O Mistério de Saint Maria - Parte X

Mostre seus textos, troque idéias e opiniões sobre contos.

Moderadores: Léderon, Moderadores

O Mistério de Saint Maria - Parte X

Mensagempor Elara em 23 Abr 2008, 14:29

Olá pessoal,

Estou começando a repostar esse coletivo que vem sendo desenvolvido desde a primeira Spell (eu acho :roll: ). Ele vem sendo desenvolvido por mim (Elara, Lobo_Branco, Beholder_Vesgo e El1k4r) e atualmente conta com 10 capítulos. A partir de então, teremos a participação de mais um contista, o Gehenna.

As repostagens serão feitas no ritmo de um capítulo a cada 3 dias, e quando retomado o conto, a cada 15 dias um novo capítulo.

Uma breve sinopse: O conto se passa na França napoleônica, envolvendo mistérios com criaturas meio-lobo. Esperamos que gostem!

Sinopses dos capítulos já postados (em junho de 2008)

Parte I
SPOILER: EXIBIR
O capítulo inicia com um breve relato de um massacre promovido a um povoado cigano, no qual o capitão Rochambeau fora amaldiçoado pela última remanescente daquele povo. A senhora amaldiçoa seu filho, que haveria de nascer mais adiante. Neste capítulo, também é possível conferir um panorama histórico da França napoleônica e a introdução à história da vila de Saint Maria de Doleurs, onde misteriosamente crianças estavam sumindo sem explicação. Um investigador e um capitão, além de um contingente militar, são para lá enviados.


Parte II
SPOILER: EXIBIR
A comitiva do capitão Piccard e do investigador Armand d’Athos chega à pequena vila de Saint Maria e é conduzida ao prefeito da cidade. Boatos na cidade dão conta que o alfaiate está apaixonado por uma cigana, povo que sempre amaldiçoou.


Parte III
SPOILER: EXIBIR
Em algum lugar da Espanha, um enviado inglês integrante da milícia contra a sublevação napoleônica é enviado para a vila de Saint Maria de Douleurs, para incitar os anti-imperialistas a uma revolta. Infiltrado na cidade, Pedro Alencar, o inglês, obtém diversas informações importantes para um subversivo, além de saber que a comitiva de investigadores de Bonaparte estava a caminho.


Parte IV
SPOILER: EXIBIR
A cigana pela qual Loup-marrie, o alfaiate, se apaixonou, deixa a vila. Ele tem um pequeno flashback de um encontro com uma cigana, em sua infância. Voltando ao centro urbano, Loup-marrie avista a comitiva que chega com os soldados napoleônicos e casualmente troca algumas palavras com Pedro Alencar, o militante inglês.


Parte V
SPOILER: EXIBIR
Neste capítulo, é detalhada a reunião de Piccard e d’Athos, os investigadores enviados por Napoleão, com o prefeito de Saint Maria de Douleurs. Armand desconfia de um caso de adultério na cidade e Piccard, ao sair, ensaia um flerte com a filha do prefeito.
Armand entra no roseiral da propriedade do prefeito, a fim de investigar melhor os fatos e retorna à taverna horas depois, com algumas conclusões. Pede a Piccard para visitar o bosque que circunda o roseiral e despede-se, indo entrevistar o banqueiro da cidade, cuja esposa também desaparecera.
No cemitério, uma pessoa invoca determinada criatura. Loup-marrie sofre de um estranho sonambulismo e acorda no meio do bosque que circunda a cidade, sob algumas penas e com as roupas sujas de sangue.


Parte VI
SPOILER: EXIBIR
LeBlanc, secretário do prefeito, visita a taverna a fim de falar com o capitão Piccard sobre as investigações e o encontra saindo a caminho da estrebaria, para checar a informação de que um dos integrantes da comitiva fora assassinado.
Loup-Marrie tenta compreender o que o acontecera. Seus pensamentos o conduzem à lembrança de um de seus últimos encontros com sua amada cigana. Na taverna, Armand, ao acordar, relembra a entrevista com o banqueiro e, descendo as escadas, descobre sobre a morte do oficial. A cigana encontra-se viajando a sudoeste da França.


Parte VII
SPOILER: EXIBIR
A narração da morte do oficial é detalhada. Piccard adianta-se para investigar o entorno da estrebaria e é informado do corpo feminino encontrado nos arredores do bosque.


Parte VIII
SPOILER: EXIBIR
Neste capítulo há um flashback do aprendizado de Armand Sèllegue d’Athos, o investigador. Nas investigações em Saint Maria, Armand e Piccard visitam o corpo da mulher morta e constatam que os assassinatos têm padrões diferentes. Loup-Marrie volta para casa, mas continua sendo acometido de pesadelos. À noite, Armand e Piccard fazem um pronunciamento à cidade.


