Eco
Edgar, de olhos arregalados, ofegava ignorando o suor que lhe corria a face. À medida que viajava pele abaixo, esta pequena gota ganhava volume e velocidade. O rosto inexpressivo do rapaz seria uma pista lisa e veloz, não fosse um corte profundo e ensangüentado que ia da costeleta até metade da bochecha. Como um pequeno afluente, o fio de suor subitamente refreou na papada e desaguou no talho. O ardor arrancou-lhe uma careta e o asco de dor fez o ferimento minar uma mistura de suor e sangue. O líquido viajou a toda velocidade para o queixo, de onde saltou desaparecendo na imundície.
Os velhos cartazes de festa junina ainda adornavam o ginásio esportivo. É verdade que tudo fedia e caía aos pedaços, mas muitas lembranças moravam ali. Embora sonolentas a maior parte do tempo, estas memórias costumavam se alegrar com as visitas. Elas chegavam a sorrir para os transeuntes em alguns momentos, mas na maioria das vezes permaneciam quietas e imperceptíveis.
Até bem pouco tempo, ambos, Edgar e Gabriela, interagiam com esse passado. O local muito significava para eles, pois ali, nas muitas fugas da sala de aula, experimentaram todos os prazeres que o corpo pode conceder. Da infância à adolescência, das carícias ao sexo, das bebidas à cocaína. Tantas aventuras foram, naquele prédio manchado de pichações, que jamais se desligariam de tudo e todos que por ali passaram.
Por isso Edgard se arrependeria eternamente de ter feito aquilo. A culpa tornava dilacerá-lo enquanto caminhava a passos bêbados entre os detritos. Algumas vezes, tinha impressão de que Gabriela ainda vivia, pois vez ou outra podia escutá-la, ainda que bem baixinho, clamando por seu nome. Já ia bem perto da saída do ginásio quando olhou para entrada do banheiro mais uma vez: e viu sair de lá um grupo de meninas, numa correria desesperada. Gritavam histericamente; o som ecoava de forma perturbadora na cabeça do rapaz, que levou as mãos à cabeça na tentativa de evitar os ruídos. O movimento foi totalmente descuidado, ele acabou cortando o próprio rosto com o estilete, outra vez. Apertou os olhos e se isolou na escuridão, embora ainda pudesse ouvir inúmeras vozes, horrorizadas, pois um corpo sangrava no banheiro.
Ele queria explicar, mas uma multidão o cercou sedenta por vingança. Ele se protegia como podia dos empurrões e pancadas, até tudo findar num silencio nebuloso. Depois, novamente um fedor de urina lhe preencheu as narinas. Edgar abriu os olhos e viu que o haviam deixado em paz. Suava como se estivesse febril e ainda segurava o estilete ensangüentado. Ouviu alguém chamar seu nome, uma voz quase sussurrada que vinha do último box.
A voz era familiar.
Edgar levantou assustado e o estilete escorregou acidentalmente para debaixo da pia. Ele engatinhou para alcançá-lo e enquanto o fazia, ouviu o som de uma descarga. Incrédulo, amargou um choro silencioso.
Tornou ouvir alguém lhe chamar, agora tinha certeza que era a voz de Gabriela. Seguiu a passos lentos, parou por alguns instantes quando viu seu reflexo num pedaço de espelho, estava pálido e com olheiras, além do rosto que sangrava. Permaneceu em silêncio por alguns instantes, avaliando o próprio reflexo.
A voz tornou chamá-lo e ele despertou da distração. Depois, segurou firme o estilete e seguiu, até finalmente contemplar a garota, sentada sobre um vaso sanitário. Gabriela estava seminua e havia sujado todo o vaso com o sangue que escorria do ventre. A hemorragia a deixara pálida e trêmula, com um olhar tão suplicante que arrancou súbito desespero do rapaz. Ela o encarou por alguns instantes, sem única palavra dizer, depois prendeu a respiração e inclinou a cabeça para trás.
Suando frio, Edgar fechou os olhos e deslizou o estilete pelo pescoço da menina, sentindo a lâmina romper nacos de carne enrijecida da traquéia. Ela começou a engasgar e resfolegar, mas ele já deixava o local, horrorizado. Enquanto caminhava, uma pequena gota de suor escorreu pela face e tentou se libertar, saltando para a imundície.
Ataualpa S. Pereira