Sombra

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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 13:20

Lá vamos nós refazer o tópico de novo... Espero que esta seja a última vez que mudamos de fórum. Aproveito para atualizar, colocando a parte 54, onde se inicia o tão esperado churrasco. Sem mais delongas...



Sombra

Parte 1: Khestalus

De que adianta a imortalidade se você não pode aproveitá-la? Pode parecer estranho que eu, com todos os meus séculos de existência, continue com este hábito de caminhar. A cada mês, caminho por um lugar diferente do mundo. Normalmente lugares onde eu mantenha certa influência, mas às vezes procuro lugares novos. Analiso as pessoas nas ruas, escuto pensamentos soltos no Plano das Idéias... É divertido, relaxante e bem prazeroso, principalmente quando encontro alguém insatisfeito com a própria vida. Alguém disposto a qualquer coisa para mudar sua atual condição. Alguém que daria a própria alma por isso. É bem prazeroso ajudar estes pobres coitados.

"... vinde a nós criatura das profundezas infernais..."

Bingo! Isso é o que eu chamo de alguém disposto a tudo. Não é o pensamento mais comum para se ouvir vindo de um colégio às quatro horas da tarde, mas... Adolescentes. Adoram qualquer coisa que seja “má”. Querem se impor. Se mostrar independentes e auto-suficientes, mas sempre se borram de medo e voltam para a barra da saia de suas mães quando acontece algo mais grave. Talvez eu ajude mais um pobre coitado hoje. Talvez eu apenas assuste alguns jovens estúpidos. Não importa. Hoje estou de férias, o que vier é lucro.

Quatro horas da tarde. Uma sala de aula escura e fechada. Um garoto e duas garotas. Estudando? Não, invocando demônios. Ou, simplesmente tentando. Patético. Não podem me ver, pois assim eu desejo, mas não duvido se algum deles tiver a sensibilidade suficiente para ao menos me sentir. Riem de suas próprias idiotices enquanto chamam por alguém que já está tão próximo. O garoto, cabelos pretos desgrenhados e olhos escuros, assim como a garota de cabelos vermelhos tingidos, óculos e olhos exóticos, um azul e o outro verde, está totalmente descrente. Quer apenas se divertir com a crença da segunda garota, uma morena, cabelos pretos, espírita. Ela não queria invocar demônios, queria falar com o espírito de algum morto. Claro, ela não tem culpa de sua ignorância. Não teria como saber que durante o dia a Sombra do Mundo fica distante. O Mundo dos Mortos fica inacessível. Já o Inferno está sempre pronto para atender chamados.

"Tem alguém aí?"

Querem se comunicar sem me ver. Brincadeira da caneta. Nas mãos de um feiticeiro experiente, tal feitiço poderia funcionar. Bem, vamos à diversão. Pego em suas mãos e arrasto a caneta.

SIM

O susto deles quando a caneta se mexe sem que eles me percebam é deveras engraçado. Meu poder sobre suas mentes é tão grande que, mesmo estando ali, na frente deles, não conseguem me ver. Ignoram minha presença de tal forma que acreditam com todas as forças que estão sozinhos, pelo menos no Plano Material.

"Qual seu nome?"

Nome? Para que querem um nome? Eu poderia citar qualquer um de meus antigos nomes e nenhum deles diria nada sobre mim. Certo, que conheçam meu nome atual. Pelo menos não me chamarão de “Coisa” ou “Ele”.

K-H-E-S-T-A-L-U-S

"Você é bom ou mal?"

Que tipo de conceito estúpido é esse? Acreditam mesmo que o mundo é dividido de forma tão maniqueísta? Eu me considero uma pessoa boa. Outros não teriam a mesma opinião sobre mim. Bem, vou jogar no cara ou coroa. Cara, serei bonzinho. Coroa, serei malvado.

M-A-L

"Vá embora!"

NÃO

Hahaha, eu devia tirar férias mais vezes... Acreditam que podem me expulsar simplesmente rezando o Pai Nosso. Não vou estragar suas crenças. Deixarei-os pensando que estão livres de mim. Mas, como o destino decidiu, eu sou o malvado deste jogo. Acho que vou aleijar um deles. Será tão fácil arrebatar algumas almas através do medo. A ruivinha parece tão convicta de sua segurança. Então, que você fique tetraplégica.
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 13:31

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Parte 2: Athos

Até que me adaptei bem. De um ano para o outro minha vida virou de cabeça pra baixo: meu cachorro morreu, meus pais se separaram, mudei de cidade e escola depois de anos estudando no mesmo lugar, meu pai foi transferido para uma cidade distante... Tudo isso no ano do meu vestibular. Nos primeiros meses quase entrei em depressão, mas felizmente me adaptei. A maioria do pessoal dessa nova escola é amigável, ao menos comigo. Passo quase o dia todo no colégio. Às vezes estudando, às vezes não...

"Topa fazer a brincadeira da caneta?"

Essa Daniele é meio maluca. Sabe que eu não acredito nisso. Ela mesma não acredita. Quer fazer isso pra quê? Bem, não tenho nada de bom pra fazer mesmo... Nem lembro como chegamos a esse assunto, mas esse é o tipo de coisa estúpida que todo mundo acaba fazendo um dia ou outro. A Carla é espírita, acredita nesse lance de espíritos. Vai ser divertido zoar um pouco, depois ela vai acabar rindo também. Não vai fazer mal algum. Vamos lá.

“Não tá funcionando”. Carla diz, ainda segurando, juntamente com Daniele e eu, na caneta mantida em pé no centro do tabuleiro improvisado, com as letras do alfabeto e as palavras ‘sim’ e ‘não’ nas extremidades.

"Tenta você, Athos".

Bem, foi ela que pediu. “Ô demonada, precisamos de um de vocês pra mexer essa caneta aqui. Será que dá pra parar de coçar o saco aí no inferno e vir aqui nos dar uma ajudinha?”

"Porque temos que chamar um demônio?"

"Já ouviu alguém dizer que invocou um anjo? Acorda, Carla."

“Athos, tenta sério, agora.” Daniele pisca pra mim. Eu sabia. Ela inventou isso só pra zoar também. Então, é hora do show! “Ser das trevas, atenda meu chamado. Eu clamo por sua atenção. Por favor, vinde a nós criatura das profundezas infernais. Realize nossos desejos. Não mais se esconda. Apareça!”

"Hahahaha, isso que eu chamo de invocação de demônio".

"Pára de rir Daniele. E, aí Athos? Alguma coisa?"

“Não sei... Talvez tenha funcionado, talvez não. Faz um teste, pergunta alguma coisa aí.”

"Tem alguém aí?"

SIM

“Putamerda!” – Não acreditei quando senti a caneta puxando minha mão e se arrastando como se tivesse vontade própria até a palavra ‘Sim’ do tabuleiro improvisado. Nunca pensei que algo assim pudesse acontecer. Nós realmente conseguimos chamar alguma coisa, mas não faço nenhuma idéia de como agir. O que diabos era aquilo? O ar ficou pesado de repente, parece que há alguém ali conosco, mas não consigo ver nada. Sinto uma presença, mas não vejo. Talvez seja realmente um espírito influenciando o plano material. Começamos isso, então vamos continuar. “Qual seu nome?”

K-H-E-S-T-A-L-U-S

A caneta se arrasta até as letras, uma a uma, enquanto formávamos o nome mentalmente. Que tipo de nome é esse? Não parece ser nome de brasileiro morto. É impressão minha ou a sala ficou mais escura? O que mais me impressiona é que não estou com medo. Assustado com o inesperado, sim, mas não com medo. Só queria saber o que significa essa presença. Se eu fechasse os olhos, poderia jurar que estou com mais três pessoas na sala.

"Você é bom ou mal?"

Que tipo de conceito estúpido é esse? A Carla realmente acredita que o mundo é dividido de forma tão simples?

M-A-L

"Manda ele ir embora, Athos".

Legal, uma entidade maniqueísta. Carla está realmente assustada. Bem, até eu estou. Melhor parar. Porque não consigo soltar a caneta? Talvez ele tenha que ir embora antes de terminar o processo. “Vá embora.”

NÃO

“Athos, é você?” Daniele não sabe no que acreditar. Não quer acreditar que a caneta está realmente se mexendo, mas sabe que é verdade.

"Claro que não! Droga, e agora, o que a gente faz?"

"Vamos rezar o Pai Nosso".

"Puxa que grande idéia!" Não é uma boa hora para ser sarcástico, mas...

"Tem idéia melhor?"

Dessa vez Carla me pegou. Não sei o que fazer. Resolvo acompanhar a oração que, por incrível que pareça, dá certo. Consigo soltar a caneta, apesar de ainda sentir a presença. Saímos da sala, resolvemos ir embora. Carla ainda está preocupada. Daniele diz que ele não pode nos afetar no plano material. Não sei se ela está dizendo a verdade ou se é só para tranqüilizar a amiga. Uns moleques jogando bola na calçada. Eu devia estar fazendo algo desse tipo, não invocando demônios. Vamos atravessar a rua, mas antes minha cabeça começa a doer, eu levo a mão na têmpora, fecho meus olhos e então, eu vejo...
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 13:32

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Parte 3: Premonição

Imagens desconexas dançam na minha cabeça. Odeio quando isso acontece. Mas desta vez há algo diferente. Desta vez eu consigo focalizar alguma coisa. Um homem de terno preto e olhos verdes, um carro virando a esquina em alta velocidade, uma garota amarrando o cadarço do tênis, um garoto chutando uma bola e... Uma garota sendo atropelada.

“Vocês vêm ou não?” A pergunta de Daniele me trás de volta. Ela já está no meio da rua, eu ainda estou na calçada, mas Carla... Olho para trás e vejo Carla amarrando o cadarço do tênis. Ouço um barulho de cantar de pneus e quando me volto vejo um carro em alta velocidade. Daniele só tem tempo de se virar e vislumbrar, assustada, o carro em sua direção...

O carro da polícia veio logo atrás. Se desviou de mim. Ainda ouvi o policial me xingando. Mas... O que estou fazendo agachado bem no meio da rua? Porque meu braço esquerdo dói tanto e não consigo movê-lo? Porque minha barriga arde? E... Daniele! Eu a vejo caída na beirada da rua, mas não está machucada. Ela está bem. Assustada, mas bem. Só agora percebi. Uma pequena multidão se aglomera me olhando assustada. O que diabos aconteceu?!

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Adoro manipular o destino. Seja para bem ou para mal. A sensação de poder é ótima. Nunca me canso dela. O grupo de garotos está assustado, mas acreditam estar livres de mim. Mas não estão. Estão condenados. Se condenaram quando inventaram de invocar um demônio e acabaram conseguindo. A primeira será a ruiva. Ouço um barulho de cantar de pneus. A garota está no meio da rua. Os homens no carro, provavelmente, estão fugindo da polícia. Minha maldição manipulou a realidade e o destino sussurrou este trajeto ao motorista. Agora ele atropelará a garota e a deixará para trás. Ela ficará tetraplégica e eu a ajudarei a se recuperar... Por um preço.

De repente sinto o choque mental. Uma pancada na alma. Algo não está certo. A garota não foi atropelada e está livre do destino que eu lhe tracei. Minha maldição foi quebrada! O garoto pulou e empurrou a ruiva, tirando-a do caminho do carro. Ele foi atropelado no lugar dela, e, pela forma como o carro chocou com seu corpo, deveria ter morrido. Não é apenas isso que está errado... O fato de o garoto ter salvado a ruiva do atropelamento não deveria quebrar minha maldição. A maldição continuaria a perseguí-la até que se concretiza-se. Alguma coisa está muito errada. Invoco meus poderes para ver novamente o atropelamento e analisá-lo.

