Visita ao Dentista

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Visita ao Dentista

Mensagempor Doktor Faustus em 14 Mai 2008, 17:53

Retornando ao fórum com um novo conto. Peço desculpas por não comentar os contos postados na seção, mas está cada vez mais difícil arrumar tempo para ler os contos - e está cada vez mais difícil também conseguir ler na tela do computador (maldita impressora...)
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Visita ao Dentista

O que conto agora é o que aconteceu comigo numa sexta-feira 13 de um mês de agosto. Relato com o máximo de previsão possível, para que meus futuros leitores não tratem minha história como uma ficção inventada por uma mente perturbada, o que não é em absoluto minha intenção. O fato de estar agora internado num hospício – sim, tenho a consciência disso, e não gosto quando tratam tal instituição como sanatório, casa de repouso ou qualquer outro nome que você conheça – e de, constantemente, ser submetido a tratamentos de choque e a remédios de dosagem extremamente regulada não faz com que minhas lembranças sejam menos claras e muito menos que as considere como fruto de uma imaginação demasiadamente doentia. Minha história pode servir-lhe de advertência, e não é minha intenção, em hipótese alguma, conceder a meu relato qualquer valor artístico e estético. O que virá a seguir, saiba o leitor, trata-se apenas da verdade sem patranhas nem parlapatices, ainda que alguns possam a vir achar que é apenas uma inocente historinha de uma pessoa por natureza supersticiosa e afeita aos fenômenos que se dão em um mundo diferente do que acreditamos que vivemos.

O que aconteceu comigo, repito, deu-se numa sexta-feira 13 de um mês de agosto no consultório dentário do doutor Victor Frank, inglês naturalizado brasileiro que está no país há pelo menos dez anos. Confesso que desde a primeira vez que o vi, em minha consulta de orçamento, senti algo estranho no doutor e que de uma certa maneira me incomodava como nunca antes algo me incomodara. Hoje sei que era seu sorriso sarcástico e sua maneira dissimulada de dizer a seus pacientes “Avisa-me se começa doer”, com um irritante sotaque inglês que alguns pacientes mais ingênuos achavam que dava um certo charme ao doutor recém-chegado, e pelo qual mesmo eu deixei-me de início seduzir por tal característica única do dentista. De fato, só fui perceber a real natureza do dentista numa consulta muito posterior, a minha sexta ou sétima, não sei dizer ao certo.

Na ocasião, fui ao consultório do doutor Victor Frank para tratar de uma cárie que me incomodava em demasia. Nunca antes tive sequer uma cárie, e esta aparecera num dente do fundo, no lado superior direito, e doía bastante, uma dor que nunca antes sentira nos dentes e que era muito estranha, especialmente por não saber como peguei essa cárie, já que cuido de meus dentes como se fossem os bens mais preciosos de minha vida. O doutor recebera-me como o faz habitualmente com seus pacientes de longa data (“Como vão as coisas para você, mister?”), e encaminhara-me à sua sala, onde acomodou-me na cadeira e preparou a obturação. Enquanto o doutor Victor Frank obturava minha cárie, vi, pela primeira vez nessas seis ou sete consultas, que na parede esquerda do consultório estavam pendurados dois quadros. Um deles, cujo artista desconheço, era quase caricatural, e mostrava um dentista balofo, com seu avental branco e com sangue salpicado por toda a roupa, como se o avental fosse apenas um enfeite, parecendo mais com um açougueiro macabro do que com um homem de respeito formado numa ciência tão útil à vida das pessoas; o quadro mostrava, repito, o tal dentista balofo debruçado sobre um paciente magricelo, de corpo desproporcional, onde a cabeçorra destacava-se perto do corpo pequeno e raquítico. O paciente, no quadro, tinha os olhos esbugalhados e uma expressão de dor extrema, mas parecia, pela cena, que sua dor devia-se antes à visão dos instrumentos quase que medievais nas mãos do dentista e pendurados na parede do que ao tratamento, que aparentemente não começara. Para finalizar tal quadro tétrico, o dentista balofo ostentava um sarcástico sorriso sádico, seus olhos olhando um para os instrumento, um para o paciente.