Parte IX
SPOILER: EXIBIR
O pai de Loup-Marrie vai até o quarto do filho e o encontra melhor da febre. Estranhamente, há uma carta de baralho na estante do alfaiate. Armand e Piccard conversam, no quarto da taverna, sobre as mortes ocorridas em Saint Maria. O criado do dono da estrebaria teme pela possível descoberta de que seu tutor, o dono do local, é um subversivo. No cemitério, o estranho agradece à criatura pelos serviços realizados.


Parte X
SPOILER: EXIBIR
Piccard vai até a estrebaria, interrogando Jonas, o dono do local e seu criado, Francis além de apreender papéis do primeiro. Em seguida, encontra-se casualmente com a filha do prefeito, que o entrega um pingente em forma de rosa, “para dar sorte”.
Loup-Marrie acorda e vai até o espelho, onde vê a os olhos da cigana no canto da imagem. Joannah observa a imagem de Loup-Marrie no regato. Ela é interrompida por soldados espanhóis que procuram por seu pai. Destratando-os, é violentada e jogada à beira do córrego.



O mistério de Saint Maria – Parte I
Lobo Branco


França, 1787

Com os temperamentos à flor da pele, o povo francês das classes mais humildes enfrentava a miséria e a fome com ares de revolta. O governo se encontrava praticamente falido, tendo como motivos os astronômicos gastos de sua alteza Luis XVI, sua gigantesca corte que habitava os luxuosos corredores do Palácio de Versalhes e os custos das guerras promovidas pela dinastia dos Bourbon.

O péssimo estado econômico francês somado ao caótico estado climático - o país era assolado por secas e enchentes destruindo a agricultura - e a um acordo comercial com a Inglaterra totalmente desvantajoso para a França, minguava a vida dos pobres. A
fome incrustara no espírito dos francos os mais profundos sentimentos de insatisfação, acarretando assim os mais variados e freqüentes tipos de ataques e revoltas civis pelos campos e cidades.

Freqüentemente milícias monárquicas eram incumbidas de por fim a essas revoltas, fazendo-o geralmente de forma rápida e violenta, acabando dessa forma com possíveis lideres de futuros levantes, amedrontando o povo a fazer novas revoltas.

Em um movimento de contenção do exército a uma dessas revoltas, um pequeno contingente de soldados monárquicos, comandados pelo franco-loreno Hermann Rochambeau, atacou um vilarejo cigano acusado de iniciar uma revolta, além de outros pequenos furtos. Movidos pela bebida e pela ganância de serem reconhecidos como heróis frente ao nobre local, eles providenciaram um massacre, não poupando crianças, mulheres ou velhos. Embriagado com o êxtase da matança, pensando nas condecorações e recompensas, Rochambeau foi o algoz da última remanescente do povoado cigano. Ela morreu abraçada ao corpo do filho afogado com o próprio sangue e antes de ser trespassada com o sabre do comandante franco-loreno, o amaldiçoou:

— És uma cria dos infernos! Olho para ti e vejo um lobo! És um enviado das sombras, um caçador noturno, que regurgita-se em matar velhos e crianças, por isso eu amaldiçôo-te! Condeno a ti e teu filho, pois teu varão vindouro não será teu, será filho de um lobo; nascerá como assassino e carregará apenas sangue e desgraça, terá corpo de homem e alma de lobo!

A vitória foi festejada. Os poucos letrados e ditos seguidores dos Ilustradores riram com as maldições. Porém, a grande maioria analfabeta e ignorante do contingente, apesar de enaltecidos com a vitória, rezava e implorava por proteção aos seus santos contra a língua demoníaca dos ciganos. O pobre Hermann Rochambeau sonhou com sua casa, ouvindo ao longe o uivo solitário de um lobo e viu sua mulher urrar como uma selvagem à espera dele. Este sonho o atormentou por toda a noite e logo ao amanhecer pediu dispensa ao nobre local. Deixou o 1º imediato ao comando do regimento e partiu.

Na primeira noite de viagem ele sonhou mais uma vez com o lobo uivando e sua mulher respondendo como se possuída; desta vez o uivo estava mais próximo. Hermann pouco se alimentava agora; tomado por preocupações, rezava e pedia guarnição a sua mulher contra o mal. Cavalgava como um louco em direção à região da Lorena.
Na segunda noite ele sonhou mais uma vez com o lobo, mais próximo que na noite anterior. Ele já podia ver os olhos brilhantes da fera na noite sem estrelas. Tomado pelo desespero e medo, não perdoou o cavalo. Cavalgou o dia inteiro e parte da noite sem parar. Cravou tanto as esporas no pobre animal que o fez verter sangue pelos quadris e babar como um doente. Com a lua já alta adormeceu, apenas para ver o lobo à porta de casa, arranhando-a, latindo e uivando para entrar. O pesadelo não saía de sua mente; a imagem da besta negra, às portas de sua casa, olhos maliciosos e vermelhos, babando, pronto para devorar sua mulher o assombrava como nenhuma batalha antes tinha feito. O último percurso para casa fez a pé. Seu cavalo morrera na noite anterior de exaustão, e ele demorou um dia inteiro o que deveria fazer em algumas horas.