A ruiva está no meio da rua. O garoto ainda está na calçada. Aparentemente com dor de cabeça. A ruiva chama o casal de amigos. O garoto volta a si assustado. O carro vira a esquina. A ruiva se vira para ver o carro. O garoto salta empurrando-a. O carro vai acertá-lo, mas de repente uma bola acerta no pára-choque do carro e volta no abdome do garoto. A força com que a bola o acerta impulsiona o corpo do garoto para cima tirando-o do alcance do pára-choque. O carro acerta-o e ele rola por cima do mesmo, caindo no chão agachado se apoiando no joelho e na mão. O braço que o carro acertou parece quebrado. De onde diabos veio essa bola? Me viro e vejo uns garotos. Estavam jogando futebol. Um deles deve ter chutado no momento e direção exatos. Tal acontecimento não faz sentido. Volto a mim. Uma pequena multidão se aglomera em torno do garoto. Um simples mortal não teria sobrevivido e muito menos quebrado minha maldição. Invoco meus poderes para ver sua aura. Vejo as cores em mutação. Laranja, verde claro, azul escuro, vermelho... Está confuso. Nenhum sentimento se sobressai. Está surpreso, nem acredita no que aconteceu, mas está feliz pelo que aconteceu. Não faz sentido. Faísca... Tenho a impressão de ter visto sua aura faiscando. Isso normalmente acontece quando a pessoa está esperançosa e sonhadora, o que não parece ser o caso. Faísca... Agora tenho certeza, sua aura está faiscando. Faíscas discretas e quase imperceptíveis. Faíscas verdes. Não consigo acreditar no que vem à minha mente, mas a hipótese me impressiona. Terei de esticar minhas férias. Meus seguidores podem viver sem mim por alguns dias. Meus planos e estudos não estarão acabados caso eu me ausente por um curto período de tempo. Se o garoto for realmente o que estou pensando que é, então eu encontrei algo MUITO interessante...
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 13:35

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Parte 4: A Visita

Me levaram para um hospital. Disseram que meu braço quebrou quando fui atropelado, ao salvar Daniele. Tive muita sorte. Eu deveria ter morrido, mas por sorte, apenas quebrei o braço esquerdo. O gesso incomoda bastante, mas aposto que incomoda menos que um caixão. Minha mãe ficou desesperada. Felizmente, estou bem. Só me pergunto se isto teve alguma ligação com o que fizemos.

Volto pra casa. O que mais me incomoda é não me lembrar de salvá-la. Eu me esforço, mas uma hora eu vejo o carro e na outra eu estou agachado no meio da rua. Um homem de terno preto. Não tinha ninguém assim perto do colégio, mas a imagem dele vem a minha mente. Seria minha imaginação? Minha cabeça está doendo desde o atropelamento. Acho melhor repousar. Amanhã é sexta, tenho aula... E prova.

Assinar o gesso. Que coisa mais besta. Mas tudo bem. Se as garotas gostam, não sou eu quem vai discordar. Brinco dizendo ser um herói. Outros dizem que sou apenas um imbecil com muita sorte. Assisto as aulas, faço as provas... Odeio história. Volto pra casa. Felizmente amanhã é sábado. Apesar de ter aula pela manhã, ao menos não tenho que voltar ao colégio à tarde. Talvez eu faça alguns deveres. Alguns professores já estão putos comigo por eu ter esquecido alguns deveres. Domingo vou navegar na internet. Falar com alguns amigos. Vai ser difícil digitar usando apenas uma mão, mas tudo bem.

Minha mãe chega do trabalho. Sempre meio estressada. Às vezes desconta a raiva em mim, às vezes na minha irmã, mas ta valendo, ela tem dias difíceis. Sei por que ela sempre conta, em voz alta, o que aconteceu. Não ta nem aí se tem alguém prestando atenção ou não. É a forma que ela tem para liberar o stress: Falando. Jantamos e eu resolvo dormir. Minha cabeça ainda dói um pouco e amanhã acordo cedo. De novo.



Daniele estava certa. Seja lá o que for que invocamos, não pode nos afetar no plano material. O atropelamento foi uma triste coincidência. Já se passou mais de uma semana e não houve nenhum acontecimento anormal. Com exceção da prova de química de hoje. Eu normalmente sou bom em química, mas hoje... Eu devia ter estudado. Volto pra casa. Amanhã é sábado. Não dá pra sair assim. ‘Oi, qual seu nome? Que nome lindo. Gostaria de assinar meu gesso?’ Sem chance. Vou ficar em casa mesmo. Passar um tempo com minha mãe e minha irmã. Domingo tem jogo. RPG, um hobby exótico, mas bem divertido, principalmente no grupo em que jogo. Tem cada uma... E segunda já tem aula de novo. Odeio segunda-feira. Que filme vai passar na Tela Quente? Ah, sei lá...

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Depois de visitar meus adoradores e cuidar para que meus planos e objetivos não se percam com minha ausência, finalmente posso voltar minha atenção novamente a esse rapaz. Athos Emanuel de Oliveira, 17 anos não completos. Nascido dia 31 de Maio de 1988 na cidade de Goiânia, capital do estado de Goiás da República Federativa do Brasil. Mora com a mãe, Núbia Ferreira de Oliveira e a irmã mais nova, Luna Ferreira Barroso. Cursa o 3º ano do Ensino Médio. Aparentemente, um rapaz normal. As excentricidades que acompanham sua história também não são tão anormais, mas para descobrir a verdade sobre ele, não basta analisar sua história. Tenho que analisar a história antes dele. A história de sua mãe. A história desta mulher que carrega veios negros em sua aura...

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Tomo banho, janto, escovo os dentes e vou dormir. Escuridão... Um vazio sem fim... Inconsciência... Frustração...Vontade de acordar... Desespero... Colégio. Estou na frente do colégio. Um homem de terno preto, cabelos compridos e olhos verdes também está lá. Um olhando pro outro. Ele diz com uma voz firme: “Acorde, precisamos conversar”. A voz ecoa por todo lado. O ambiente se desfragmenta. Escuridão... Não a escuridão vazia e desesperadora da inconsciência, mas a escuridão do meu quarto. Eu acordei. “Levante-se”. Eu ouço a voz novamente. Desta vez foi real. Vinda da porta do meu quarto. Tem alguém no meu quarto! Posso sentir a presença. A mesma presença que senti na sala de aula no dia do atropelamento.

“Boa noite, Athos”. Eu me levanto lentamente. Medo... Me viro e fito a escuridão. Meus olhos se acostumam com a falta de luz e consigo ver a silhueta de um homem perto da porta do quarto. Como, diabos, ele entrou aqui?! Não posso acender a luz. O interruptor fica ao lado da porta. “Não tenha medo, Athos. Não vou lhe fazer mal. Estou aqui para te contar algumas coisas. Quero apenas conversar. Quer que eu acenda a luz?” Eu apenas balanço a cabeça. Ele aperta o interruptor e o ambiente se ilumina de repente, machucando meus olhos. Me acostumo novamente e vejo o homem de terno preto, cabelos compridos e olhos verdes. “Muito prazer, Athos. Sou Khestalus, seu pai”.
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 13:36

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Parte 5: Revelação

O homem de terno preto... E agora está no meu quarto. Se apresentou como Khestalus, o nome do ser que invocamos. Então é por isso que, mesmo sem nunca ter visto esse homem, eu estava com ele na cabeça? Ele é o tal de Khestalus? Não pode nos afetar no Plano Material? Diz isso pra ele. Só pode ser brincadeira. Quem é esse cara? Ou melhor, o que é esse cara? Disse que não quer me fazer mal. Disse que quer conversar. Disse ser meu pai. Meu pai? O que ele quis dizer com isso? Sobre o que ele quer conversar? É alguém tentando me assustar? Não vão me enganar, eu não sou tão burro assim. “Quem é você?”

“Eu sou Khestalus, Arquiduque da Ambição, mas isto nada lhe diz. A pergunta que devia ter feito é ‘O que é você?’. Desta forma eu lhe responderia: Sou um demônio. Pertenço a uma raça temida em lendas e histórias, mas que oficialmente, não existe. Poucas pessoas acreditam na nossa existência e ainda menos sabem dela. Somos conhecidos pelo mal que causamos. Somos os chamados, ‘inimigos de Deus’. Somos seres forjados de corrupção. Criados a partir de almas corruptas. Cuspidos pela terra avermelhada do Inferno, um mundo espiritual de dor, sofrimento e caos”. “Presenciei sua tentativa de invocação semana passada. Ela nunca funcionaria, mas o Destino quis que eu prestasse atenção em você. Como deve ter imaginado, o atropelamento foi obra minha. Eu tinha traçado o destino de sua amiga. Eu a amaldiçoei. Ela ficaria tetraplégica. Eu fiz isto para que, mais tarde, vocês me vendessem suas almas, pois é isto que nós, demônios, fazemos. Nós corrompemos pessoas para levar mais almas para o Inferno. Mas naquele momento você fez algo praticamente impossível. Você, não apenas salvou sua amiga, mas também quebrou minha maldição traçando um novo destino para a garota”.

Que monte de merda... Ele espera que eu acredite? Fala sério, é alguém tentando me sacanear, não é? É pra me ensinar uma lição? Algo do tipo: ‘não invoque demônios’? Isso é ridículo. Mas tudo bem, vou entrar no jogo dele. Seja lá quem for esse cara, vai acabar se contradizendo. “E porque eu não me lembro de salvá-la? Eu me esforço, mas não consigo me lembrar. Por que?”

“Talvez pelo esforço mental e espiritual que você precisou fazer para livrá-la da maldição. Entenda que, não importa se ela escapou do carro. A maldição continuaria perseguindo-a. Você, ao querer salvá-la, quebrou minha maldição. Você não a salvou apenas do carro, mas também de qualquer outro acidente que o destino armasse para que ela ficasse tetraplégica”.

Ele fala de forma convincente. É um ótimo ator. Dá até vontade de acreditar. Vou continuar a brincadeira. “E você veio aqui para se vingar de mim? Se você é um demônio, onde está meu anjo da guarda?”

“As pessoas não têm ‘anjos da guarda’. Pelo menos não desta forma. Os Celestiais existem, sim. Eles são os responsáveis por salvar as almas. Esta é a guerra entre Luz e Trevas, Céu e Inferno. Mas não espere pela ajuda deles. Eles não virão aqui. No entanto, você não vai precisar de ajuda, pois eu não vim me vingar de você. Como disse, o Destino quis que eu reparasse em você. Tem idéia do motivo?”

“Você veio aqui para me corromper? Para comprar minha alma? Para me levar para o inferno? O ‘destino’ te disse que seria fácil? Sem chance, cara. Eu faço meu destino”.

“Claro. Apenas você tem o poder de decidir se suas ações terão alguma utilidade ou se sua vida será fútil e banal como a da maioria das pessoas. Mas não tentarei te corromper. Você decidirá o que fazer da sua vida”.

Vida fútil e banal... Algo que sempre me preocupou. Nunca quis ter uma vida fútil e banal. Quero fazer a diferença. “Então porque está aqui?”

“Goiânia, setembro de 1987. Uma jovem muito bonita cruzou meu caminho. Decidi corrompê-la. Eu a seduzi e a levei para a cama. Entre carícias, ela me vendeu sua alma em troca de coisas simples. Eu não acompanhei o destino dela. Apenas tracei-o de forma que ela conseguisse o que pediu. Mas algo de diferente aconteceu. Demônios são estéreis. Não nos reproduzimos. Novos demônios nascem de almas corruptas que vão para o Inferno. Nós não temos filhos. Mas existe uma lenda que fala sobre filhos de demônios com humanas. São apenas lendas. Histórias, sobre os chamados Nephalins, são sempre contadas por alguém que ouviu a história de um servo de um demônio desconhecido de um Feudo distante. Mas toda lenda tem descrições e toda história tem um fundo de verdade.” “Estou aqui, porque tenho motivos para acreditar que você não é um humano comum. Creio que você seja uma aberração sobrenatural, um meio-demônio, um Nephalim. Creio que você seja meu filho”.
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 13:36

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Parte 6: O Anel

Ah, essa é boa. Agora ele vai querer me convencer de que eu não sou filho do meu pai, e sim filho dele. E pra completar, ele ainda diz que minha mãe vendeu a própria alma. Quem, diabos, é esse cara? O jeito é continuar a conversa para desmascará-lo. “Porque nunca foi provada a existência de demônios como você?”

“Porque assim queremos. Temos leis no Inferno e uma delas diz para agirmos em segredo. Temos inimigos que nos caçam. Se nos revelássemos eles nos encontrariam. Além do mais, é muito mais fácil corromper quando não sabem de nós. Para continuarmos incógnitos, tornamo-nos invisíveis aos olhos comuns, apagamos memórias, matamos. Temos vários meios para isso”.

Uma frase me vem a mente: ‘A maior façanha do demônio foi convencer o homem de que ele não existe’. De certa forma, faz sentido. “Então, digamos que eu seja seu filho. Logo, eu sou um meio-demônio. E daí? O que acontece agora? Vou ganhar chifres e cuspir fogo aos 18 anos?”

“Não, não. Nephalins são humanos. Especiais, mas humanos. Você não vai se tornar um demônio. Ao menos, não enquanto estiver vivo. Como disse, estou aqui por sua causa. Demônios não têm muitos sentimentos humanos, porque não têm motivos para isso. Onde vivemos, sentimentos são fraquezas a serem exploradas por nossos inimigos. Mas quando te descobri, o instinto paternal nasceu em mim. Me senti meio culpado por não acompanhar seu desenvolvimento e meus afazeres me impedem de começar a acompanhá-lo agora. Mas eu quero seu bem. Quero te ajudar a cumprir o grandioso destino que lhe foi confiado”.

