamente surrados, que, ao cortarem diversas áreas de cultivo, formavam uma legítima malha de “rodovias” de infra-estrutura e planejamento comparável às de suas verdadeiras irmãs; estradas pavimentadas e tributáveis pelas quais circulava um grande fluxo de veículos motorizados. Ali, pelo contrário, só havia um velho para circular. E talvez fosse basicamente por conta de tais análogos motivos existencialistas que ele construiu essas estradinhas, preenchendo cada bloco, ou quarteirão, contorneado pelas vias, com uma espécie única de hortaliça e nesse momento, inclusive, ele trabalhava para plantar e cultivar ali, num dos novos quarteirões de sua cidadezinha, uma espécie recém-chegada de semente. Tudo era então devidamente enfeitado pelo velho durante os afazeres escuros da sua solidão.
Além de toda essa complexa estrutura, havia ainda na fazenda espaço suficiente para reinar uma natureza que resplandecia sem a mão de qualquer criador ou interventor. Aquela campina sobre a qual se situava a fazenda era mesmo um espetáculo faraônico; admitia isso habitualmente. Mas não era o mesmo espetáculo que foi para os seus olhos quando comprou, há tanto tempo, o sítio. A paisagem se desgastara, mesmo depois das inúmeras tentativas do seu dono em embelezá-la.
O gado bovino pastava solto no horizonte longe do terreno surrado e preparado para as hortaliças e, sabe-se lá por que, nunca as viera pisotear ingenuamente. Convivia em comunhão com toda a natureza da fazenda, bebendo a água fresca e reluzente do lago e saboreando através da ruminação a pastagem sempre úmida que por ali predominava deixando um espaço ou outro na planície que ainda não havia sido convertida em plantação, por pura generosidade, para as árvores majestosas da região, de raízes tão profundas que pareciam ir atingir o inferno.
O capim, no entanto, apesar de sua brava extensão, não cobria toda a parcial superfície da fazenda do velho, deixando um espaço, próximo às margens do lago, na ribanceira, onde nenhum bicho alcançava devido ao declive brusco do terreno, para o bosque que, ao contrário das árvores avulsas na planície, e semelhantemente às hortaliças, deleitavam-se em sua juventude. De modo que o velho quase nunca chegava àquelas proximidades, embora o argumento mais usado para justificar à sua consciência era o de que ali, por não haver trabalho nenhum a ser feito, deveria prosperar a natureza em sua mais resoluta autonomia.
Após a compulsiva aração do solo o velho, que ainda era humano, transpirava grosseiramente, ruminando, assim como o gado, a perspectiva do seu trabalho. Ia subir, assim como fazia todos os dias, para a casa, para tomar uns goles de água de bom alívio, medicando e diminuindo à metade o rigor daquele trabalho manual diário e simetricamente rotineiro. Sendo assim, escalou o caminho que levava até a casa, tomando alguns atalhos pelas avenidas de terra, e lá adentrou, escancarando a porta de madeira rústica, já acostumada forçosamente a essa submissão.
Devido à construção malfeita da casa – o velho nunca possuíra nenhum estudo em arquitetura ou engenharia – a luz era peneirada pelas janelas e pela disposição das paredes e portas reluzindo apenas inocuamente, de maneira fosca, pelos cômodos. Tal imperfeição não incomodava ao velho, pois a meia-luz era relaxante aos seus olhos, que, após terem visto de tudo, necessitavam de sereno descanso e repouso. Acontecia de, nesse caso, a meia-luz, curiosamente, exalar um cheiro fresco pela casa, que se assemelhava ao de terra molhada. Interessava-lhe muito contemplar as partículas de pó que podiam ser vistas navegando o ar, quando a claridade entrava através de rajadas pelas janelas mais pequeninas, realçando apenas os tons amarelados do ambiente, mas nada muito intenso ou vivo.
Sua velhice não lhe garantia mais surpresas, porém, sucedeu-se que nesse dia a vida permitiria alguns desvios; dedicado inteiramente à solidão, e com ela contentado, o velho sequer cogitava algum intruso em sua propriedade, até porque não havia o que ser roubado ali. Mas, ao abrir caminho pelos corredores da casa, a fim de se atingir a cozinha para tomar água do galão térmico, topou com uma sombra humanóide, que se projetava numa das paredes antecessoras à da cozinha. Um calafrio consternou-lhe a espinha dorsal, abatendo sua postura e remetendo sua coragem ao chão. Ali caiu e ficou prostrado sem pensar, pois o susto fora tremendo e desumano, tomando-lhe as chances de fazer qualquer reflexão racional sobre o assunto e, portanto, tomando-lhe as chances de agir.
Aquela sombra era, no mínimo das coisas, interessante e ao mesmo tempo amedrontadora. Tinha uma estatura mediana e se assemelhava à do velho, mas possuía uma postura jovem, menos acabrunhada. A silhueta, no entanto, era descabida; parecia repousar uma peruca no topo da cabeça, de cabelo extremamente avantajado, de modo que só a peruca deveria ser metade da forma sombria, e os cabelos pareciam pender para todos os lados. Tinha a impressão de que, através do formato dos cabelos, fosse uma pessoa ruiva. Mas tal acusação não possuía argumentos bem apurados, então logo a descartou, deixando no lugar a imagem de uma pessoa sem rosto e sem cores, como a própria sombra.