Chegou nas extremidades de sua casa no fim do dia. Como era verão, o sol ainda estava alto e pôde encontrar sua mulher no lado de fora da casa, buscando água no poço, decerto para preparar algo para a senhora sua mãe. Rochambeau fora tomado de um sentimento nunca antes presenciado: a felicidade de encontrar a mulher ali ilesa, sem mencionar nada sobre lobo algum o enchera de alívios e o fez julgar-se um asno por ter levado tão a sério tão fútil sonho. Mesmo assim algo dentro dele pulsava como um animal e ele tomou sua mulher ali mesmo, à beira do poço, com o céu já avermelhado e o sol se escondendo atrás dos montes Pirineus. O momento foi intenso, Hermann gozou como um animal. Naquele momento solene, abraçado à sua mulher, arfando, ele viu o que gelou suas entranhas: na beira do bosque, o encarando, parado sentado sobre as patas traseiras, havia um lobo, um enorme lobo negro, de orelhas em pé e olhos atentos. A imagem dos seus pesadelos fora forte demais para nervos já abalados. Hermann tentou gritar e puxar sua pistola, mas acabou por desfalecer.

Meses se passaram sem nem ao menos se ter noticias de nenhum lobo na região. Cada dia que se passava a barriga da senhora Rochambeau crescia mais e mais. Hermann não passava uma só noite sem sair à caça de possíveis alcatéias, mas eles haviam sumido; desde a primavera passada não se via nenhum lupino nas ricas regiões da Lorena.

Nove meses se passaram e o grande dia chegou. O parto se mostrou complicado e a mãe perdeu sua vida horas após expelir de seu ventre um pequeno varão. A notícia da morte de sua esposa fez com que as palavras da cigana renascessem na mente do soldado. Ele olhou para seu filho e quase o matou, sendo impedido por um padre amigo seu. Depois de tudo explicado, o padre convenceu-o de que a criança era inocente, e que caso algum mal houvesse nela seria expurgado com o batismo. O padre ainda tentou levar a criança, mas foi impedido pelo já calmo pai.

Dias se passaram e ambos se encontraram no cemitério, rezando para a alma da finada. Enrolado num pedaço de lã estava o bebê. O padre se dirigiu com passos curtos e voz rouca. Falou:
— Então meu filho, sanou de tua mente essa idéia ridícula de matar teu filho?
— Sim padre, mostrou-me a razão, perderia aquilo que ainda me mantinha unido a Marie, o nosso fruto. – sussurrou envergonhado Hermann.
— E o nome, meu filho, já escolheras?
— Sim. Chamar-se-á Loup-Marrie Rochambeau Second.

França, cidade de Saint Maria de Douleurs, 12 de Nivoso (1 de Janeiro) do ano 1810,

Amanhece na pequena cidade francesa, próxima a Espanha. Logo as ruas são tomadas por plebeus e burgueses, todos tentando ganhar a vida: alguns enaltecendo o Imperador, outros crucificando Napoleão; este que ampliou o círculo de controle do seu império, que venceu todas as Coligações da 2ª a 5ª. Tinha sob seu poder praticamente toda a Europa e contava com o mais bem equipado e treinado exército jamais visto.

A vida na cidade de Saint Maria era calma, podendo se dizer até reconfortante, desde a Revolução, a queimada do palacete do nobre Carlos Pierre d’Lambert, a estatização das terras do mesmo e da igreja. A redistribuição das mesmas entre a burguesia e o povo local assegurava certa liberdade para a falsa independência da cidade. Aproveitando o bloqueio à Inglaterra os burgueses locais, juntamente com o recente Banco da França, mais uma das dádivas de Bonaparte, conseguiram montar um pequeno e bem equipado parque industrial. Seguindo os modelos de cercamento da Inglaterra, esses burgueses franceses estavam tentando ganhar o mercado de tecidos deixado em branco pela ausência oficial dos produtos ingleses no mercado Europeu. Isso somando com a pequena, mas ainda supostamente rica mina de ferro e a pequena, porém frutífera, indústria de manufaturados da região, fazia de Saint Maria de Douleurs um lugar próspero, além de estrategicamente posicionado, numa região amena dos Pirineus, próxima ao mar. Assim, poderia servir de base contra a Espanha e suas constantes revoltas e a eterna inimiga Inglaterra.