Tendo dito isto, ele tira do bolso interno do paletó um anel e estende a mão para mim, me oferecendo-o. Eu o pego. Um anel de metal totalmente negro, perfeitamente polido e brilhante, com uma estranha escrita ao redor dele, o que me fez lembrar o Um Anel d’O Senhor dos Anéis. Mas o mais estranho é que, por dentro, linhas negras formavam uma estrela de cinco pontas. O anel era a circunferência em torno da estrela, o que formava um pentagrama. Como é que ele queria que eu usasse aquele anel? As linhas não me deixariam colocar no dedo sem arrebentá-las. Tentei tocá-las. Meu dedo atravessou-as e senti um formigamento na ponta do mesmo. Estranho. Não eram linhas. Era... luz. Ao menos foi a única comparação que consegui fazer. Luz negra cujo facho era visível...

“Sei que não estava acreditando muito em mim até então. Isto é sua prova, meu presente e ajuda. Este anel é um artefato valiosíssimo. Com ele você terá grandes poderes. Mas acautele-se, pois a noite esconde muitas criaturas. Chamar atenção não é uma boa idéia. Cuide bem do presente, você verá o quanto ele é valioso. E cuide-se. Você também é muito valioso. Tenho de ir agora. E você precisa se arrumar para o colégio”.

Só então percebi que já estava amanhecendo. Ao voltar meus olhos para ele, vi seu corpo se tornando fumaça. FUMAÇA! Nunca vi algo parecido, nem em filmes! Ele virou fumaça, literalmente! Uma fumaça negra e fedorenta que logo se dissipou. Esfreguei meus olhos. Alucinações? Será que eu sonhei tudo isso? Imaginei? Não. A prova estava na minha mão. O anel. Coloquei-o no dedo. Por onde a tal ‘luz’ passava fazia minha pele formigar. Um segundo depois de soltá-lo em meu dedo, minha mente foi tomada...
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 13:37

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Parte 7: Poder

Escuridão... Sombras... Trevas... Poder... Ritos, procedimentos e feitiços... Círculos, símbolos e palavras de ativação... Magia... Para controlar sombras... Para propagar a escuridão... Para solidificar e manipular trevas... Uma fraqueza... A luz do dia me limitaria... Poder para conseguir mais poder... Conhecimento para ir atrás de mais conhecimento... Energia... Uma força inigualável queimando meu corpo... Algo profano, sujo e maligno... Mas nada disso era mais perturbador do que o fato de eu estar gostando.

Um som repetitivo me trás de volta. Levo algum tempo para me situar. Estou no meu quarto. Durante a noite surgiu um homem que disse ser um demônio. Um homem que disse ser meu pai. Me deu um anel. Um anel que jogou informações estranhas em minha mente, me concedendo a possibilidade de realizar feitos incríveis. Magia. Desligo o alarme do celular que tocava me avisando que chegara a hora de me arrumar para o colégio. Ainda estou abalado. Não sei se conseguirei assistir as aulas, mas preciso de algo para me concentrar ou ficarei louco. Mas antes, preciso fazer um teste.

Me fecho no quarto, puxando as cortinas, deixando-o escuro novamente. Não consigo ver direito. Palavras surgem em minha mente. Coloco a mão sobre meus olhos. “Nox óculus”. Ao abrir os olhos, consigo ver tudo claramente, apesar de saber que está escuro. Consigo ver na escuridão. Uma prova simples, mas eficaz. É verdade. Nada mais faz sentido. Existem coisas estranhas lá fora. Agora eu sei. Mas preciso saber o que são. Não sei como, mas vou descobrir. É isso que farei hoje à noite. Vou descobrir mais coisas. Verei com meus próprios olhos. Me arrumo e vou para o colégio.

Física. O estudo das leis da natureza. Gosto de física. Gosto de saber como as coisas acontecem. Será que a física pode explicar um homem se tornando fumaça? Ou a magia da escuridão que o anel me proporciona? Não a física que eu conheço. Talvez nem a física quântica conhecida atualmente. Mas talvez um dia. Se Deus fez o mundo com todas as leis naturais, com certeza ele fez também leis sobrenaturais...

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Athos está tão distante hoje. O que será que aconteceu? Mal cumprimentou ninguém. Está sério e pensativo. Será que aconteceu alguma coisa? Ele sempre falava comigo, sempre se mostrou interessado em mim, atraído por mim. Ta certo que vários garotos fazem isso, mas duvido que algum deles arriscaria a própria vida para salvar a minha. Até uma semana atrás eu acreditava que ninguém faria isso. Mas ele fez. Chega a ser irritante dever a vida a alguém. É uma dívida bem difícil de pagar. Mas ele não parece interessado nisso. Como se não tivesse feito nada de mais. Brincou dizendo ser um herói no dia seguinte ao acidente, mas só. Nunca vou esquecer aquele dia. Após tentar invocar um espírito, quase fui atropelada. Athos me empurra e é atropelado em meu lugar. Enquanto todos voltavam sua atenção para socorrê-lo, preocupados e assustados, ele se levanta segurando o braço quebrado e me pergunta se estou bem...

"Aconteceu alguma coisa, Athos?"

"Sim, Dani..."

"O que foi?"

"Acordei atrasado hoje... E acabei vestindo meias de cores diferentes".

Sorrio achando graça. Não quer falar. Talvez não seja grave. Um problema pessoal que queira resolver sozinho. Tudo bem, não vou aborrecê-lo insistindo. “Puxa, isso é terrível... Acha que vai sobreviver?”

"Não sei... Mas já estive em piores. Talvez eu supere".

"Torço por você. Mas, e quanto ao gesso? Quando vai tirar mesmo?"

"O cara lá falou que só em uns dois meses. Essa merda incomoda pra caramba".

"Eu sei. Já quebrei o braço altas vezes quando era pequena. É a sua primeira vez?"

"É... E foi por você".

"Estou honrada. Mas o que está achando?"

"Traumatizante".

"Tudo bem, você se acostuma. A primeira vez é assim mesmo".

Conversamos um pouco, até que deu o horário do intervalo, quando todos saem e acaba formando-se grupinhos de conversa. Athos está estranho. Não se mantém fixo em nenhum grupo. Vai de um para outro, como se não conseguisse seguir apenas uma conversa. Percebo um acessório novo em sua mão. Um anel preto estranho. Fico conversando com Carla e Priscila até o final do intervalo. Agora é aula de matemática, saco...
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Sombra

Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 13:37

Sombra

Parte 8: A Primeira Noite

Fim da aula. Faltam horas até o anoitecer. Não consegui prestar atenção direito na aula. Ao menos conversei um pouco. Estou um pouco inquieto. É difícil de acreditar. É como se eu tivesse sonhado. Mas o anel em meu dedo me mantém crente. As informações vagas em minha mente também. As próximas horas serão bem longas. Estou ansioso. Preciso tirar a prova. Preciso descobrir mais. Volto pra casa.

“Ou, me arruma um real, aí”. Droga... ‘Malas’. Três deles. Nunca fui assaltado antes, mas sei que é um assalto. Esse papo de ‘me arruma um real’ é manjado. Estou sozinho e com o braço esquerdo quebrado. Eles são três. Porque não estou sentindo medo? Porque não consigo ver perigo neles? Talvez esteja meio abalado com o que aconteceu hoje. “Não tenho não”.

“Se eu achar, é meu?”

“Não, porque você não vai nem procurar”. O que aconteceu comigo?! Eu to enfrentando eles?! Por causa de alguns trocados?! Não vejo perigo... Não sinto medo... Seriam perigosos? Meu lado racional me diz para não mexer com eles, mas alguma coisa me diz que eles não me farão mal.

“Olha o cara, aí... Passa a grana logo, se não quiser ficar mais engessado”. Ele começa a se aproximar tentando me intimidar. Ainda não sinto medo. Não representam perigo. Como não?! São três contra um! E eu estou com um braço engessado! Engessado não significa imóvel, o gesso é duro e pode até servir como escudo. Dois deles são maiores que eu. Estão em maior número. Não faz sentido enfrentá-los e acho que não conseguirei fugir. Nem preciso, sou superior. Dou-lhe um soco no estômago.

O que eu fiz?! Ataquei primeiro! Agora não tem volta, tenho que vencê-los, não me deixarão ir embora mesmo se eu entregar o dinheiro. Percebo que o golpe foi bem forte, desestruturei totalmente o cara, fazendo-o se curvar e ainda encontro tempo para lhe desferir um golpe contra a nuca mandando-o pro chão. Os outros dois vêm na minha direção surpresos com minha ousadia.

Um me chuta pela esquerda, mas coloco o braço engessado no caminho, mirando sua canela, bloqueando o golpe e fazendo-o sentir dor ao acertar o gesso duro. O outro me desfere um soco pela direita, mas intercepto-o com a mão. É impressão minha ou eles são muito mais lentos e fracos do que aparentam? Aproveito as pernas abertas do primeiro para desferir-lhe um chute na zona mais sensível de seu corpo, levando-o ao chão. O segundo tenta um soco com a outra mão, eu desvio o golpe voltando o braço engessado para sua direção e soco-o no rosto com o punho livre. Nariz quebrado. Ele leva as mãos ao rosto enquanto cai. Sangue escorre de seu nariz. Os três no chão. Derrotados. Eu de pé. Ileso. Venci sem sair do lugar. Venci sem levar um golpe. Venci... Olho em volta para ver se tem alguém por perto. Ninguém. Vou embora.

Estou confuso. Eu, que não tenho quase nenhuma experiência em brigas, derrotei três caras sem levar nem ao menos um golpe. Eles pareciam lentos, fracos e frágeis durante a briga. Sorte? Talvez. Dei muita sorte mesmo. Felizmente não estavam armad... Perigo! Volto-me para trás erguendo a perna direita acertando o estômago do ‘mala’ de nariz quebrado antes deste me alcançar. Ele cai no chão, soltando a faca. Uma faca! Os outros dois continuam no chão. Um está chorando com as mãos entre as pernas. O outro parece desacordado. Pego a faca e jogo longe. “Da próxima vez, escolha melhor o alvo, babaca”. Vou embora, satisfeito. Confuso, mas satisfeito.

Após várias longas horas, finalmente o sol começa a se pôr. Chega a hora de me preparar. Visto uma camiseta preta, calças jeans e tênis. Amarro o cabelo e desenho um círculo no chão do meu quarto usando giz roubado do colégio. Os detalhes do círculo surgem em minha mente e eu os passo para o chão. Fecho as cortinas deixando o quarto em completa escuridão. Me posiciono no centro do círculo. Um ritual para me ajudar durante a noite. Me concentro. Palavras escapam de minha boca: “Rex Umbrae”.

Magia... Para controlar sombras... Acendo a lâmpada. Com um gesto, um pensamento, faço minha sombra se soltar de mim movendo-a pelas paredes do meu quarto ao melhor estilo Peter Pan. Transmuto-a em novas formas. Faço um rápido teatro de sombras. Incrível... Saio de casa. Digo que vou sair com amigos do colégio e que não tenho hora pra voltar. Não sei por onde começar. Ando um pouco sem rumo. Para não chamar atenção, resolvo me manter escondido. Moldando sombras ao meu redor, crio um imenso círculo tendo-me como centro. Concentro-me. “Creo Tenebrae”. Luzes começam a falhar e enfraquecer. Magia. Para propagar a escuridão. Ponho a mão sobre os olhos. “Nox Óculus”. Agora posso caminhar sem ser visto, mas sem prejudicar minha própria visão. Incrível... O poder é fantástico... Fascinante...

Mas não basta ver sem ser visto. Preciso descobrir onde encontrar o que desejo. Preciso reconhecer aquilo que se esconde na escuridão. Felizmente, escuridão é minha nova área de atuação. Concentro-me uma vez mais. “Conscientia Tenebrárum”. Agora qualquer coisa que não fosse natural e estivesse em contato com a escuridão ao meu alcance, seria detectada. Como num radar. Mal conseguia acreditar. Meu primeiro passo dentro de um novo mundo que eu estava prestes a desvendar.