A pessoa, ou sombra, não fazia gestos bruscos. Parecia esperar calmamente sem qualquer predisposição ou hora marcada. O velho por sua vez já tinha a garganta seca e custava-lhe a engolir. O que lhe parecia tão distante da realidade era a idéia do tal intruso estar ali, logo no cômodo na frente, em sua cozinha!, espreitando no silêncio oculto dos cantos angulares abandonados e empoeirados. Podia sentir no contorno negro da sombra a sua respiração; era plausível, tranqüila, permitindo-lhe a contemplação. Era como uma daquelas imagens que ao exercitarem a mente através de movimentos matematicamente encaixados, permitem o relaxamento e descanso da mesma, o que, para o velho, era um mau agouro. Tais exercícios cansavam-lhe a mente, e iria dormir tão logo não escapasse daquela hipnose. E era cedo ainda; meio-dia. Sabia disso pelo modo como a luz invadia naquele cômodo, indicando o sol reluzente no topo extremo do céu de brigadeiro, que lhe dava ainda mais sede.
O velho continuava prostrado, peitando o piso frio – de medo -, com as mãos sobre a cabeça, observando a cada deslize no contorno da sombra. Não havia mais o que notar a respeito dela, então lhe cabia ficar divagando sobre seus detalhes; a roupa que estaria vestindo, se era um homem ou uma mulher, entre outras coisas. Apesar de sua sede, com a qual - através do trabalho compulsório ao qual se auto submetera-se ao longo de sua vida - já estava acostumado, estando disposto a permanecer ali, sem dormir, competindo em uma guerra secreta com a sombra, determinado a não ser o primeiro a tomar uma atitude. E, embora a pessoa dona da sombra não tivesse o visto nem lhe tomado devido reconhecimento, também deveria estar competindo, assim pensava o velho. Temia – num súbito preparo genioso, assemelhando-se a um estrategista militar - a chegada da noite, pois sem o sol não poderia ver a sombra e, então, ela se camuflaria na escuridão total, da qual, certamente, iria tomar proveito para si a fim de fazer, provavelmente, uma investida ofensiva e maligna enquanto o velho permaneceria entrincheirado nas nuances da penumbra, sentindo as cócegas feitas pelas valas aleatórias entre os azulejos mal encaixados. E estava ainda, acima de tudo, preparado para lidar com o sono, pois já passara diversas noites em claro, de modo que perdera a conta, por ter estado tantas vezes tão cansado que não possuía energias nem para descansar.
Assim chegou a noite e misturou com sua escuridão a sombra daquela sinistra personagem que repousava na suavidade do cômodo seguinte. A tensão e medo domavam o velho que continuava na mesma posição, com os ouvidos aguçados, ensaiando retorná-los a uma qualidade de jovem da qual ele já não mais dispunha, tentando captar quaisquer alterações sonoras. Ouvia, porém, perfeitamente a respiração da criatura e era tão branda e humana que não se assemelhava a anterior imagem a qual lhe fora atribuída: um monstro invasor que lhe roubaria a vida e seus pertences em constrangimento.
As hortaliças, coitadas, alfinetavam a consciência do velho, que as imaginava abandonadas sob o luar frio e amuado. Nunca tivera tal divagação, porque sempre trabalhara arduamente todo o dia para que na noite tudo estivesse terminado e pudesse assim desfrutar de seu descanso silencioso. Mas permanecia inacabado e, portanto, abandonado. Sua consciência lhe torturava, tão mais ou da mesma maneira que aquela sombra que, após ter se se fundido à escuridão da noite, preenchia todos os cantos e paredes lisas da casa. O velho tentava ainda resistir, agora deitado confortavelmente – conformado - no chão, aguardando infantilmente pela luz do dia.
Mas sua sede era amarga e corroia-lhe a garganta áspera e arenosa. Nessa idade seu corpo não permitia tais testes físicos. Implorava por água e ele mesmo estava cedendo através de tentativas vãs de criar coragem para avançar ao próximo cômodo. A saliva era pedra rochosa e titânica. O chão vestia a mortalha do lúgubre idoso que, se não tomasse apenas água, iria perecer ali mesmo e ninguém nunca viria saber, o que não seria tão diferente se morresse no campo, trabalhando. Mas essa não era a idéia de morte que havia concebido e idealizado durante sua vida toda. Se entrasse na cozinha para tomar água, a criatura iria descer-lhe um machado no pescoço logo que por ela passasse. Rendia-se pensando que a sede e todo esse envolvimento faziam parte da trama daquela sombra. Não poderia, por conta disso, levantar-se e ir correndo embriagar-se com a água do lago, lá embaixo, pois se o fizesse, a tortuosa sombra iria ouvi-lo e persegui-lo-ia com o machado, de modo que não conseguiria resistir numa luta, dada sua avantajada velhice e fraqueza física de momento. Ela iria lhe matar de uma forma ou de outra, com a sede, ou com o machado. O velho preferiu a sede.