Saint Maria seria uma cidade pacata, se os últimos meses não trouxessem acontecimentos tão bizarros. Pessoas estavam desaparecendo da cidade nos últimos tempos. A cada noite desaparecia uma jovem garota. Começou com as filhas dos pobres que viviam mais afastadas da cidade. Depois os “seqüestros” começaram a acontecer com os cidadãos urbanos, mas as autoridades não prestavam atenção nesses fatos, afinal eram apenas crianças da plebe, pobres coitados que não fariam falta a ninguém. Depois de 15 garotas sumidas, os seqüestros pararam, a paz voltou até o início do inverno, quando começaram a sumir as ovelhas dos pastos. Isso acarretava despesas para os pequenos burgueses e caçadores foram contratados. Lobos foram abatidos, e tudo estava para voltar à sua normalidade, quando a filha de Augustos Pierre sumiu. Ele era o dono de uma das fazendas de ovelhas da região.

O homem então promoveu uma caçada aos lobos, mas apesar de abaterem alguns, não se encontraram vestígios da criança. O burguês exigiu então que as autoridades fizessem algo, e durante um mês as buscas pela jovem aconteceram. Ao fim do mês, encontraram os restos de uma criança; apenas os ossos e pequenos fragmentos dos vestidos da jovem filha do sr Pierre. Junto à prefeitura, Augustos uniu-se com alguns dos pais das primeiras crianças e exigiu uma providência, ameaçou reclamar junto ao governo da província, até ameaçou as juntas burguesas de Sant Maria, alegando que sabia de coisas que deixariam o augusto imperador com muita raiva da pequena vila.

O prefeito Miguel D’Anjou prometeu tomar as providências cabíveis. Escreveu ao governador provinciano pedindo ajuda, colocou a cabeça do seqüestrador “a prêmio” e abriu uma temporada de caça aos lobos da região, comprando a carcaça deles a até 10 francos. Isso acalmou Pierre e deixou o povo esperançoso quanto a resolução dos incidentes. Porém a calma durou pouco, e o alvo dessa vez foi o filho do prefeito. Ele não foi seqüestrado, e sim atacado à noite. Seu corpo foi mutilado e seus gritos ecoaram por toda a cidade. Um novo alvoroço se estendia pela região, começaram a alegar que aquilo era coisa de outro mundo, uma vingança contra a tirania de Napoleão, que a única forma de se livrar daquela maldição era apoiando o império inglês e as revoltas espanholas por liberdade.

A cidade se encontrava dividida, muitos queriam sair pelos bosques com tochas e ciscadores caçando o culpado e o queimando, como era feito antigamente, outros pressionavam o prefeito para buscar ajuda do exército; alguns se limitavam a rezar e pedir por guarnição, outros clamavam por uma revolta e poucos se mostravam indiferentes.

Uma semana atrás o prefeito revelou ter mandado uma carta diretamente a um dos generais, clamando por ajuda, revelando o quão drástica estava à situação. Após esse pronunciamento o prefeito não foi mais visto no gabinete, e muitos comentavam que ele parecia doente. Na manhã do dia 12, em meio à neblina e à fina neve que caia, um jovem caminhava pelas ruas, com um sino a badalar, gritando a todos pulmões:

-ATENÇÃO! ATENÇÃO! POVO DE SAINT MARIE, ACAUTELAI-VOS, O DEMÔNIO DOS PIRINEUS ATACA MAIS UMA VEZ! DESTA VEZ, SUAS VÍTIMAS SÃO A BELA DAMA MADELLENA D’ANJOU, SENHORA DE NOSSO PREFEITO, E A SENHORA CASTELLA, MULHER DO REPRESENTANTE DO BANCO NA NOSSA CIDADE! É NESCESSÁRIA CAUTELA NESSA HORA, E QUE O SENHOR MANDE ALGUMA COUSA PARA NOS PROTEGER!

França, cidade de Pau, 10 de Nivoso do ano 1810

Na antecâmara do palácio-sede do exército provinciano dos Baixos Pirineus, entre soldados e poucos senhores, aguardava um homem feito, por volta de seus 40 anos, bem vestido e apessoado. Estava parado frente à janela que dava para o pátio central do palácio; de lá podia se avistar formações em bloco de soldados, outros em descanso. Aquelas imagens traziam velhas lembranças ao senhor, lembranças estas que o faziam sorrir.

Logo seu nome se fez ouvir despertando-o de seus devaneios. Com passos curtos e serenos o homem atravessou o recinto; alguns soldados de longa data o olhavam admirado. Na sala principal do palácio, esperava-o atrás de uma mesa fumando; seus olhos azuis fitavam a figura do homem que adentrava sua sala, e ele logo se levantou, indo até o mesmo para cumprimentá-lo.

— Olá meu bom d’Athos, como foi tua viagem? Boa, espero!– disse o general enquanto abraçava o companheiro.
— Sim, desde muito tempo não viajo de Paris até os Pirineus em tão pouco tempo, meu bom general Uiatté, mas deixemos de falsas formalidades, pois com a breca, somos amigos, exijo ser chamado de Armand! – respondeu sorrindo.
— Claro, claro. – disse e então puxou uma cadeira para Armand, dando a volta para a sua própria. Nesse intervalo de tempo Armand passou os olhos pelo escritório, um cômodo muito bem decorado, um enorme mapa da França na parede esquerda, algumas porcelanas espalhadas pela sala, um belo lustre de cristal, cortinas de veludo vermelhas, um tapete persa tomando todo o chão, uma ampla varanda dando para o pátio. Em cima da mesa de madeira de lei, estavam mapas, cartas e documentos dos mais variados tipos.