Continuo caminhando. Até agora nada. Pelo menos, nada de anormal. Cruzei com um grupo de pessoas que caminhava no escuro. Reclamaram da queda de energia. Será que eu já me deparei com acontecimentos sobrenaturais sem me dar conta disto, como essas pessoas? Talvez. Sinto alguma coisa. Uma fraca sensação de onde devo ir. Caminho nesta direção. ‘Pit Drog’. Um pit dog que nunca vi vendendo sanduíche e que mais tarde descobri ser um ponto de tráfico de drogas. Já vi caras cheirando cocaína ainda em seus carros na frente do Pit Drog. Já vi também a polícia ali. Mas o ponto continua funcionando. Me aproximo. A escuridão que me acompanha invade o pequeno local. Espio. Tem um homem lá dentro. Está tateando à procura de algo para iluminar o ambiente. Ele não é comum. Sei disso. Mas não parece ser perigoso. Não sinto nem mesmo receio de estar na presença dele. Ele encontra um isqueiro e o acende. A chama mal se forma e já se apaga. Tenta novamente e nada. Ele pragueja. Pára um pouco e então começa a procurar alguma outra coisa. Encontra um celular. Liga-o. A luz da tela ilumina um pouco o ambiente, mas logo se enfraquece. Ele pragueja mais uma vez.

Entro tentando não fazer barulho. Seja lá o que ele for, tenho que tomar cuidado. Apesar dele parecer inofensivo, perdido no escuro... Um revólver. Vejo um revólver preso em suas calças enquanto ele procura alguma outra coisa. Num movimento rápido, eu pego o revólver e me afasto, enquanto ele se vira assustado. “No seu lugar, eu ficaria quietinho”.

“Quem é você?”

“Alguém com um revólver apontado pra sua cara. Acho que você não está em condições de fazer perguntas.”

“O que quer?”

“Respostas. O que é você?”

“Como assim?”

“Sei que não é uma pessoa normal. O que é você?”

“Sou traficante, e daí? Vai mandar me prender, mocinha?”

“Resposta errada. Meu dedo começou a coçar. É melhor cooperar. Você sabe que eu posso te meter um tiro no peito e sumir, sem nunca ser pego. Que tal me responder?”

“Eu não sei do que você ta falando.”

Talvez esteja dizendo a verdade. Se eu sou mesmo um meio-demônio, eu nem sabia disso. Talvez ele também não saiba que não é natural. Droga! Preciso encontrar alguém que possa me esclarecer alguma coisa. De ignorante, basta eu. Talvez com um pouco mais de pressão ele responda algo útil. Tenho uma idéia. Chuto-o no estômago e aproveito a curvatura do seu corpo para acertar-lhe uma coronhada na nuca. Nem acredito no que fiz, mas agora tenho que ir até o fim. Verifico e confirmo a inconsciência do cara. Procuro algo para amarrá-lo...
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Sombra

Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 13:38

Sombra

Parte 9: Interrogatório

Acordo com água fria molhando meu rosto. Ainda está tudo escuro. Sinto dores. Estou amarrado. Grande coisa, aposto que, com um pouco de esforço, consigo me livrar das amarras. De repente ouço algo metálico caindo no chão e uma voz acompanhando o barulho.

“Uma... Duas... Três... Quatro... Cinco... Está com sorte hoje?”

É o cara que invadiu o ponto. Algum desgraçado acabou com a energia do quarteirão só pra isso. Um justiceiro? Algum puto querendo fazer justiça com as próprias mãos? Não sei, mas o cara é forte. Apesar da voz de moleque, ele conseguiu me derrubar com dois golpes. Ouço o barulho do tambor do meu revolver girar. Roleta Russa! O desgraçado vai fazer roleta russa comigo!

“Vamos começar. O que é você? Sei que não é normal. Sei que é algo diferente, que não se encaixa nos padrões de uma pessoa comum. Quero saber apenas o que é você”.

“Não sei do que você ta falando, cara! Você é louco!”

“Resposta errada...”

*clic*

O filho da puta ta mesmo fazendo roleta russa! E se eu arrebentasse as amarras e pulasse em cima dele? Sei mais ou menos onde ele está. Mas ele ta armado. Seria perigoso. Droga! Não tenho muita escolha. Concentro minhas forças. Graças à nova droga que Marco descolou, consigo fazer muito mais do que normalmente faria.

“Digamos que você não saiba o que é. Bem, alguém sabe. Você trabalha pra alguém que sabe. Quero nome e endereço. Se eu achar que está mentindo, você tenta a sorte novamente”.

“Não sei do que ce ta falando, cara! É sério! Juro por deus!”

“Resposta errada...”

*clic*

“Puxa, você está com sorte hoje... Que tal responder certo agora? Suas chances estão acabando...”

E se ele estiver falando do Marco e essa nova droga? Não sei. Merda, por que isso tinha que acontecer logo comigo? Porque justo hoje? Qualquer outro dia ele pegava o Prego. Merda! Deus me odeia mesmo. Vou ter que confiar na sorte. Mais um pouco e arrebento essa porra aqui. “Você ta falando da nova droga do Marco?”

“Vejo que agora estamos tendo progressos. Então esse tal Marco tem uma nova droga que te transformou em algo anormal. Conte-me mais”.

Vou contar é quantos socos vou dar na tua cara, desgraçado. Com certo esforço, arrebento as amarras e salto na direção da voz. Ouço um ‘clique’ da arma e passo direto. O desgraçado se desviou. Antes que eu pudesse pensar em fazer alguma coisa, sinto o filho da mãe quebrando algo grande e duro nas minhas costas. Caio no chão com o impacto. Ah... Dor... Tento me levantar, mas ele pisa nas minhas costas e sinto o cano do revólver na minha cabeça.

“Viu? Eu disse que você não é normal. Um cara com teu físico, não conseguiria se soltar desse jeito. Agora diz o que eu quero ouvir, porque tua sorte ta acabando.”

“Eu não sou nenhum anormal... Essa droga nova... Acho que é um tipo de anabolizante novo... Merda! Eu não sei. Foi o Marco que me deu. Ele tem contato com os chefes. É o intermediário”.

“E onde eu encontro esse tal Marco? Pro seu bem, espero que seja bem convincente”.

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Endereço fácil de decorar. Principalmente pelo número de pontos de referência. Acho que está falando a verdade. Depois descubro como chegar lá.

“Espero que você não os alerte. Sabe como é. Eles vão sacar que você os dedurou. Sabe o que acontece com os dedo-duro, não?”

Depois de anos jogando RPG, participando de teatros e peças do colégio, desenvolvi um certo talento para a interpretação. Mentir, enganar e até mesmo intimidar são coisas acessíveis pra mim. E a escuridão ajuda a dar um clima. Sem poder me ver, sou algo desconhecido pra ele. E todo mundo tem medo do desconhecido. É claro que eu não ia matar o cara. Nem mesmo coloquei balas no revólver. Mas o que importa é que funcionou. Claro, eu não esperava que ele arrebentasse as amarras e saltasse pra cima de mim. Felizmente fui rápido o bastante para me desviar e acertá-lo novamente. Só espero que o gesso tenha sido feito para se quebrar facilmente daquele jeito. Como vou explicar em casa? ‘Ah mãe, meu gesso quebrou quando fui dar porrada num traficante’. Depois invento uma desculpa. Dois meses? Meu braço ta ótimo. Aquele médico não sabe de nada. Pego os pedaços no chão. Não posso arriscar que me identifiquem por causa das assinaturas no gesso...

Guardo o revólver e as balas. Talvez eu precise futuramente. Jogo os pedaços do gesso numa boca de lobo. Depois de me distanciar do Pit Drog, desfaço o encantamento para escurecer o ambiente e para enxergar no escuro. As luzes próximas a mim voltam ao normal. Ver no escuro é bom, mas prefiro uma certa iluminação. Retomo o caminho pra casa. Andei pra caramba. Estou até longe. Uma garota caminhando na direção contrária. O que ela ta fazendo andando sozinha na rua uma hora dessas? Programa? Não parece. Um braço puxa-a para um espaço entre dois estabelecimentos. Legal. Não temos becos escuros cheios de lixo, mas os bandidos arrumaram algo parecido. Não sinto nada de anormal. Só um caso de assalto ou estupro. Vou ver o que posso fazer. Talvez eu espanque mais um desgraçado.
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Sombra

Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 13:39

Sombra

Parte 10: Roxane

Relembrando uma música do Renato Russo: ‘Festa estranha com gente esquisita’. Define direitinho o tal churrasco. E o pior é que minha carona resolveu ficar trêbado e dormir no chão. Por sorte, não estou muito longe de casa. Dá pra ir à pé. É perigoso, mas sei me cuidar. Chamar meu pai é que não vou. Nem meu irmão, porque daria no mesmo. Ele pagaria sapo o percurso inteiro, falando pra mim não me meter com aquele tipo de gente irresponsável. Eu não agüentaria isso, não mesmo. Meus amigos são legais, o problema é quando bebem.

Claro que tinha que acontecer mais alguma coisa de ruim, pro meu sábado ficar perfeito. Ainda na metade do caminho, avisto um cabeludo estranho vestido de preto. Deve ser um daqueles maconheiros que ficam lá no Goiânia Shopping. Espero que não faça nada. Apesar de saber me cuidar muito bem contra esse tipo, não deixo de sentir medo. A rua escura e deserta, um andando de encontro ao outro. Vou fingir que nem o vi. Espero que não faça na... Um braço forte tapa minha boca e me puxa para um espaço estreito entre dois estabelecimentos! Um homem me joga contra a parede e me mostra uma faca.

“Vamos nos divertir um pouco. Pro seu bem, espero que você fique caladinha”.

Estuprador. Droga! Felizmente sei me defender muito bem. Ele guarda a faca e vem na minha direção enquanto tento me livrar do medo e me acalmar. Ele rasga minha blusa, de repente uma voz vem da entrada do pequeno espaço.

“E aí? Quer uma ajuda?” O cabeludo de preto diz se aproximando. Droga! Dois caras complicam as coisas.

“Também quer se divertir, garoto?” Diz o maldito estuprador ao se voltar para o recém chegado.

“Claro, adoro me divertir. Mas a pergunta, eu fiz pra moça”. Ao dizer isso o cabeludo dá um soco no estômago do homem e aproveita o impulso para levantá-lo jogando-o no chão da calçada. O homem se levanta assustado pegando a faca e investindo contra o rapaz que desvia o golpe com uma mão e acerta-o em cheio com a outra. O homem larga a faca e cai gemendo no chão com as mãos no rosto. Não satisfeito, o rapaz ainda chuta o corpo do homem caído umas duas vezes, antes de se voltar pra mim.

“Você está bem?”

Apenas balanço a cabeça. Ainda estou assustada. Ele começa a tirar a roupa. Ah, droga! Será que não vai acabar? Ele estende a camiseta preta pra mim.

“Toma. Veste isso. Você não pode chegar em casa assim.”

Só então percebo que minha blusa virou um trapo rasgado. Ele me oferece a camiseta dele. Não estava querendo se aproveitar de mim. Eu a pego e me visto. “Obrigada...”

“Vamos. Eu te acompanho até sua casa”.

“Não precisa, eu moro aqui perto”.

“Que bom. Assim, não vou ter que andar muito pra ter minha camiseta de volta”.

Nossa, que mico... Já até esqueci da camiseta. Mas ele foi bem sem educação, não precisava me tirar desse jeito. “E quanto a ele?” Digo apontando para o homem no chão.

“Se quiser, pode ligar pra polícia e dar queixa”.

Dar queixa na polícia. Não, isso vai me comprometer e meu pai vai ter que me acompanhar. Não quero que fique sabendo disso. Mudo de assunto. “Qual seu nome?”

“Hã... Athos... E o seu?”

“Athos? Nome diferente. O meu é Roxane.”

“É, Roxane também não é muito comum... Posso perguntar o que você estava fazendo na rua sozinha uma hora dessas?”

“Estava voltando de uma festa. O cara que ia me dar carona pra casa ficou bêbado, então resolvi voltar à pé.”

“É perigoso. Não devia ter feito isso”.

“Ah, eu moro aqui perto. Sem falar que sei me cuidar”.

“É, deu pra perceber...”

“Porque eu nem tive tempo. Logo você apareceu. Aquele cara lá ia ficar chocado, se eu tivesse a chance”.

“Claro...”

“Você nem me conhece, como pode dizer alguma coisa de mim?”

“Você nem me conhece e já está vestindo roupa minha”.

“E você? Posso saber o que você está fazendo na rua uma hora dessas?”

“Eu gosto de andar por aí, à noite, ajudando mocinhas indefesas, mas hoje eu errei, afinal de contas você não estava indefesa”.

“Ah, deixa pra lá...”

Cara chato. Nem me conhece e fica aí falando. Ta que nem meus amigos sabem o quanto posso ser perigosa quando quero, mas... Será que ele não está sentindo frio? Deve estar se segurando. Olhando mais de perto, até que ele é bonitinho.

“Que foi?”

“Hã? Nada. Quantos anos você tem?”

“Dezessete. E você?”

