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Mensagempor Lanzi em 16 Mai 2008, 15:29

Eu estava a esmurrar constantemente o acolchoado confortável que revestia o interior do meu caixão. Eu era a polpa desse fruto venenoso, que marchava de maneira fúnebre indo residir pelo resto da existência no cemitério senil da vila. Mas a surdez daqueles operários, mecanizados, que vinham nadando pelo asfalto desde o desfecho de suas fábricas, não lhes permitiu ouvir o desespero dos meus prantos e socos no estofado virgem.

À medida que o caixão ia descendo pelos diversos níveis eu praguejei. Deuses pagãos dançavam em meus ombros e o ar já escasso, se dissipava, indo morrer frio, no interior da minha cólera. Além da epiderme da minha tumba, ecoavam canções lúgubres pelo gramado artificial, e as multidões grotescas se afogavam em lágrimas de crocodilo.

E eu decidi me deixar ser assimilado por aquela desesperança, e repousei serenamente em meu óbito, sem esperar por surpresas, desistindo de lutar contra este paletó isolante. As minhas pálpebras cachoeiravam-se enquanto eu me entrincheirava na sala de espera funesta. Mas um aborto do acaso configurou, após o fechamento das comportas da sepultura, um quadro surreal, que fugia da história de meu cotidiano; uma voz gorda perfurou o silêncio que se pronunciara até agora:

- Mais um!

Meu coração se congelou enquanto eu preparava – em vão – por uma resposta, ou pergunta, pois outro, dessa vez uma voz estridente, fazia-se ouvir naquelas profundezas:

- Sim. Mais um!

Um terceiro resolveu sair do ostracismo:

- Antes que diga algo, novato, irei lhe falar primeiro. – fez uma pequena pausa como se reconhecesse meu pavor e esperasse pela minha recuperação. Iria explicar-me as regras. – Nem você, nem nós estamos mortos. - continuou - E também nunca estaremos! Também fomos todos enterrados vivos.

Alguns questionamentos circunscreviam meu pensamento... Mas haveria tempo de sobra para conversar com aquelas pobres almas - toda a eternidade!
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Mensagempor Ermel em 16 Mai 2008, 17:28

E seria um papo e tanto hein?!

O clima que o texto me proporcionou, no começo, foi algo mais macabro, como talvez uma intriga para roubar o lugar do 'morto'.

Bom texto.
"And the question is
Was I more alive then than I am now?
I happily have to disagree
I laugh more often now
I cry more often now
I am more me!"
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Mensagempor Elara em 16 Mai 2008, 17:34

Engraçadinho.

Porém, careceu de um fechamento que adequasse o texto ao clima criado no início. Pelo menos é o que me transpareceu.

No mais, bem construído, envolvente.

Chero!
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Mensagempor Wency em 16 Mai 2008, 20:24

Thumbs up, dude!


Cantada oferecida como ajuda para o Dragão de Bronze por Blackbird na EIRPG:
Blackbird escreveu:Você tem menos barba que a minha mãe!!!


All Hail Günther!

SPOILER: EXIBIR
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Mensagempor Sampaio em 16 Mai 2008, 23:58

E não é que a interpretação deram a seu outro conto lhe inspirou?

Lembra Poe, os primeiros parágrafos. Até a ruptura, aonde entra um traço não indentificavel.

Seja como for é bom. Não é muito bom, mas é bom. Tem escolha interessantes de palavras como:

Eu era a polpa desse fruto venenoso, que marchava de maneira fúnebre indo residir pelo resto da existência no cemitério senil da vila.


Deuses pagãos dançavam em meus ombros e o ar já escasso, se dissipava, indo morrer frio, no interior da minha cólera.


Mas um aborto do acaso configurou, após o fechamento das comportas da sepultura, um quadro surreal, que fugia da história de meu cotidiano; uma voz gorda perfurou o silêncio que se pronunciara até agora:


Todos os em negrito são escolhas excelentes de palavras, e a meu ver representam o maior mérito do conto.

E não achei um texto necessariamente humorístico. Até tem seu humor, claro, mas achei-o até bem existencialista. A possibilidade de que na verdade não morremos, mas ficamos ali no caixão. Obviamente não é uma possibilidade real, mas é interessante.

É portanto, não um texto humorístico, mas surrealista. Tanto a escolha alternativa (e boa) de palavras, quanto as colocações do "defunto", quanto a cena final, denotam uma outra realidade. Uma outra possibilidade de realidade.

É meio existencialista tb, pensar na eternidade preso, para conversar, e nunca morrer.
Spell: não somos bonzinhos, somos sinceros!
http://www.spellrpg.com.br/portal/index ... &Itemid=72

Perguntem qualquer coisa lá:
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Mensagempor Lanzi em 18 Mai 2008, 18:51

Esse texto foi escrito há 2 anos, mas era bem diferente, já que levava uma carga maior de humor.

Procurei torná-lo mais mórbido an tes do final, pra tentar proporcionar um choque maior e esboçar um sorriso depois da epifania.