— E então Armand, finalmente voltou para nosso glorioso país! Vejo que a vida nos trópicos te caiu bem, estás mais saudável. – sorriu o capitão oferecendo cigarretes ao companheiro.

— Assim como a alta patente fez bem a você. Quem diria que o audacioso Bonaparte chegaria tão longe Gerard... Além de você, é claro. – sorriu Armand, pegando um cigarrete e esperando o mesmo ser aceso.

— Sempre soube reconhecer talentos quando os vejo, isso me proporciona bons frutos, amigo. Hoje sou um dos poucos em quem vossa Alteza confia. Mas apesar de todo os privilégios que um alto cargo acarreta, ele me dá muitas dores de cabeça.

— Desconfio. Teriam tuas enxaquecas alguma cousa haver com o fato do desastroso Decreto de Berlim?

— Também meu amigo, infelizmente, pois as pressões tendem a aumentar cada vez mais. O imperador exige resultados, mas fica cada vez mais difícil impedir os produtos ingleses de adentrarem no continente. Por maior que seja o Império, nossas indústrias ainda não estão equiparadas às dos ingleses, e vez ou outra eu tenho que mandar soldados para a Espanha cuidar das rebeliões financiadas pelos ingleses. – em meio a um trago suspira Gerard.

— Jose não consegue fazê-lo por si?

— Não, sempre está a carecer de bons soldados e bons generais. Estou a enlouquecer com essa situação, que está a piorar. Veja tu, que uma das mais prósperas vilas da região está próxima de se rebelar, e eu como obrigação, deverei marchar sobre ela e destruir um dos poucos parques industriais franceses que se equiparam com os ingleses. Serei crucificado com essa resolução, já vejo minha cabeça numa prateleira, com burgueses gordos a rir.

Armand observava o discurso, sabia que ali era o ponto que culminaria nas explicações do porque fora convocado

— E há algo que eu possa fazer por ti, velho amigo?

— Sim, como há Armand. Preciso de tua ajuda desesperadamente. Pessoas têm sumido da cidade de Saint Maria... Os ignorantes alegam ser coisa do demônio, antiimperiais se aproveitam da situação e jogam a culpa no Império, está tudo à beira de uma revolta, meu amigo. Por isso clamei por ti. Quem melhor que Armand de Sellègue d’Athos, um espião nato, ótimo soldado e caçador de traidores na época do Terror? Apenas em ti poso confiar amigo; com toda a certeza acharás o responsável por esses crimes e o levará a forca.

Armand sorria, velhos títulos lhe lembravam a juventude, a época da gloriosa Revolução, seus trabalhos como investigador, um verdadeiro caçador de traidores e nobres. Bons tempos aqueles.

— Fa-lo-ei meu amigo, mas preciso saber mais a respeito.

Aquelas palavras fizeram o general sorrir, estava aliviado.

— Saberás tudo que necessitais, tenho aqui cartas do prefeito da cidade, além de um relatório de um soldado que tem posto aqui. Peço que partas o mais rápido possível, e terás um pequeno contingente à sua disposição. Mando hoje para lá 50 homens bem treinados para conter uma possível revolta, o capitão deles é um jovem promissor de mente aguçada; poderá te ajudar, meu bom homem. Ó que noticia ótima Armand, salvas meu pescoço da forca! – o general sorria, parecia aliviado agora, abrira a gaveta e puxara alguns documentos – Tome cá amigo, aí está tudo relatado até agora, além de uma carta de um valor de 100 francos. Arranjes tudo que achares necessário, mas se faz de imediato que parta com a comitiva, ainda esta noite.

— Assim farei amigo. – Armand se levantava, cumprimentava uma última vez o amigo e lhe dava as costas. Ao sair do escritório, passava por um jovem, com indumentária de capitão; parecia nervoso e olhava acanhadamente a sala. Armand sorriu, e imaginou que ele um dia se portou dessa forma, mas hoje não mais, era um homem de 42 anos, não um frangote, e estava mais uma vez servindo uma causa maior.
This is NOT Sparta!
Avatar do usuário
Elara
 
Mensagens: 668
Registrado em: 05 Set 2007, 12:04
Localização: João Pessoa

O Mistério de Saint Maria - Parte X

Mensagempor Lobo_Branco em 25 Abr 2008, 02:17

Ôoobaaa!!!!