O outro quadro, a pouca distância para a direita deste, mostrava também cena pouco encorajadora. Nele, apareciam demônios de todas as formas e tamanhos, gordos, magros, alados, opacos, translúcidos, com garras, cara de cachorro, rinoceronte, lagarto, águia, leão, morcego, olhos em geral felinos e cheios de maldade, alguns com chifres longos, outros retorcidos, caudas, pés de bode ou de cachorro, com a carne virada do avesso, mostrando músculos e partes de órgãos infernais internos em vez da pele, enfim, demônios de todos os tipos, fustigando com seus açoites, lanças, garras e presas dezenas de pessoas nuas, que lamentavam com as mãos voltadas para o céu, implorando perdão e misericórdia, enquanto devoravam sua própria carne, muitas vezes em chamas, e pareciam lançar impropérios contra os demônios carrascos. Isso no primeiro plano e na parte inferior do quadro. Em segundo plano e na parte superior, com vulcões e tenebrosas nuvens que descarregavam relâmpagos às costas, conversavam, apontando o dedo para os pecadores em agonia, um dragão de três cabeças e gigantescas asas, de cuja boca uma leve labareda escapava, como se em sua fala o fogo saísse de suas ventas, e um belíssimo anjo, com três pares de asas luminosas, o torso nu, e apenas um saiote escondendo os genitais, que carregava uma espada em chamas e apontava-a para baixo, como a condenar para sempre tais pecadores aos horrores do inferno. O quadro tinha o estilo bastante parecido ao do Apocalipse de Dürer, quanto à técnica, mas era muito posterior às gravuras do artista alemão. O que mais me assustava no quadro, no entanto, não era o horror da cena que se passava em primeiro plano, mas o fato de que a face do anjo era idêntica à face do dentista, em todos os pormenores, e, horror meu!, o anjo apresentava o mesmo sorriso do dentista balofo do quadro anterior!

“Vejo que gostaste dos quadros, mister Batista”, disse o doutor, e, em sua fala, percebi que ele se divertia com minha expressão atemorizada, apresentando um sorriso que, apenas ao chegar em casa cerca de uma hora depois, devido ao torpor que me causaram os quadros, percebi ser idêntico ao do dentista balofo e do anjo apocalíptico.

Peço desculpas ao leitor por ter adiado, com o relato dessa minha visita ao doutor Victor Frank, a narração da minha fatídica visita ao dentista do dia 13 de agosto, sexta-feira de um ano que prefiro esquecer. O ano não é importante, mas o dia da semana, o dia do mês e o mês em que a visita ocorreram têm algo de cabalístico e não podem ser omitidos, para que ninguém duvide da realidade das forças infernais com as quais travei intensa batalha que teve como campo a sala do consultório do doutor.

Apesar do sorriso e dos quadros atemorizantes, não pude deixar de me consultar novamente com o doutor Victor Frank, e tenho meus motivos para tanto: primeiro, ele é o único dentista de minha pequena cidade do interior do estado de São Paulo, e levaria pelo menos duas horas de ônibus e estrada ruim para chegar à cidade mais próxima; segundo, meus dentes são para mim por demais preciosos para simplesmente parar de me orientar com um especialista – e, apesar de tudo, Victor Frank é um especialista – e deixá-los apenas sob meus cuidados que, apesar de zelosos, são insuficientes; e terceiro: havia algo que me impelia a descobrir a verdade sobre o dentista, algo que me dizia que o dentista apresentava para o mundo apenas uma parcela daquilo que era sua real essência.

Fui, então, a seu consultório quando precisei fazer uma limpeza nos dentes. Sua secretária atendeu-me como das outras vezes – nunca notei nela nada de estranho, mas era uma mulher jovem e atraente que, diziam, estava para se casar com o doutor Victor Frank – e encaminhou-me à sala de espera, na qual deveria esperar o dentista liberar seu paciente atual e chamar-me.