“Dezesseis. Você estuda?”

“3º Ano”.

“Ah. Você mora aqui por perto?”

“Num prédio pra lá”. Ele diz apontando pra trás. Estaria indo pra casa quando nos encontramos? Provavelmente.

“Você estava em alguma festa?”

“Hoje? Não. Estava meio que fazendo uma pesquisa”.

“Há essa hora?”

“Tinha que ser”.

“Pesquisa sobre o que?”

“Ah, umas loucuras minhas...”

“Chegamos. Você me espera aqui? Vou lá encima, troco de roupa e já trago sua camiseta”. Eu digo ao aproximarmos do meu prédio.

“Ok”.

Ele se senta na calçada enquanto peço para o porteiro abrir o portão pra mim. Ah, é sacanagem deixar ele aqui de fora depois de ter me ajudado. É perigoso ficar na rua nessas horas. Sem falar que está meio frio. Não é correto convidar um desconhecido para casa, mas... Bem, ele me ajudou. “Athos”.

“Oi?”

“Vem. Aqui fora ta meio frio. Você vai ficar resfriado”.

“Ta”.

Entramos no elevador e aperto o botão para o sétimo andar. Agora sob uma luz mais forte consigo vê-lo melhor. Magro, mas bonito. Cabelos pretos compridos, olhos escuros, bem escuros. Calças jeans e algo grande no bolso da frente. Deixo escapar um sorriso disfarçado, não consigo deixar de pensar besteira. Um anel preto na mão direita. Nenhum outro adorno.

“Meu pai e meu irmão já devem estar dormindo. Amanhã é domingo, eles vão na igreja pela manhã. Então tenta não fazer barulho. É coisa rápida”.

“Ok”.

Entramos. A sala escura. Tentamos não fazer barulho. De repente a luz se acende e vejo meu pai sentado no sofá tirando a mão do interruptor e me olhando com uma cara não muito boa.
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 13:39

Sombra

Parte 11: Fim da Noite

Ajudei uma garota contra um estuprador e a acompanhei em casa. Roxane. Cabelo castanho claro, também conhecido como ‘loiro natural escurecido pelo tempo’. Olhos verdes. Bonita. Sem a blusa, então... Me chamou para entrar, preocupada com o frio. Como se eu fosse pegar um resfriado com um friozinho qualquer. Eu nem me lembro a última vez que fiquei resfriado. Se é que algum dia eu fiquei. Sétimo andar. Apartamento 702. Escuridão. Luz. Um homem de cabelos e bigode grisalhos nos olhando com olhos azuis límpidos e uma cara não muito boa.

“Pai? Não precisava me esperar, eu disse que chegaria mais tarde”.

“Não estava com sono”.

Mentiroso. Dá pra ver o cansaço na cara dele. Apartamento bonito. Simples. Um crucifixo na parede, um grande terço em outra parede, uma pintura com a imagem de Nossa Senhora, uma bíblia... Parecem ser bem religiosos.

“Resolvi te esperar. Pedi ao César para me avisar quando você chegasse. Fiquei bem surpreso em saber que você chegara à pé com um rapaz sem camisa”.

“Não é nada disso que você está pensando, pai. Esse é o Athos, um amigo meu. Ele me acompanhou até aqui, porque...” Pausa pra pensar. Ela vai mentir, mas está pensando no que dizer. Não sabe mentir. Não se deve hesitar, é preciso pensar rápido. Misturar mentira com verdade e acreditar no que está dizendo para passar credibilidade e naturalidade. Resolvo ajudá-la.

“Boa noite, senhor. Eu acompanhei a Roxane até aqui por causa de um acidente que aconteceu lá na festa. Um cara lá bebeu demais e, quando foi cair, acabou rasgando a blusa dela. Por isso eu emprestei minha camiseta pra ela. Mas depois desse irresponsável fazer isso, a festa praticamente acabou. Eu me prontifiquei a acompanhá-la até aqui, enquanto a carona dela levou o beberrão pra casa, porque tanto eu quanto ela morávamos perto. Desculpe ter preocupado o senhor de alguma forma”.

Ela me olha meio surpresa e volta-se ao pai.

“Pois é, pai, foi isso. Agora, vou ali trocar de roupa pra devolver a camiseta pra ele e deixar ele ir embora”. Ela diz se dirigindo a um corredor com algumas portas, onde devem ser os quartos e banheiro.

“Sente-se. Athos... Nome interessante. É dos Três Mosqueteiros?”

“Acho que sim. Foi minha mãe que me arrumou esse nome. Ela gosta de nomes exóticos”.

“E você conhece Roxane há quanto tempo?”

“Não muito. Eu não costumava conversar muito com ela”. De certa forma, estou falando a verdade.

“Sei... Foi bom o churrasco?”

Então a tal festa era um churrasco? Espero que ele não force muito a barra. Consigo blefar, mas se ele perguntar demais pode acabar me complicando. “Foi sim. Tirando esse incidente, foi bem divertido”.

“Aham...”

Tanto ele quanto eu não estamos com vontade de conversar. Acho que ele está meio desconfiado. Ficamos alguns segundos em silêncio, até Roxane reaparecer no corredor usando uma blusinha branca com alças trazendo minha camiseta embolada nas mãos. Logo me levanto para me livrar do silêncio constrangedor do pai dela. Nos dirigimos à porta.

“Aqui, Athos. Mais uma vez, obrigada”. Ela diz devolvendo minha camiseta.

“Disponha... Até mais, senhor. Tchau”.

“Tchau”.

Ela me dá um beijo no rosto se despedindo e eu me dirijo ao elevador. Desembolo minha camiseta para me vestir e um papel cai de dentro dela. Nele, havia um número de telefone e um nome: Roxane. Guardo o papel no bolso e me visto. Desço, passo pela portaria e tomo novamente o caminho pra casa.

Domingo tem encontro de RPG, à tarde. À noite, vou procurar o endereço que o traficante me deu. Talvez encontre mais respostas, mas por enquanto está tudo bem. Tenho que tomar cuidado para não me complicar. De repente um morcego passa na minha frente me dando um susto e me tirando dos meus pensamentos. O que eu quero agora e dormir e descansar.

Depois de algum tempo, finalmente chego. O porteiro já estava até cochilando. Sinto alguma coisa dentro do prédio. Uma sensação de direção. Uma fraca presença. Paro no meu andar e me surpreendo. A presença vem do meu apartamento! Claro, eu esqueci de desativar o feitiço do ‘radar sobrenatural’! Entro devagar, para não fazer barulho. Seria Khestalus, me visitando novamente? A presença vem do quarto da minha mãe. Me concentro colocando a mão sobre os olhos. “Nox Óculus”. Abro a porta devagar e observo o quarto escuro. Me surpreendo ainda mais ao encontrar a dona da presença. Minha mãe.
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Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 13:40

Sombra

Parte 12: Jogos

Minha mãe não é normal? Porque sinto essa presença nela? Não entendo. Desfaço os feitiços restantes, troco de roupa e vou dormir. Inconsciência... Escuridão... Vazio... Desespero... Uma planície desolada... Céu vermelho com nuvens negras... Árvores mortas e retorcidas... Gritos de dor e ódio... Barulho... Silêncio... Barulho. Silêncio. Barulho. Silêncio. Abro os olhos. Barulho. O telefone tocando. Será que ninguém vai atender? Mais uma vez ele toca. Me levanto e vou até ele. Ao abrir a porta do quarto, meus olhos doem desacostumados com a luz. Toca de novo. “Já vai”. Atendo. “Alô”.

“Athos?” Voz feminina estranhamente familiar...

“Eu”.

“Oi, sumido! Sabe quem ta falando?”

“Alguém que me acordou...”

“Hahaha, vai mais. Fica até altas horas na farra, né?”

“Quem é?”

“Nossa, que falta de consideração. Também não digo, vai ter que adivinhar”.

“Então vou desligar e voltar a dormir. Quando você quiser falar quem é, me liga de novo”.

“Larga de ser chato, Athos. É a Graça”.

Graça... Amiga de longa data... Estudamos juntos da 7ª série até o 2º ano... Se mudou pra capital no mesmo ano que eu. Nos encontramos bastante no início, mantendo a proximidade, mas já faz mais de mês que não nos falávamos. Gosto muito dela. “Graça? Oi, há quanto tempo”.

“Nossa, agora melhorou bastante, seu rabugento. E faz tempo por culpa sua”.

“É, eu sei... Foi mal. Ainda bem que você existe pra me corrigir. Não sei o que seria de mim, sem você”.

“Acho que seria mais preguiçoso e menos rabugento”.

“É... Mas, e aí? Como vão as coisas?”

“Bem. E com você?”

“Mais ou menos. Entrei numa fase meio estranha da minha vida”.

“Vai fazer alguma coisa hoje? A gente podia se encontrar. Ficar falando por telefone não é muito legal”.

“Poxa, hoje eu to cheio de compromisso. Pode ser amanhã à noite, o que você acha?”

“Ótimo, adoro sair segunda-feira à noite. É tão... Nada a ver”.

“Então escolhe um dia, aí”.

“Pode ser amanhã mesmo. Ter conseguido um horário na sua agenda lotada já está ótimo”.

“Não exagera, Graça. Aonde você quer ir?”

“Pode ser num shopping. Que horas?”

“Lá pelas sete e meia. Qual shopping? Goiânia?”

“É. Mais perto”.

“Ok, então a gente se vê lá”.

“Vê se não esquece, hein?”

“Pode deixar. Beijo. Tchau”.

“Beijo”.

Desligo. Graça... Nas últimas vezes que nos vimos, começou a rolar alguma coisa. Mas não queria me envolver em algo sério. Para não magoá-la, tentei me distanciar. Por isso fazia tanto tempo que não nos falávamos. A culpa é minha mesmo. Olho as horas. Onze e meia! Tenho que me arrumar, não posso me atrasar pra sessão. Me arrumo rapidamente, como qualquer coisa... Ao pegar a calça, percebo o revólver. Escondo-o bem, juntamente com as balas. Um papel. O telefone da Roxane. Conheci ela ontem. Depois eu ligo. Agora não vai dar. Vou para o ponto de ônibus e me dirijo pra casa do Bruno.



O grupo de aventureiros finalmente encontra seu inimigo: Dracon, um dragão vermelho que há tempos escravizava uma pequena cidade. Lá estava ele, no fundo de um labirinto subterrâneo, detentor de incríveis poderes e grandiosas riquezas. Orgulhoso e confiante, e com motivos para isso, ele olhava para os meros mortais que ousavam adentrar seu covil. Como todos os outros, estes pereceriam ali. Pouco se diferenciavam de outros estúpidos aventureiros que se julgavam poderosos o bastante para vencê-lo.

Um anão barbudo vestindo pedaços de couro e metal, para proteger seu corpo, empunhava, com seu braço forte, um enorme e pesado machado. Ele sorria exibindo uma selvageria nunca antes vista num representante de seu povo.

Um humano alto e belo vestindo um manto azul com faixas de couro amarradas em pontos estratégicos, para não prejudicar seus movimentos, empunhava um cajado de madeira trabalhada. Em seu rosto a seriedade de alguém que encara a morte de frente e avança.

Uma mulher de orelhas pontudas e olhos amendoados, devido à sua descendência élfica, trajando escassas peças de couro, portava uma adaga que gelava o ar em volta da lâmina, criando pequenos flocos de neve que caiam e se dissipavam no ar. A ambição fazia seus olhos brilharem ao imaginar os tesouros que o monstro dracônico, em sua frente, guardava.

Por último, liderando o grupo, seguia um homem alto, magro e esguio, orelhas muito mais longas e pontudas que as da mulher e os olhos amendoados claros e decididos mostrando ser um legítimo representante da raça élfica. Vestia uma armadura leve feita de couro, em seu pescoço estava pendurado um medalhão com o símbolo da deusa dos elfos e em sua mão estava um florete belíssimo de onde escapavam raios elétricos.

O elfo apontou a arma para seu adversário e bradou: “Dracon, oferecemos-lhe uma chance de rendição. Aceite-a ou ouse testar sua força contra a nossa, sabendo que temos conosco 120% de nosso poder total... E aumentando”.

O dragão respondeu com sua baforada de fogo capaz de incendiar uma cidade inteira. A mulher rolara rapidamente na direção da criatura, escapando das chamas assassinas, posicionando-se embaixo do monstro e rasgando sua carne com a adaga que congelava o ferimento logo após provocá-lo. O couro da criatura era forte, mas mesmo assim, não resistiu aos golpes da semi-elfa.