É bom ver nosso trabalho de volta, realmente muito bom! Espero que velhos e novos leitores continuem nos apreciando com a leitura, e obrigado pela iniciativa Lala, se dependesse de mim isso ia demoooraaaa....rs :ops:

bjão!
"— Nós também éramos crianças, e se eles nos deixaram órfãos, os deixamos sem filhos."(

Óglaigh na hÉireann)


O Último Duelo - conto Capa&Espada
Avatar do usuário
Lobo_Branco
 
Mensagens: 289
Registrado em: 26 Ago 2007, 13:22
Localização: Aquele Bosque com ares de Floresta, na periferia de Contonópolis

O Mistério de Saint Maria - Parte X

Mensagempor laharra em 26 Abr 2008, 13:50

Boa idéia repostar esse conto. Na antiga Spell eu não o lia pois já estava bem avançado. Agora posso pegar do começo. Esse primeiro capítulo foi bem interessante, apesar de as duas primeiras partes serem bem maçantes. Eu entendo a necessidade de se explicar o momento histórico no qual tudo se passa, mas alguns parágrafos me lembraram livros de história do colégio :cool: Prefiro quando se mescla esses elementos em uma narrativa focada em cima de um personagem, mas é questão de gosto, claro.

O primeiro momento com o protagonista foi bem rápido, mas já o imaginei e me peguei torcendo para que a história corra logo e eu saiba seus próximos passos.

Estou acompanhando, galera. Abraços.
Tentando encontrar inspiração para terminar o conto abaixo:
O Som do Silêncio: Parte IV - A decisão
Reger está às vésperas de uma batalha onde decidirá seu futuro. Durante o que podem ser seus últimos momentos com a Espada e com Alyse, ele se pega pensando sobre a validade de suas aspirações. Acompanhe o conto no link a seguir:
http://www.spellrpg.com.br/forum/viewtopic.php?f=24&t=1067
Avatar do usuário
laharra
 
Mensagens: 123
Registrado em: 21 Out 2007, 18:27

O Mistério de Saint Maria - Parte X

Mensagempor Lady Draconnasti em 26 Abr 2008, 18:34

Ok, acompanhando aqui também.


Só espero não encontrar capítulos muito longos.
Imagem

Status: Cursed
Alinhamento do mês: Caótica e Neutra
Avatar do usuário
Lady Draconnasti
 
Mensagens: 3753
Registrado em: 25 Ago 2007, 10:41
Localização: Hellcife, 10º Círculo do Inferno

O Mistério de Saint Maria - Parte X

Mensagempor Gehenna em 28 Abr 2008, 14:03

Yeah! Estamos aí, aceitando o desafio. Espero não fazer nenhuma bobagem muito grande. XD
Avatar do usuário
Gehenna
 
Mensagens: 828
Registrado em: 25 Ago 2007, 01:52
Localização: Torre Sombria, no bairro de Noite Eterna, em Contonópolis

O Mistério de Saint Maria - Parte X

Mensagempor Elara em 28 Abr 2008, 14:20

Lobooooo,

Tomei a iniciativa pra vc não precisar largar a faculdade, se é que vc me entende. :bwaha:

Laharra,

Que bom tê-lo acompanhando!^^ Vem aí mais um capítulo.

Nasti,

Huheuehuehuehueheue... Os maiores capítulos são os do Lobo XD, que em breve competirão com os do Gehenna. XD XD

Gehenna,

Relaxa cara, a gente sabe que vc vai fazer bonito. =)

=============================================================================================

O Mistério de Saint Maria – Parte II
Beholder Vesgo


Armand checou tudo mais uma vez, verificou todas as coisas e pediu ao rapaz que estava ao lado da porta para levar tudo. Sua pouca bagagem fora posta sobre uma das várias mulas de carga que a comitiva levava. Comparou mentalmente sua vida a dos ciganos, uma vez que também nunca ficava por mais de dois meses em um mesmo chão.

Seus devaneios foram interrompidos pela chegada do capitão Eleric Piccard, perguntando se estava tudo certo.

- Está tudo certo sim, capitão. Partiremos quando?

- Em uma hora, espero. Se a neve não nos atrapalhar, chegaremos em três dias a vila. Não te incomoda o fato de lhe mandarem com tanta urgência?

- Não, capitão, de modo algum. Digamos que até era algo esperado...

Vários homens estavam a arrumar os últimos preparativos e verificando as montarias. Um grande número de belos animais estava sendo carregado e selado. O capitão olhava tudo e sorria, satisfeito. O jovem parecia ansioso, mas mostrava-se competente.

Armand via a cena como se estivesse longe. Tinha ainda uma hora antes da partida, e a usaria bem. O relatório que Gerard o dera lhe contaria acerca dos acontecimentos da vila de Saint Maria de Douleurs.

Despediu-se do capitão e voltou ao quarto que ocupara pelo período de apenas um dia. O mesmo rapaz que carregara suas malas estava encarregado agora de o avisar do momento da partida. Sentou em uma pequena escrivaninha e passou a ler o relatório.

