Tarde em Itapoã (Adulto)

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Tarde em Itapoã (Adulto)

Mensagempor Seth em 29 Mai 2008, 21:07

Tarde em Itapoã:


Um velho calção de banho, um dia pra vadiar...
Num mar que não tem tamanho, um arco-íris no ar...


Quem mora em Salvador, na cidade da Bahia, conhece, desde muito cedo, os meandros da caprichosa e sensual relação entre seu povo e o mar. O grande espelho é, a um só tempo, uma maldição e uma benção, o espelho mutante das almas multifacetadas. É o reino de Janaína, o ponto culminante dos impulsos atávicos do homo sampiens latinus afroamericanus.

Homens e mulheres lindos caminham pelas areias daquelas praias. Mas também lixo, dejetos, animais, pessoas feias, enfim, tudo no mesmo lugar, na mais alegre e indecente festa. A praia não era linda, mas tinha momentos lindos, momentos maravilhosos e momentos únicos. Gonzalo pensava nisso quando viu a moreninha mergulhar, de novo, numa seção mais perigosa da praia. Ela o estava provocando...

Depois, na Praça Caymmi, sentir preguiça no corpo,
E numa esteira de vime beber uma água de coco!


- Então a Espanha é bonita assim? Puxa! – ela era toda excitação, toda momento e nervos, energia represada. Sim, ela era a encarnação da mulata índia de Caminha, a mulher brasileira que todos queriam em todo mundo.
- Sim, é bonita. É o país mais bonito, depois do Brasil.
- Não gosto muito daqui... Muitas pobrezas, muita violência, não têm como melhorar de vida. Só é bom pra rico, que nem você.
- Bom, nesse ponto a Espanha leva vantagem, mas não é mais bonita. Se quiser, te levo, para você tirar a prova...

É bom... Passar uma tarde em Itapoã,
Ao sol que arde em Itapoã!


- Tá vendo como é fácil tirar o passaporte?
- Sim, é fácil mesmo. Obrigado!
- Vamos daqui a um mês. Seus pais permitiram?
- Eu não tenho pais. – Ela agora parecia diferente, ainda com aquele encanto juvenil de antes, aquela coisa que toca por dentro que algumas pessoas tinham; mas agora parecia do mundo, não um ser retirado dele, etéreo.
- Oh... Eu sinto muito...
- Claro que não sente. Eu não sinto, já que eles me abandonaram quando eu era pequena. Cresci com uma avó, quer dizer, eu a chamava de avó, mas não era. Ela morreu há uns dois anos, e, desde então, eu me viro.
Ela parecia ainda mais encantadora ao sol de um fim tarde, emoldurada pela lagoa, pelas areias das dunas, pelo mar. Era o próprio espírito das águas tranqüilas encarnado na sua frente. Ele se perguntava se estava apaixonado pela garota, algo que, até então, não tinha lhe ocorrido. Sentia certa coisa de paternal, de juventude, mas sem um componente mais... mais... Passional!

Ouvindo o mar de Itapoã,
Falar de amor em Itapoã...


Aquele restaurante era um dos mais badalados da cidade entre os conhecedores de culinária baiana. Ele ficava à beira mar mesmo, e as escadas dos fundos davam, justamente, para o mar azulado. O brilho das águas criava um efeito interessante nas paredes, uma coisa meio surreal. Ele escondia, com o tom azulado, o aspecto cinza dos cabelos dele, e os olhos de pupilas pequenas e injetadas. Nela, apenas valorizavam ainda mais a beleza. Ele tocou, de leve, o rosto dela, recebendo, em troca, um beijo na ponta dos dedos. Naquele momento ele foi feliz, bem como ela.

Eles saíram do restaurante rindo. O mundo existia apenas para a sua conveniência, e Brasil, Espanha, o que significavam? Palavras, palavras, de exagero em exagero, chegando ao ponto culminante quando pararam para tomar mais uma caipirinha perto da Sereia e do Acarajé da Cira.

Ela sentia a terra girando, e o mundo era mais colorido, uma coisa mais rica e verdadeira do que o normal, o prosaico. Ela se sentia eufórica, e concordou alegremente em ir com ele para o hotel, arrumar as malas e pegar passagens e mais algumas coisas. Foi então que começou.

Ele pegou o braço dela como quem vai dizer um segredo, mas beijou a orelha dela delicada e docemente; suas mãos acariciaram a linha do rosto dela, que não ofereceu resistência. Ao menos em princípio; logo ela se apartou e correu para um lado do quarto, e ele se sentiu como um tolo, a ereção claramente visível no shorts de surfista.