Antes mesmo da baforada terminar, o elfo saíra do fogo ileso, como se protegido pelo poder da deusa que guiava seu caminho, e já se dirigia na direção da criatura. Seus ágeis e graciosos golpes faziam cortes profundos que logo eram cauterizados pela eletricidade descarregada pela arma. “Teve sua chance de continuar vivo, Dracon. Mas seu orgulho lhe fez desperdiçá-la. Não temos escolha, senão mandar-lhe para o mundo dos mortos. E que os deuses tenham pena de sua alma, se é que você tem uma”.

Após o fim da baforada, surgiam triunfantes o homem de manto e o anão selvagem, atrás de uma barreira mágica. Como se possuído por uma fera furiosa, o anão saiu em disparada portando seu enorme machado e abrindo cortes ainda mais profundos no couro vermelho do dragão. “MORRE, SEU PUTO!”

O dragão, logo vira sua poderosa baforada se mostrar inútil e partira para o combate corpo a corpo, atacando os diminutos inimigos com garras e presas afiadas. Devido ao tamanho dos oponentes, tornava-se difícil acertá-los. Porém, ao atingir a ágil meio-elfa, Dracon percebeu que não seriam necessários vários golpes para derrubar seus frágeis adversários. Com apenas um golpe certeiro, Dracon jogou a mulher já inconsciente e agonizante contra a parede da gigantesca caverna.

O homem de manto apenas observava, aguardando o momento certo para agir. Diferente de seus companheiros, não portava armas, pois sua área de atuação não era o combate. Era um estudioso, alguém que exercitava a mente. Graças à anos de estudos, aprendera a utilizar magia, uma ferramenta que podia ser muito mais poderosa que qualquer arma, se usada corretamente. Ao jogar a mulher contra a parede, Dracon ergueu-se imaginando a vitória próxima. Ao ver isto, o mago encontrou o que queria. A cabeça de seu adversário se encontrava longe de seus companheiros. O elfo corria para socorrer a mulher. Preparou uma de suas magias mais destrutivas mirando a cabeça do oponente. Fazendo os movimentos corretos, ele recitava as palavras mágicas num idioma tão complexo que até ele tinha dificuldades em entender: “Oh, fonte de todo o poder, luz que queima mais que tudo, deixe que teu poder se reúna em minhas mãos. BOLA DE FOGO!”



Dei um tapa em minha testa não acreditando no que ouvi. Diego jogava inúmeros dados de seis faces para calcular o dano que sua magia causaria na criatura. Bruno e Ellen davam risadas, enquanto Cláudio ajudava Diego a contar o resultado dos dados.

“Do que estão rindo? Gostaram das palavras mágicas?” Disse Diego após calcular tudo. Sempre bem vestido, meio playboy, mas muito gente boa. Diego era o mais alto do grupo perdendo apenas para o Bruno. O problema dele era sua lerdeza. Apesar de pensar rápido, demorava para perceber as coisas. Ainda não entendo porque ele quis jogar com o Mago, que tem que ser alguém sempre ligado e atento. Não eram raras as vezes que ele usava magias erradas nas horas erradas e esquecia de usar as magias certas nas horas certas.

“Caralho, vai explodir a cabeça desse dragãozinho de merda”. Disse Cláudio. O mais baixo do grupo, menor até mesmo que Ellen. Compensava isso malhando. Era forte. Apesar da altura, qualquer um pensaria duas vezes antes de se meter com ele. Gostava disso. Não era de briga, mas gostava de impor respeito. Devido ao tamanho e a força, brincávamos chamando-o de Anão. Acabou tomando certo gosto pela raça dos anões, sempre jogava com um deles.

“Foi um belo dano mesmo, pena que não vai ser muito útil”. Disse Bruno, após parar de rir e olhar os inúmeros dados na mesa. Bruno era negro, alto e forte com cabelo blackpower. Pensava rápido e tinha ótimas idéias, por isso era o Narrador do jogo.

“Porque não?” Perguntou Diego ainda sem entender a burrada que fez.

“Dragões vermelhos são imunes à fogo”. Respondeu Bruno sorrindo malignamente.

“Seu burro!” Disse Cláudio acertando um tapa na cabeça de Diego.

“É isso aí, grande mago. Parabéns”. Debochou Ellen. Baixa, magra, bonita e esperta. Gostava de rock. Vivia com camisetas pretas de bandas de heavy metal. Namorava com Bruno há algum tempo. “E você, ô super paladino? Vai deixar a moça aqui morrer?”

“Eu já disse que ia curar seus ferimentos, enquanto Cláudio segura o dragão”. Super paladino. Realmente, meu personagem era do tipo ‘super’ mesmo. Todas as estatísticas e rolagens de dados eram altas. Sou incrivelmente sortudo com os dados. Eram sempre minhas rolagens que salvavam o grupo e frustravam os planos dos vilões criados por Bruno.

RPG. Role Playing Game. Um jogo de interpretação. Um jogo de contar histórias. Um teatro improvisado. Minha forma de fugir da realidade e me divertir. Uma forma de esquecer os problemas do nosso mundo racional e sem graça. Um hobby. Apesar do preconceito que as pessoas têm por não conhecer o jogo, ele é apenas isso: um hobby.

Agora estou descobrindo que nosso mundo não é tão racional e sem graça quanto imaginava. A diferença é que não temos aventureiros combatendo monstros e sim, criaturas se escondendo e usando humanos para seus propósitos.

“Então vou usar Tentáculos Negros de Evard pra segurar o dragão”. Disse Diego pegando o dado apropriado.

“Calma lá, na sua vez você faz isso. Agora é o Athos. Você vai curar a Ellen, né?” Disse Bruno contendo a vontade de Diego de reparar o erro.

“Isso. Cura pelas Mãos. Vou curar todos os pontos de vida dela”.

“Cara, esse bosta do seu paladino é muito apelão”. Disse Cláudio, com seu peculiar linguajar recheado de palavrões desnecessários.

“Ok, Ellen, na próxima rodada você já pode agir. Você acorda com as dores do seu corpo sumindo enquanto seus ferimentos vão se fechando pela bênção do guerreiro divino, aí”.

“Por isso que eu gosto desse nosso super paladino apelão”.

“Agora é o Dracon, que vai mastigar o anão nervosinho”. Diz Bruno jogando os dados do dragão.

“Nervosinho, o caralho! Fúria Bárbara destrutiva que vai transformar seu dragão em suchi. Vou arrancar a língua dele se vier com a boca pro meu lado”.

“Aham... Espera aí que eu to arrumando seus pontos de vida aqui. Ok, o dragão te abocanha. As presas dele dilacerando sua carne e você tentando se safar abrindo a bocarra do monstro, apoiando as mãos no céu da boca dele”.

“Bem desenho animado, né? Eu meto o machado na língua desse cuzão. Vai sangrar até a morte”.

“Na sua vez. Agora é a Ellen.”

“Volto à batalha. Continuar a atacar com a adaga congelante. Sei que ele é vulnerável a dano por frio”. Diz Ellen jogando os dados.

“É?! E porque ninguém me avisou?” Pergunta Diego.

“É meio lógico, né? Forte contra fogo, fraco contra frio”. Responde Ellen.

“Pô, eu tenho Cone Glacial preparado. Podia ter transformado o bicho num boneco de neve há tempos”.

“Na próxima rodada. Nesta você disse que ia usar Tentáculos Negros. Joga aí”.

“To sabendo. Lá vai: ‘Escuridão além do mais negro piche, mais profunda que a mais profunda das noites! Ouça meu chamado e estenda seus braços até nós. TENTÁCULOS NEGROS!’ Beleza, doze tentáculos. Quero prender as garras e segurar a cabeça dele, pra deixar ele imobilizado e enforcá-lo”.

“De onde é que você tirou essas palavras mágicas?” Pergunto curioso. É a primeira vez que ele às utiliza. Depois de improvisar por tanto tempo, parece que dessa vez ele bolou antes de vir pra sessão.

“De Slayers, um anime japonês de fantasia medieval. Legal, né?” Sorrio. Plágio... Era de se esperar.

“Ok, doze tentáculos emergem do chão e começam a agarrar o dragão. Alguns conseguem, outros não”. Diz Bruno jogando os dados, enquanto uma música começa a tocar vinda do celular de Diego.

“Ih, meu pai já ta lá embaixo”.

“Então a gente continua na próxima sessão”.

“Diego, me dá uma carona até lá em casa”. Pede Cláudio que mora perto de Diego.

“Bora. Falô, pessoal”. Diego se despede.

“Falô, seus piolhentos. Até mais”. Cláudio o acompanha.

“Até mais”. Todos se despedem. Ficamos eu, Bruno e Ellen. Como não tenho vocação pra vela e ainda preciso fazer uma coisa, decido ir embora.

“Também to vazando. Tenho que resolver umas coisas ainda e já ta escurecendo”.

“Falô, irmão. Vai nessa”.

“Tchau, super”.

“Falô. Tchau”.

Me dirijo pra casa. Está na hora de ver se a pista que consegui com o traficante é mesmo boa. E tenho a impressão de que é.
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Sombra

Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 13:41

Sombra

Parte 13: Segunda Empreitada

Chego em casa. Mãe assistindo TV no quarto e Luna mexendo no meu computador e ouvindo música. Felizmente, está escutando algo que presta. Piano Bar, Engenheiros do Hawaii. Normalmente, ela só escuta merda. “Você tá aí desde que hora?”

“Desde que voltamos lá da casa do tio Márcio”.

“E isso era que hora?”

“Depois do almoço”.

“Quando, depois do almoço?”

“De tarde”.

Desisto de perguntar. Na frente do computador ela não presta atenção no que a gente diz. Visto uma blusa preta de manga comprida. Guardo o revólver e as balas no bolso sem que Luna perceba. Preciso de algo pra ocultar minha identidade. Não posso entrar na casa de um traficante sem risco de ser reconhecido. Pego um lenço preto que usava como bandana antigamente e guardo no bolso, assim como o giz roubado do colégio e uma tira de couro para amarrar o cabelo. Não vou levar carteira de novo. Pego só uns trocados pros ônibus. Eu poderia andar de ônibus sem pagar, entrando pela porta de trás, mas é melhor fazer as coisas direito, visto que estou carregando uma arma roubada e, provavelmente, ilegal.

“Oi, mãe”. Dou um beijo e ela retribui.

“Oi, meu filho. Que saudade. Senta aqui pra você ver essa reportagem. Você devia ver mais jornal, tem que se manter atualizado pro vestibular”.

“Agora não mãe, estou saindo. Volto tarde, viu?”

“Ok. Cuidado, tá?”

“Ta”.

Nem percebeu que tirei o gesso. Estava entretida com a TV. Se bem que nem falou nada sobre o fato de hoje ser domingo e amanhã ter aula cedo. Ah, deixa pra lá. Vou para o ponto. Nem cinco minutos depois e já estou dentro do ônibus. Vou para o Terminal e de lá pego outro ônibus. O lugar é longe da minha casa. Ao chegar começo a notar os pontos de referência citados pelo traficante. Desço num ponto e começo a andar. Meio periferia, com algumas ruas de terra ainda. Muitas casas grandes e lotes vagos. Seguindo as instruções, chego na frente de uma casa de muro alto cercado por cerca elétrica e portão de aço amarelo.

Preciso dar um jeito de entrar. Olhando melhor, consigo ver uma brecha na cerca elétrica, por onde eu conseguiria passar com um certo esforço. Amarro o cabelo, coloco o lenço sobre a parte inferior do rosto e começo a desenhar o círculo no chão. Como da outra vez, os detalhes vêm em minha mente enquanto eu os passo para o desenho. Me posiciono dentro do mesmo, me concentro e as palavras de ativação novamente escapam da minha boca. “Rex Umbrae”. Posiciono as mãos sobre os olhos, me concentro uma vez mais e... “Nox Óculus”. Manipulando as sombras do local através da minha vontade, faço-as se agruparem formando um grande círculo em volta da propriedade. Fitando o círculo, me concentro novamente. “Creo Tenebrae”.

Corro na direção do muro enquanto o ambiente começa a escurecer tendo suas luzes enfraquecidas até se apagarem. Mesmo as luzes das estrelas e da lua cheia, que já começava a minguar, não iluminavam direito aquele local. Pulei com toda minha força para agarrar o alto do muro. Foi bem mais fácil do que imaginei. Salto para dentro da propriedade. Quintal-jardim bem grande e a casa mais ao fundo da propriedade. Dois andares, médio porte, bonita. Três carros próximos ao portão. Vejo dois homens empunhando armas e trazendo cães nas coleiras. Eles tentam acender suas lanternas. Não sabem que a escuridão presente não é comum. É mágica. Sobrenatural. Droga! Só agora me dei conta de que esqueci de usar o feitiço de radar sobrenatural! Os cães me notam virando-se na minha direção. A adrenalina em meu sangue já está a mil. Tento me concentrar. Os homens estão vindo guiados pelos cães. Palavras surgem em minha mente. “Conscientia Tenebrárum”. De repente começo a sentir sete presenças. Quatro delas próximas a mim. Os dois homens e seus cães. As outras três estão dentro da casa. Uma delas é diferente de todas as outras. Não é uma fraca sensação de onde devo ir... É uma certeza inabalável de que há algo anormal ali. No segundo andar da casa. É lá que terei respostas.