Algum ponto próximo a Saint Maria de Douleurs, 13 de Nivoso de 1810

O sol começava a mostrar sinais de cansaço e estava querendo descer mais cedo no oeste. Os cavalos andavam lentamente e os homens conversavam sem muita preocupação. Talvez todos, com exceção de Armand e Eleric.

Eleric falava com seus homens de tempos em tempos, fazendo perguntas e dando ordens. O nervosismo que antes morara em seu olhar agora dera lugar a um semblante preocupado. Não parecia o mesmo rapaz que havia saído da cidade de Pau há três dias. O jovem oficial estava inquieto e apreensivo.

Geralmente o investigador d’Athos gostava de cavalgadas e em especial desses momentos em que todos conversam entre si e ele apenas exercita sua mente. Mas não dessa vez. A demora o incomodava, e não conseguia se sentir à vontade. Achava estranho que as poucas milhas até a cidade ainda não haviam sido ganhas. E não era só isso que achava estranho.

- Os animais parecem incomodados. É como se estivessem assustados.

- Sim, senhor d’Athos, também notei. Mas não existe explicação pra isso. Estamos viajando lentamente e a estrada é boa. Esperávamos ter problemas com os animais caso tivéssemos muita neve na estrada, mas nem isso. – A preocupação na voz do capitão vinha misturada a uma certa irritação.

- Ainda falta muito para chegarmos, capitão?

- Nunca estive em Saint Maria, mas creio que em duas horas, no mais tardar, estaremos sendo recebidos pelo prefeito Miguel d’Anjou.

Saint Maria de Douleurs, 13 de Nivoso do ano 1810

Com o cair do astro celeste, as pessoas começavam a ficar apreensivas. Era como se o tempo das bruxas e monstros houvesse voltado. A razão dos habitantes de Saint Maria estava abalada. Um terrível conflito ocorreria na mente de cada habitante.

Muitos se escondiam em casa e acreditavam que a carta de socorro que o prefeito mandara traria a solução. Muitos achavam que uma intervenção Imperial poderia apenas aumentar a ira da besta e ser o gatilho para mais mortes.

Um envergonhado sol escondia a cara por detrás de telhados e elevações, e as pessoas já se movimentavam, acabando seus afazeres e rumando para casa. Sejam operários voltando das fábricas ou comerciantes fechando postos de venda, quase todos andavam com certa pressa e evitavam lugares solitários. Na frente de um pequeno armazém, dois homens conversavam ao entardecer, o que algumas senhoras mais assustadas julgariam um ato de bravura.

- Eu digo, Jacques, as cousas ficarão ruins por aqui. Pode haver um embate. Nas ruas já se ouve coisas do gênero: “Não há forma de acabar com isso se não tomarmos medidas e iniciarmos um levante. Temos de nos rebelar contra o Império, não adianta esses fazendeiros saírem com ancinhos nas mãos caçando lobos, o verdadeiro monstro é aquele que usa o título de Imperador, e se não fosse pelos seus caprichos, os céus não estariam nos castigando!” Os inimigos do Império e aqueles que foram de alguma forma prejudicados com o bloqueio farão de tudo para sublevar a população!

- Não há de ser nada, Henri. A carta do prefeito surtirá efeito, e aí tudo voltará ao normal.

- Tens certeza? Já faz hoje onze dias que a tal carta foi enviada, e até agora tudo o que resultou dela foi sumiço da senhora Madellena e da senhora Castella.

- De qualquer forma, a mim não me parece bom falar desses assuntos. Tenho uma notícia para ti. Sabes a cigana aquela que veio de Espanha para cá há algumas semanas? Ao que parece, nosso amigo alfaiate está apaixonado!

- Loup-Marrie apaixonado por uma cigana? Mas desde que ele abandonou sua terra no leste e veio para cá só o ouço maldizer os Tsigane!

- Mas é a verdade... e, olhe só, que alvoroço é aquele?

Com o sol já baixo, o pequeno contingente imperial chegou a cidade. A ajuda provinciana era composta de cinqüenta homens. À frente deles, se encontrava um jovem meio nervoso, vestindo as honrosas roupas de capitão. Ao lado deste, um outro homem, na casa dos quarenta anos, bem vestido e com um sorriso satisfeito no rosto.

Do meio da multidão de curiosos que se juntou para ver a possível esperança de Saint Maria, saiu um homem gordo e desajeitado, e da forma mais respeitosa possível, dirigiu-se aos dois homens que encabeçavam a comitiva.

- Estávamos esperando por vocês! Espero que tenham feito boa viagem!

O mais moço lhe respondeu prontamente:

- Sim, fizemos. Sou o Capitão Eleric Piccard, e esse é o investigador Armand de Sellègue d’Athos. Viemos a mando do general Gerard Uiatté. És Miguel d’Anjou, presumo?