- Não sou sua puta – disse ela, em voz alta. Os olhos, que ele nunca notara muito bem, agora estavam da cor amarela dos grandes felinos, alertas e resolutos.

- Não quero que seja nada disso, eu apenas quero...
- Uma compensação. Foi por isso que nesses meses se aproximou de mim. Conheço teu tipo, tarado, isso é pedofilia. Eu tenho quinze, e você tem três vezes isso...

Ele se sentiu atingido na face pela ofensa. Sim, por um momento ele se sentiu jovem, com dezoito anos, atraente como um brinquedo novo; sim, por um momento sua vaidade fora reconstituída, e ele fora livre. Agora, ela estava em frangalhos, quebrada diante do altar daquela rainha:

- Pedofilia! – urrou, furioso, triste, preocupado, correndo para ela – o que você sabe sobre pedofilia!? Uma construção cultural do ocidente nesse último século, mas que antes não significava nada! Nada! Mulheres eram tomadas – e ele estava gritando diante do rosto da morena – logo depois da primeira menstruação! E não reclamavam ou se lamuriavam! E eu nem a obriguei a nada que você não quisesse!!

A única resposta dela foi dar um gemido. Ele notou que estava apertando o braço dela com sua mão dura e forte como um torno, e que, obviamente, ela teria alguns hematomas no lugar. Chocado com a sua brutalidade, ele a largou, e se afastou, balbuciando desculpas.

Ela parecia ainda mais altiva do que antes. Não tinha sequer uma sombra de lágrimas nos olhos de mel, nem sorriso nem malícia, nem perdão. E era a dureza da imobilidade, aquela coragem estóica dos que são mais frágeis que tocou ele mais fundo no seu ser. Diante daquela mulher de ébano, toda sentimento, sensualidade, toda pureza e recato, ele entendeu.

Não há pecado nos Trópicos.



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Seth
Editado pela última vez por Seth em 15 Fev 2009, 19:46, em um total de 1 vez.
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Tarde em Itapoã (Adulto)

Mensagempor Elara em 02 Jun 2008, 14:35

...

Complexo.

Realmente, com uma ingenuidade dessas, só mesmo não tendo pecado nos trópicos...

Chero!
This is NOT Sparta!
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Tarde em Itapoã (Adulto)

Mensagempor laharra em 04 Jun 2008, 02:24

Realmente, dependendo do ponto de vista, não há pecado nos trópicos. :cool:
Belo texto, Seth. Bem conduzido e finalizado.
Tentando encontrar inspiração para terminar o conto abaixo:
O Som do Silêncio: Parte IV - A decisão
Reger está às vésperas de uma batalha onde decidirá seu futuro. Durante o que podem ser seus últimos momentos com a Espada e com Alyse, ele se pega pensando sobre a validade de suas aspirações. Acompanhe o conto no link a seguir:
http://www.spellrpg.com.br/forum/viewtopic.php?f=24&t=1067
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Tarde em Itapoã (Adulto)

Mensagempor Saxplr em 17 Jun 2008, 19:12

É impressão minha, ou o nível dos textos aqui na Spell subiu muito depois da minha ausência?
Fiquei curioso com o título, ainda mais relacionado ao "adulto".
Muito bem conduzido mesmo. E complexo. E eu estou repetindo os outros comentários.
Não sei bem o que dizer mais, achei muito bom. Muito bom mesmo.
Revista de histórias:
http://www.balaiobranco.com.br
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Tarde em Itapoã (Adulto)

Mensagempor Captain Beefheart em 19 Jun 2008, 14:17

"Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne".

A passagem do conflito entre os dois me lembrou muito mesmo Lolita, e por mim você está de parabéns, Seth. Gostei do texto, uma ótima versão para a última frase. Maquiavélico. Abraço.
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Tarde em Itapoã (Adulto)

Mensagempor Seth em 20 Jun 2008, 20:47

Pessoal, fico satisfeito que o texto tenha agradado a vocês.


Elara,

Talvez não uma ingenuidade, que é uma coisa que eu deploro, mas qualquer coisa de inocência, de insoldável demais dentro de algumas pessoas; e que, se uma pessoa vivendo vê de uma forma, os de fora podem ver de outra, como, de fato, já o fizeram antes.

E é por isso que não há pecado.
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