Os latidos dos cães me trazem de volta à realidade. Eles latem e rosnam na minha direção, enquanto os homens apontam suas armas para todos os lados. Os cães parecem me ver, mas os homens não. Droga! O que eu faço? Começo a andar devagar e rente ao muro, recuando. Os cães ainda me seguem seguros apenas pelas coleiras. Dois rottweillers enormes e ferozes e dois homens armados. O medo libera mais adrenalina no meu sangue. Preciso fazer alguma coisa! Tenho apenas seis balas. Os cães estão loucos atrás de mim, enquanto os homens caminham lentamente, segurando as feras e empunhando suas armas.

Armas... Podem me acertar à distância. Pego meu revólver. Aponto e faço mira. Aperto o duro gatilho, mas sem mover a arma. Uma explosão. Meus ouvidos doem e o corpo do homem desfalece caindo ao chão com a cabeça desfigurada. O que foi que eu fiz?! Matei um homem! Não era um homem, era uma criatura. Matei uma pessoa! Não era uma pessoa, era um monstro. Matei um cara... Foi preciso. Matei... Era ele ou eu. Ao cair, o homem solta a corrente e o cão se vê livre para me atacar. Não tinha pensado nisso.

O cão pula encima de mim, me fazendo soltar o revólver para me defender de suas poderosas mordidas. Seguro seu pescoço e sua cabeça que se mechem freneticamente tentando me morder. Com um pouco de esforço, torço a cabeça do monstro canino para o lado quebrando o pescoço do mesmo. Mal me desvencilho do primeiro e o segundo cão também me ataca. Aparentemente o segundo homem soltou-o ao ver seu parceiro tendo a cabeça estourada.

Rolo passando rapidamente pela lateral do cão, escapando de sua mordida na primeira investida e aproveito para pegar pelas patas traseiras dele e arremessá-lo longe girando o corpo ao me levantar. Não sei como fiz isso com um cachorro de uns 100kg, mas o que importa é que fiz. Perigo! Me movo rapidamente pro lado quando ouço uma explosão acompanhada de algo queimando meu braço. O homem já consegue me ver! Está atirando em mim! Se não tivesse me movido, o tiro pegaria em cheio! Me dirijo rapidamente na direção dele. Com a mão direita, tiro a arma da minha direção pouco antes de outro tiro ser disparado. Com a mão esquerda, desloco a mandíbula do homem restante com um golpe certeiro. Volto a mão direita num segundo golpe para desacordá-lo, quando vejo a porta da casa se abrir e despejar mais três homens armados no jardim, porém nenhum deles é sobrenatural. O cão que joguei longe já se levantara e corre na minha direção. A coisa estava ficando feia! Corro para trás dos carros, pelo menos terei cobertura contra os tiros.

Tenho de agir rápido, com tantos disparos, alguém já deve ter alertado a polícia. Mas contra tantos oponentes, só se eu tivesse vários braços para derrubar todos ao mesmo tempo. Braços... Algo vem em minha mente. Uma lembrança. ‘Escuridão além do mais negro piche, mais profunda que a mais profunda das noites! Ouça meu chamado e estenda seus braços até nós. Tentáculos Negros!’

Claro! Porque não pensei nisso antes?! Palavras, símbolos e materiais vêm em minha mente. De repente o cachorro se mostra vindo na minha direção. Ao chegar perto, dou-lhe um chute na boca jogando-o contra o carro. Chuto-o mais, para nocautear a fera. Os homens chegando perto. Querem me cercar. Terão uma surpresa. Moldando suas próprias sombras, crio símbolos místicos embaixo deles. Me concentro. “Brachi Abyssus”. Magia... Para solidificar e manipular trevas...

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Fomos avisados que poderíamos ser atacados naquela semana. Só não imaginava que seria logo no primeiro dia dela. De repente tudo ficou escuro. Uma queda de energia. Marco nos disse para ficarmos atentos. Ao escutar disparos do lado de fora, Marco nos ordenou para que fôssemos ao ataque. Como se precisássemos das ordens dele. Sabemos o que fazer. Pegamos nossas armas e saímos. Estava tudo muito escuro, mas conseguimos ver a silhueta de alguém correndo para trás dos carros. Um dos cães correu na direção dele. Aparentemente os dois caras que vigiavam o lado de fora já eram e um dos cães também.

Dei os sinais aos meus companheiros. Cercaríamos o justiceiro que se escondia atrás dos carros. Faríamos nosso trabalho. Mereceríamos nosso dinheiro. Fomos nos aproximando, enquanto ouvíamos o cão ganir e depois se calar. O cara deve estar usando silenciador.

De repente algo extremamente frio se enrola na minha cintura e me joga no chão. Quando olho para ver o que era, não acredito no que vejo. Um corpo cilíndrico e disforme terminando em três dedos, emergindo do chão onde eu estava. Feito de uma matéria inexplicável. Era totalmente negro. Mais negro que qualquer coisa que eu já tinha visto. E frio. Extremamente frio. Logo ele me atacou novamente me golpeando. Seus golpes eram fortes como os de um homem adulto e o frio queimava com o toque. Peguei a arma no chão para tentar atirar naquele monstro inexplicável. De repente vi que meus companheiros enfrentavam coisas semelhantes. Era como se a própria escuridão se virasse contra nós. Como se o demônio estendesse seus dedos para nos buscar. Mas ele não me levaria sem briga! Coloquei a arma no modo automático e comecei a atirar. Se era contra a escuridão que eu tinha que lutar, então lutaria! Comecei a atirar para todos os lados e a gritar para amedrontá-los! Faria o diabo fugir de medo de mim! Lutei até que um golpe mais forte me jogou no chão desacordado. Espero que Deus tenha piedade de minha alma...

----------------------------------------------

A surpresa nos rostos dos homens só não foi maior que o medo. Ao tentar me cercar, viram-se cercados por tentáculos negros feitos com suas próprias sombras. Sombras solidificadas e tridimensionais. Trevas. Um dos caras desmaiou ao ver um dos tentáculos. Um outro enlouqueceu e começou a atirar para todos os lados, acabou acertando seu terceiro parceiro que caiu abatido pelos tiros. Os tentáculos obedeciam minha vontade perfeitamente. Golpeei o louco até desmaiá-lo. Os tentáculos estavam presos no chão, não podiam sair dali. Deixei-os e corri para a casa, apanhando uma pistola no chão pelo caminho. Ainda restavam duas presenças, além daquela mais forte. Faltava pouco para ter o que eu queria.
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Sombra

Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 13:47

Sombra

Parte 14: Respostas

Corro na direção de uma janela e observo dois homens armados encostados contra paredes esperando que eu entre pela porta de uma sala mobiliada com sofás e uma estante de televisão. Dou um tiro na janela quebrando o vidro e assustando-os. Eles se viram na direção da janela, enquanto eu corro para a porta. Um está vestido de forma social, o outro é o cara que encontrei no Pit Drog. Dá pra ver o medo em seu rosto. Acerto uma coronhada, pelas costas, fazendo-o tombar. O outro se vira, em minha direção, atirando. Salto no chão e me escondo para me livrar dos tiros. Me coloco em posição estratégica e miro para acertar o braço dele e obrigá-lo a soltar a arma. Atiro, porém ele não solta a pistola como planejei. Usando o braço bom, ele atira contra mim, me obrigando a rolar para o lado e escapar. Atiro contra o peito dele, fazendo-o tombar. Droga! Não queria ter de matar.

Subo as escadas para o segundo andar. Duas portas. Sinto a presença atrás de uma delas. Não tenho muito tempo. O ideal nessa hora seria entrar derrubando a porta para intimidar, mas acho melhor usar a maçaneta. Abro a porta e vejo um homem sentado atrás de uma mesa cheia de papéis. Aparentemente o local é um escritório. O homem veste um terno preto e tem uma aparência estranha. Pele muito branca, olhos profundos com olheiras evidentes e tão magro que parece doente. Ele me fita como se me esperasse. Será que consegue me ver?

“Tanto barulho, tanta confusão, tantas mortes... Espero que tenha algo importante a tratar comigo”. Ele diz e enquanto fala, percebo que tem algo estranho em seus dentes...

“O que é você? O que eram aqueles homens e cães lá fora? Quero respostas. Sei que não são normais”.

“Se quer respostas, porque não as pediu com educação? Era preciso tanto alarde?” Ele continua calmo, o que me irrita um pouco. Sinto medo dele, sinto que continuo em perigo. Na verdade, sinto que esse homem de aparência doente é mais perigoso que todos aqueles soldados lá fora.

“Apenas responda, certo? Quero saber como vocês agem. Quero saber como vocês funcionam. Responde, droga!”

“Certo, não precisa se exaltar. Mas saiba que eu também estou curioso. O que é você? Se tem poder suficiente para entrar aqui e acabar com meus homens sozinho, então você também não é normal”.

“Não inverta os papéis. Responda minhas perguntas e fica tudo bem. Estou com uma arma apontada pra você. Se não responder, vou começar a atirar”.

“Calma, não precisa tanto. Eu sei que você está armado. Só queria entender por que alguém com tantas habilidades está agindo de forma tão errada”.

“Como assim?”

“Ora bolas. Vejo que você procura respostas para saber o que você mesmo é. Mas não é prudente invadir os territórios de outro para arrancar respostas. Você devia fazer o que todos fazem e pelo visto você seria bom”.

“E o que todos fazem?”

“Se escondem. Observam e espreitam procurando não chamar a atenção. Sutileza é sinônimo de sobrevivência, neste mundo”.

Droga, ele tem razão. Me expus demais. Devia ter sido mais sutil. Me deixei levar pela ansiedade e acabei sendo imprudente...

“Certo, mas já que estou aqui, não faça todo meu trabalho ser em vão”.

“Respondendo suas perguntas... Não sei exatamente o que eu sou. Sei apenas o que me contaram. Nos chamamos de Anunnaki, descendentes dos sobreviventes de um povo esquecido pelo tempo. Estamos mortos, mas continuamos no mundo dos vivos. Existimos num estado entre vida e morte. Em certos aspectos, nos encaixamos nos mitos dos vampiros, se é que não os originamos”. “Os homens e cães lá embaixo eram meus servos, fortalecidos pelo meu sangue maldito, abençoados com um pouco do meu poder. Mas é claro que estas poucas informações não serão levadas de graça”.

“O que quer dizer?”

“Conhecimento é poder, meu caro. Em troca de um pouco de conhecimento, vou querer um pagamento”.

“Desculpa, cara, mas não tenho grana. Só tenho uma pistola, continua falando se não quiser que eu teste o poder de uma arma de fogo contra seres como você”.

“Não estou interessado em seu dinheiro. Para mim, dinheiro não é nada. Estou mais interessado em um pouco de VIDA”. Dizendo isso ele se levanta jogando a pesada mesa em minha direção, me obrigando a rolar para frente desviando. A mesa se choca pesadamente contra a parede e cai no chão. Ele deve ser muito forte para fazer isso...

“Brachi Abyssus!” Grito moldando as sombras em símbolos próximos a ele. Dos símbolos, emergem tentáculos que se agarram em seus braços e pernas, imobilizando-o no ar. Ele me olha com fúria, mas agora estou no controle da situação.

“Agora você vai responder tudo o que eu perguntar, entendeu? Ou responde ou morre”.

“Você não pode me matar, garoto. Primeiro, porque eu sou imortal. Segundo, porque você precisa de mim. Precisa dos meus conhecimentos e minha sabedoria. Você não é nada!” Ele diz olhando em meus olhos. Ele tem razão... Preciso dele... Não sou nada, pois não sei nada... Abaixo a arma.

“Muito bem. Venha, rapaz, vou te ensinar grandes coisas”. Me aproximo dele.

“Mas como disse, há um preço a ser pago”. Ao dizer isso, ele avança sobre mim, sua boca tomando proporções muito maiores, seus dentes assustadoramente grandes e afiados mordendo-me no ombro. Sabia que tinha alguma coisa errada com os dentes dele. Presas longas e pontiagudas.