A sala de espera estava estranhamente diferente naquele dia. Mais escura, com o ar abafado, as cortinas fechadas, as luzes apagadas – normalmente as luzes só eram apagadas quando o sol iluminava o ambiente, o que não era o caso no dia: estava chovendo e as cortinas fechadas não deixavam passar a fraca claridade do dia. Apesar do escuro, peguei uma revista para ler, entre as muitas que descansavam na pequena mesa de vidro do centro da sala. Era uma revista semanal, ruim, mas o que me chamou a atenção não foi a revista que peguei, e sim uma que mostrou-se quando puxei a primeira: era uma revista cujo título, em alemão, não me lembro, mas que apresentava como matéria de capa uma reportagem chamada Hexenküche*. A ilustração da capa mostrava uma velha bruxa dando uma poção para um velho homem decrépito, de longa barba branca e aspecto sábio, e que era ajudado por um jovem moço em trajes de estudante, mas que tinha pés de bode e sorriso, para meu espanto, idêntico ao do dentista balofo, do anjo apocalíptico e de Victor Frank. Peguei a revista, mas infelizmente, assim que ia começar a folheá-la, o doutor Victor Frank chamou-me para sua sala e tive de deixar a revista onde estava.

A sala de dentista do doutor também estava diferente. Igualmente escura como a sala de espera, mas nem tanto. Os instrumentos, todos novos, estavam pendurados na parede em que ficavam os quadros, que agora pendiam da parede direita do consultório. A cadeira também era outra, e, quando me deitei, percebi que era muito menos confortável que a cadeira anterior. De lá, pude ver melhor os novos instrumentos do doutor, e, para meu horror, eram exatamente os mesmos instrumentos retratados no quadro do dentista balofo. Victor Frank, após deitar-me, cumprimentou-me com seu costumeiro “Como vão as coisas para você, mister?” e abriu um dos armários, que também foram trocados: eram todos de madeira antiga, rústicos, e que rangiam fortemente ao serem manipulados. Dentro dos ármarios, vi diversos livros, nos quais, na maioria deles, um símbolo me chamou a atenção: duas cobras enlaçavam-se a si mesmas e a algo que não pude distingüir exatamente o que era. Acima dos livros percebi alguns crânios e mandíbulas, todos impecavelmente bem-cuidados e limpos, e também muitos dentes ou dentaduras, todos perfeitos. Em todos, havia em alguma parte um número gravado, que não pude ver pela distância, mas tenho certeza de que se tratava de números cabalísticos, utilizados em algum rito antigo para a conjuração de demônios como os do quadro do Apocalipse e para o sacríficio humano – provavelmente aqueles crânios e dentes pertenceram a pessoas sacrificadas a algum demônio ancestral para a conquista de mais poder.

O doutor Victor Frank fechou o armário e foi em direção a seus instrumentos. Foi só então que percebi que do teto da sala pendiam correntes como as de frigoríficos, e todas elas estavam cobertas por manchas de sangue. As paredes, lisas, eram agora paredes de alvenaria reforçada, e em diversos pontos era possível ver fungos e bolor proliferarem, bem como ratos e baratas correndo pelos cantos. Parecia uma sala de tortura medieval, e a cadeira nova do dentista não era mais que uam cadeira de tortura, na qual fui preso sem me dar conta. Já tendo pego seu instrumento, que fazia um barulho infernal, muito pior que o de uma broca, por ser mais lento e alto, o doutor veio em minha direção, com sua roupa e avental brancos, manchados de sangue. Debruçou seu corpo subitamente rotundo sobre a cadeira na qual me encontrava e, com seu sarcástico sorriso nos lábios, algo que de início não entendi devido ao pavor que o momento me proporcionava, mas que logo depois ficara-me claro: “Avisa-me se começa doer!”.

Consegui facilmente livrar-me das amarras, talvez devido à adrenalina, e fugir do consultório do dentista demoníaco, indo direto para a pequena delegacia de polícia denunciar o maldito por satanismo, assassinato e outras torpezas que prefiro não relatar agora, uma vez que meu leitor já sabe quais são. Infelizmente, já seduzidos pelo diabo e pelo sotaque inglês do dentista, os policiais trouxeram-me para este hospício no qual me encontro agora e escrevo minha história, com a qual espero prevenir mais alguém que, como eu, não se deixou seduzir pela lábia e sotaque inglês do demônio que se disfarça de dentista.