Fora isso, não sei porque meus textos têm sofrido certa dose de carga existencialista, já que PENSO EU que não estou passando por nenhuma crise ou contemplação do mesmo naipe.
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Mensagempor Saxplr em 10 Jun 2008, 22:12

Concordo com o Sampaio... Bom... Não muito bom, mas bom...

Gostei bastante também das escolhas das palavras, dão um clima muito bom para o texto.
Mas o final é o grande trunfo dessa história, é muito bom! Faltou um trabalhinho melhor na lingugaem para ela realmente ser tão boa quanto merece ser!
Revista de histórias:
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Mensagempor Captain Beefheart em 19 Jun 2008, 14:07

Oh, Lanzi, esses textos são a sua cara; que fofura! [isso está aqui desprovido de qualquer sentido]

Eu gostei, não vou falar das palavras bem escolhidas porque o Sampaio e o Sax já o fizeram, então eu apenas concordo.

Notei que você poderia ter explorado muito mais o que apenas introduziu no texto, mas optou por linhas lacônicas, o que, para mim, fez toda a diferença na construção da mensagem.

Meus créditos e um abraço!
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Mensagempor Magyar em 15 Fev 2009, 01:14

Hmmm... interessante o texto.

Não sei se estou fazendo a interpretação correta, mas a morte do personagem seria como ele estar sendo contratado para algum emprego? Como cair em uma rotina, talvez? Não consegui tirar essa idéia da minha cabeça quando terminei de ler, e quando reli ela ficou mais forte.

No mais, ficou interessante.
Talvez se focasse um pouco mais na idéia, ficasse melhor (mais claro).

Inté!
Quem me leva a sério não deveria ter saído do hospício.
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Mensagempor Lorde Seth em 26 Fev 2009, 11:08

Bom Lanzi, gostei!

''Mais um''... Mwawwahwahwawha! :cthulhu:

Abraços!
Para viver a realidade, primeiro é preciso acordar do sonho.
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Mensagempor Lanzi em 26 Fev 2009, 14:20

Saxplr escreveu:Concordo com o Sampaio... Bom... Não muito bom, mas bom...

Gostei bastante também das escolhas das palavras, dão um clima muito bom para o texto.
Mas o final é o grande trunfo dessa história, é muito bom! Faltou um trabalhinho melhor na lingugaem para ela realmente ser tão boa quanto merece ser!


Muito obrigado Sax. Fico feliz em ver seu comentário por aqui, porque você anda bem sumido. Poderia postar mais né.

Captain Beefheart escreveu:Oh, Lanzi, esses textos são a sua cara; que fofura! [isso está aqui desprovido de qualquer sentido]

Eu gostei, não vou falar das palavras bem escolhidas porque o Sampaio e o Sax já o fizeram, então eu apenas concordo.

Notei que você poderia ter explorado muito mais o que apenas introduziu no texto, mas optou por linhas lacônicas, o que, para mim, fez toda a diferença na construção da mensagem.

Meus créditos e um abraço!


Sim, a idéia era pra ficar meio humor-negro no final, por isso a breviedade do texto e das descrições. E também para dar um "choque" maior quando se percebe que o texto não é um suspense ou coisa do tipo, mas uma "tragicomédia".

Barlin escreveu:Hmmm... interessante o texto.

Não sei se estou fazendo a interpretação correta, mas a morte do personagem seria como ele estar sendo contratado para algum emprego? Como cair em uma rotina, talvez? Não consegui tirar essa idéia da minha cabeça quando terminei de ler, e quando reli ela ficou mais forte.

No mais, ficou interessante.
Talvez se focasse um pouco mais na idéia, ficasse melhor (mais claro).

Inté!


Talvez não seja o que eu quis dizer, mas depois que o autor dá o texto para alguém ler, ele não mais nos pertence. Então podemos dizer que essa é uma interpretação plausível sim, embora não tenha sido a minha.

Na verdade não se trata exclusivamente de um emprego, mas de consciência. É meio que uma metáfora mesmo. O indivíduo torna-se consciente das coisas ao seu redor e percebe que está praticamente trancafiado em um caixão invisível, e por ele ser invisível e muito maior que si mesmo, não tem forças para abrir. Outras pessoas, que ainda não despertaram para esse tipo de consciência, não discernem a situação e "enterram vivo" aquele "despertado", como num ritual de morte, seja porque ele parou de produzir, ou porque parou de fazer parte da engrenagem. Porque também é difícil conciliar a autonomia e consciência com a robotização da vida e a cobrança de produção.

Quando o personagem vai para o cemitério, onde estão enterrados os despertados, ele encontra outros como ele. E o humor-negro está justamente aí, pois quem devia estar vivo são os despertados e, ironicamente, não estão. É aí também que reside a carga existencialista que o Sampaio percebeu.

Se eu descrevesse mais a idéia ela perderia o potencial interpretativo.



Lorde Seth

Obrigado, hehe.
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