A mordida provoca uma sensação indescritível por todo o corpo, como se cada célula adormecesse e saísse de meu controle. Sinto meu corpo se enfraquecer, porém me esforço para continuar de pé, apesar da letargia, da fraqueza e da dificuldade em me controlar. Solto a arma. Imagens desconexas começam a dançar em minha mente. Vejo uma mulher morrendo nos braços dele, enquanto ele morde seu pescoço. Vejo um homem morrendo enquanto a criatura suga seu sangue pelo pulso. Vejo várias pessoas sendo mortas por ele em diferentes imagens que passam rápido pela minha cabeça. Por fim, vejo eu mesmo morrendo enquanto o monstro rouba minha vida através do ferimento no ombro.

“NÃO!” Grito saltando para trás, fugindo da mordida dele. A dormência pára, mas continuo fraco, caindo no chão após o salto. Os tentáculos não estão mais lá e ele se encontra de pé na minha frente. Me sinto fraco e a ferida no ombro dói.

“Você é forte, garoto. Resistiu bem. Não sei o que você é, mas seu sangue é o mais doce que já provei. Você tem mais vida do que qualquer um que já encontrei. Te darei meu sangue para lhe fortalecer em troca do seu para me reviver. Será um bom servo”.

“E você será um bom cadáver!” Digo me arrastando para me distanciar dele. Droga! O que eu faço?! Me encosto na mesa tombada, na entrada da sala. Ponho a mão no ferimento para estancar o sangramento. Tento me levantar buscando apoio no móvel caído.

“Já sou um cadáver, moleque! Será que não ouviu nada do que eu disse? Agora, levante-se!” De repente, ignorando toda a fraqueza, ponho-me de pé rapidamente.

“Aproxime-se”. Caminho na direção dele novamente.

“Você será meu servo. Me obedecerá sem pestanejar. Me concederá seu sangue em troca do meu. Te ensinarei o que quer saber. É o que deseja”.

Meu senhor... Meu mestre... Obedecer... Servir... Sim... NÃO! Porque não? Tenho de obedecê-lo... Não sou nada... Preciso dele... Serei um bom servo... Darei meu sangue... Certo?

“NUNCA!” Grito dando-lhe um soco no queixo. Ele cai no chão com a mão na têmpora. Dor de cabeça? Mas eu o soquei no queixo...

“Muito bem, garoto. Te subestimei. É mais forte do que pensei. Não serve para ser meu servo. Continuará livre. Ou melhor, morrerá livre!” Ele diz se levantando e partindo pra cima de mim me golpeando.

Ele me dá um soco, mas me esquivo abaixando-me e contra-atacando-o com um soco no estômago. Dor... Me esquivo de outro golpe. Fraqueza... Golpeio-o novamente. Dor e fraqueza me atrapalhando... Ignore! Novos golpes desferidos. Ignore a dor! Não pare de bater enquanto o inimigo não cair! Se ele continuar de pé, vai te matar, droga! Um forte soco me acerta o peito jogando-me contra a mesa. A dor volta. A fraqueza me toma. Ele vem se aproximando. Pensa, droga! Preciso dar um jeito de sair dali. Pensa, Athos! Use a cabeça! ‘Será que não ouviu nada do que eu disse?’ Claro que ouvi, mas você não disse nada de útil. ‘Você não é nada!’ Sou mais do que você! Estou vivo! Não preciso parasitar os outros! ‘Em certos aspectos, nos encaixamos no mito dos vampiros’.

“Brachi Abyssus!” Estou fraco. Apenas um tentáculo emerge, saindo do símbolo criado com a sombra dele. O braço negro sai do chão e pega-o desprevenido pelo pescoço erguendo-o com violência e chocando-o contra o teto. Aproveito para chutar uma das pernas da mesa, quebrando-a. Me levanto e salto sobre o monstro usando toda minha força para forçar a ponta quebrada da perna da mesa contra o peito do mesmo. A carne se rasga e algumas costelas se quebram ao se porem no caminho da madeira. Seja vampiro ou não, espero que uma estaca no coração mate-o.

Ele tenta se desvencilhar do tentáculo, mas logo que a estaca trespassa seu peito, seus movimentos cessam. Estará morto? Imóvel, frio, porém os olhos ainda abertos mostram que o monstro continua vivo e me observando com medo. O tentáculo coloca-o no chão. Nos filmes, os vampiros viravam pó ao terem o coração perfurado por uma estaca. Aparentemente, uma mentira hollywoodiana. Pelo menos ele parou de se mexer. Parece-me que a estaca paralisou-o. Como matá-lo? Uma coisa que todas as lendas de vampiros dizem é que eles são queimados pela luz do sol. O tentáculo pega-o e arremessa-o pela janela, quebrando-a e jogando-o encima do telhado da casa.

Respiro fundo, recuperando o ar, tentando me acalmar. Preciso ir embora. Estou ferido, fraco e a polícia já deve estar chegando. Só fiz merda. Desço as escadas e começo a sentir o perigo por perto. Instintivamente me encosto na parede, escapando de um tiro. Será que os caras que eu derrubei já acordaram? São fortes. ‘Fortalecidos pelo meu sangue maldito, abençoados com um pouco do meu poder’.

Pois bem, preciso passar por eles antes de ir. Vamos treinar um pouco o lance da ‘sutileza’. Preciso replanejar meu modo de agir. Tive sorte por enquanto, mas, se continuar agindo assim, posso não ter tanta sorte no futuro. “Brachi Abyssus”.
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Sombra

Mensagempor Gehenna em 01 Set 2007, 13:47

Sombra

Parte 15: Conclusão

Tudo ficou escuro de uma hora pra outra. As luzes enfraqueceram rapidamente. A pouca iluminação presente provinha da lua e estrelas. Os cães começaram a latir e denunciar o invasor. Subestimei. Não achei que seríamos atacados na noite seguinte ao aviso. Por não conseguir ver o intruso, acabei sendo nocauteado. Pelo menos tive mais sorte que o Paulo. Tiro na cabeça. Sem chance. Já era. Quando acordei, percebi que o cara já tinha detonado todo mundo. Depois vi o Marco levantando. Me assustei pensando ser o invasor, mas ele logo se identificou. Logo depois o Régis também acordou. Régis queria ir embora, mas Marco nos organizou para subir pro escritório e pegar o cara. Ele veio atrás do chefão. Devo concordar que o cara é bom, afinal de contas invadiu o lugar sozinho, pelo que o Marco disse. Pouco antes de subirmos, o cara desceu. Régis atirou, mas acho que não pegou. Burro. Nos delatou. Me movi lentamente para me posicionar num local estratégico e ter uma mira melhor. O ambiente continuava muito escuro, mas depois de algum tempo, deu pra acostumar.

“Olá”. Uma voz soa atrás de mim. Tento me virar, mas de repente, uma grande mão, extremamente fria e forte segura minhas mãos que se encontravam estendidas segurando a pistola. Atiro, sem querer, na tentativa de me virar para encarar o maldito. Como diabos ele foi parar ali?

“Você vem sempre aqui?” De repente ele me segura pelo pescoço e me sinto sendo erguido sustentado pelo pescoço e braços. O teto alto da sala está ainda mais escuro que o normal, como se estivesse cheio de uma fumaça negra. Minha visão, que já estava horrível, piora, me impossibilitando de ver até mesmo as parcas silhuetas. Não consigo gritar devido a pressão na minha garganta. De repente sinto minha cabeça chocar contra o teto, ficando meio tonto devido a forte pancada. Ele solta o meu pescoço, enquanto a mão fria me joga, soltando-me do alto. Ao cair, perco os sentidos.

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Não sei por que, mas Marco não quis fugir. Disse que tinham que pegar o invasor. É o mesmo cara que invadiu o ponto do Prego ontem, quando eu estava substituindo-o. Ele é terrível. Derrubou todos os soldados. Pensei que seria um grupo a invadir o lugar. Pensei que demorariam mais para planejar a invasão. Avisei sobre o possível ataque, de forma que não descobrissem que havia sido eu. É inacreditável. Um cara sozinho, invadir e tomar a casa. Ou ele é bom, ou as defesas estavam ruins. Vi quando o cara descia as escadas. Atirei no desgraçado, mas acho que não acertei. Ele se escondeu.

Ouço vindo da direção de Carlos, uma voz seguida por um tiro. Me viro na direção dele. Ouço um barulho vindo do teto, que parece mais escuro que todo o resto do ambiente que já está um breu. De repente algo cai encima de mim. Algo pesado. Um corpo! Me levanto de mal jeito, tirando-o de cima de mim. Procuro a arma que deixei cair com o tombo.

“Procurando alguma coisa?” Merda! Como o filho da mãe veio parar atrás de mim?! Me viro dando-lhe um murro que acerta apenas o ar. Uma grande mão muito fria e forte me pega pelo pescoço elevando-me de forma que não fazia sentido algum. Ele me elevou até me chocar contra o alto teto da sala! Ouço um disparo, vindo de baixo.

“Nos encontramos novamente, hein?” Um soco muito forte atinge meu rosto.

“Devia ter fugido quando teve a chance”. Outro soco acerta meu estômago.

“Olhe pelo lado bom: Na cadeia você estará protegido contra mim”. Mais um soco me acerta no rosto e a mão fria me solta. Eu despenco e desmaio ao atingir o chão.

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De sete homens, sobraram apenas três, que conseguiram se recuperar graças ao poder do sangue de meu Senhor. Se não fosse esse poder, eu estaria morto, graças aos tiros que o filho da puta me acertou. Morrer não é uma sensação nem um pouco boa. Nos reunimos. Quando íamos subir para ver o que estava acontecendo no andar de cima, percebemos que o invasor estava descendo as escadas. Régis foi imprudente, atirou sem que eu desse o comando. Alertou o inimigo. Aparentemente, ele consegue ver no escuro. Deve ser um ser sobrenatural, como meu Senhor. Talvez um inimigo que veio ajustar contas. Droga! Provavelmente, ele o matou. Vai morrer por isso. Onde vou encontrar outro para me fornecer sangue? Vou ter que começar do zero para conseguir a confiança de outro. Até ter confiança suficiente para ser transformado... Maldito!

Uma voz seguida de um tiro vem da direção de Carlos. Um barulho no teto e depois algo caindo, aparentemente, encima de Régis. Parece que o maldito está se locomovendo pelo teto, e descendo para atacar de surpresa. Mais um barulho no teto. Atiro para cima tentando acertá-lo. O teto parece mais escuro do que todo o ambiente. Deve ter feito isso para se esconder completamente. Nem mesmo o fraco flash do disparo conseguiu iluminar o local. Algo frio acerta meus braços me forçando a soltar a arma e logo depois se enrola em meu corpo, me imobilizando. O frio começa a queimar minha pele. Ouço algo caindo no chão.

“Eu não atirei no seu peito?” A criatura diz se aproximando de mim, enquanto a ‘coisa fria’ me imobilizava.

“Sou duro na queda. Posso te ajudar. Posso ser útil. Você é Anunnaki?”

“Não, cara, não sou ‘anunnaki’. Mas sei como você pode me ajudar. Quer ser útil? Que tal explicar o que aconteceu aqui pros policiais? Sabe como é, tenho que ir agora”.

Antes que eu dissesse qualquer coisa, ele me golpeou a face. Um golpe muito forte. Quebrou meu nariz. Não resisti ao segundo golpe. Apaguei.

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Derrubei dois dos bandidos facilmente. O medo no rosto deles era evidente. Nem viram o que os acertou. O terceiro, porém, parecia saber algumas coisas. Achou que eu era alguma criatura. Se ofereceu pra me ajudar. Enquanto falava com ele, senti uma sensação de emergência. Senti que devia sair dali o mais rápido possível. Era a polícia. Estava chegando. Não sei como eu sabia, mas sabia. Dei uns socos nele, para desmaiá-lo, e saí correndo. Criei um tentáculo que me ajudou a pular o muro dos fundos com grande facilidade. Corri por um lote vago. Corri o mais rápido possível. Não me encontrariam. Não mesmo. A escuridão é minha aliada. Corri. Muito. Já me sentia ofegante. Tirei o lenço do rosto e amarrei na cabeça. O suor brotava da testa. Passei a mão para limpá-lo e segui para um ponto de ônibus. Desfiz o feitiço de gerar escuridão. As luzes voltavam lentamente. O sangue não estava muito evidente, pois se camuflava na camisa preta molhada de suor. Desfiz o feitiço de enxergar no escuro. Pouco depois, o ônibus apareceu. Subi e fui para casa. Ao chegar, novamente senti a fraca presença denunciando minha mãe. Presença fraca. Será que minha mãe é serva de alguma criatura? Tenho de descobrir mais coisas. Desfiz os feitiços restantes e apaguei na cama.
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Gehenna
 
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