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Creio que me cabe explicar, em parte, ao leitor o relato acima transcrito de meu paciente. F. Batista, autor das linhas acima, há três anos trata-se comigo na Clínica Psiquiátrica de C. (omito o nome da cidade e da clínica para evitar futuras complicações e zombarias para com meu paciente), e apresenta constante melhora em seu quadro clínico. Tal relato foi escrito após seis meses de internação, e achei por bem levá-lo a público nesse momento, no qual o paciente já goza de uma parte de suas faculdades mentais.

Cabe esclarecer também que o nome verdadeiro do dentista mencionado não é Victor Frank – devaneio de meu paciente e que deriva do nome do doutor Victor Frankenstein. Emito o nome do dentista, que é de fato inglês, e que realmente se casou com sua secretária e hoje tem um lindo filho, o qual, por piedade e por simpatia para com meu paciente, foi batizado com o primeiro nome deste.

Dr. J. A. Ferreira.


* Cozinha da bruxa: nome de uma das cenas do Fausto de Goethe.
Editado pela última vez por Doktor Faustus em 02 Jun 2008, 18:53, em um total de 1 vez.
"Não, não são plantas, apenas fingem sê-lo. Mas nem por isso vocês devem menosprezá-las. Pois é precisamente a circunstância de elas pretenderem sê-lo e darem o melhor de si nesse sentido o que as torna merecedoras de todo o nosso apreço."
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Mensagempor Elara em 15 Mai 2008, 13:57

O relato soa Machadiano.

O segundo quadro me lembrou as obras do artista plástico Flávio Tavares.

Ademais, seria o cara louco ou não? Um delicioso texto que deixa um ar de dúvida no leitor.

Terá continuação?

Chero!
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Mensagempor Wally em 15 Mai 2008, 21:38

Muito divertido.. principalmente se vc for uma dessas pessoas (com eu) que odeiam dentista e akele barulhinho irritante... ainda bem que já arranquei os meus 4 dentes do ciso... apavorante. :aham:

meus parabés.. e espero continuação...
"Um montaigne em cima da tora,
Um montaigne em cima da tora,
Se um montaigne cair no mar,
Quantos montaignes ficarão na tora?"

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É por essas e outras q eu adoro 7th Sea!
Nada como a sabedoria que vem do mar!<== eu juro que a imagem vale a pena..
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Mensagempor Ermel em 16 Mai 2008, 17:23

Achei deveras maçante. Paragrafos muito grandes e extensos. É uma historia interessante, mas que podia ser mais elaborada e trabalhada ao ser postada, parece que, simplesmente, pegou o relato e o postou seco.

E de todas as loucuras que já presenciei, essa foi a mais distinta e até, divertida.

Enfim, não gostei. Talvez polir mais trouxesse um ar mais dinamico ao texto. Mas gosto é gosto. Até a proxima.
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Mensagempor Doktor Faustus em 27 Mai 2008, 15:50

Parágrafos longos são ruins?

Aliás, se eu polisse mais, provavelmente os parágrafos teriam o dobro da extensão. Acredite, os deste conto são curtos. :aham:
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Mensagempor Lady Draconnasti em 27 Mai 2008, 20:03

Bem... você poderia dividir os parágrafos em outros menores ^^'
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Mensagempor Doktor Faustus em 02 Jun 2008, 18:49

Pode ser... :b
Mas eu só divido os parágrafos quando há alguma mudança significativa no andamento. Nesse conto não aconteceu. Num outro eu já dividi uns quatro parágrafos.
Além disso, uma correção ao meu último comentário, para não ser injusto com o Ermel: entendi errado quando ele disse "polir". Tirar as impurezas dificilmente deixaria o parágrafo maior.
De qualquer modo, valeu a todos. O próximo conto, se não me engano, tem parágrafos menores.
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