- Não, senhores, não sou. Sou apenas um secretário do prefeito. Chamo-me Benoit LeBlanc. O senhor d’Anjou se encontra muito adoecido! O prefeito lamenta não poder recebê-los em sua chegada, mas pede que eu os conduza até seus aposentos, onde poderão conversar melhor.

Ambos desceram dos cavalos e foram conduzidos pelo gordo senhor LeBlanc pelas ruas da emergente vila de Saint Maria, sob o olhar curioso de todos. Os soldados ficaram esperando por seu capitão do lado de fora da residência do senhor d’Anjou.

Armand observava quieto a bela casa do prefeito. Tudo era decorado com fineza. Um silencioso Piccard o fazia companhia na apreciação do lugar. A sala de entrada era espaçosa e as paredes de madeira tinham belos entalhes. Os móveis eram lustrosos e bem cuidados, e a um canto crepitava fogo em uma lareira. Nas paredes, mapas e retratos revezavam-se no ato de chamar a atenção. Logo, todos os olhos se viraram para uma pequena porta de onde saiu o prefeito da cidade. Por mais que quisesse se apresentar bem, vestido em belas roupas, o estado do homem era deplorável, e sua imagem causava pena.

Magro, com a pele repuxada e os olhos vermelhos, com um esforço sobre-humano andou até uma poltrona de veludo e sentou-se. Não tinha forças para manter a cabeça grisalha ereta sobre o pescoço, e, enquanto tossia, ela balançava loucamente, como um brinquedo, sob os ombros cansados do velho.

- Que bom que vieram... – A voz saia rouca e doída.
This is NOT Sparta!
Avatar do usuário
Elara
 
Mensagens: 668
Registrado em: 05 Set 2007, 12:04
Localização: João Pessoa

O Mistério de Saint Maria - Parte X

Mensagempor Elara em 05 Mai 2008, 14:11

O mistério de Saint Maria – Parte III
Elikar


Espanha, local indeterminado, 1 de Nivoso do ano 1810.

-Ele está demorando, mais do que deveria. O que terá acontecido?

O homem que falava daquele jeito com si mesmo era um espécime incrivelmente curioso. Alto, magro, com um rosto de traços finos e delgados, olhos azuis e profundos, cabelos longos e revoltados e seu traço mais particular, o jeito de falar era ligeiramente diferente das pessoas daquela região. Em suma, era um homem comum, não extremamente comum, graças aquele pequeno traço em sua fala, mas ainda comum.

Outro fato que destacava aquele homem era exatamente sua capacidade de estar numa situação que se utilizasse deste tipo de frase. Não que aquela frase, fosse exatamente incomum, qualquer pessoa poderia usá-la naqueles dias, fosse pela mãe preocupada com o filho que perambulava de noite em ruas escuras, fosse pela mulher que esperava o marido que estranhamente não chegara ao trabalho. De todas as situações no entanto, nenhuma era parecida com aquela em que o curioso homem se utilizava desta expressão. Afinal não era todo mundo que falava uma frase dessas, no meio da noite, quando esperava um dos seus subordinados os quais eram responsáveis pela sublevação da cidade contra a dominação napoleônica.

Uma coisa curiosa era também como eles tinham conseguido manter-se até agora. Infiltrar-se na cidade com maior número de cidadãos já indispostos contra a opressão havia ajudado é claro, montar a base ali em vez de em outros lugares fora uma jogada genial. No entanto, ainda assim era intrigante como cerca de doze pessoas, todas vistas frequentemente juntas, todas inicialmente com costumes inegavelmente ingleses, não fora interpelada, sequer uma só vez, uma única mísera vez, pela tão renomada brigada napoleônica. Talvez fosse graças ao fato de por aqui, até mesmo o esquadrão napoleônico constantemente parecesse subversivo. Talvez fosse graças ao fato de que os homens, munidos de uma respeitável soma em ouro e um estranho favorecimento do acaso, em apenas três dias tivesse travado conhecimento e tornado-se amigos do governante e dos líderes da guarda local... Realmente... Estabelecer o centro de operações nessa cidade havia sido uma grande idéia...

No meio da escuridão o homem ouve um barulho. Um pequeno rangido, como se uma porta se abrindo.

-É você, Pedro Alencar?

-Sim, sou eu mesmo, chefe.

-Ótimo, eu estava começando a temer que algo estivesse errado. Mesmo em um local como esse, o braço de Napoleão ainda pode estender-se até nós as vezes. Bem esqueçamos estes assuntos desagradáveis. Eu gostaria que você se sentasse por gentileza, afinal nós temos um assunto a tratar.

O “chefe” aponta uma cadeira em sua frente, uma cadeira muito bonita acolchoada, de uma madeira lustrosa, com esculpida com lindas imagens em seus apoios. Pedro então senta, produzindo um quase imperceptível barulho de deslocamento de ar.

-Sabes por que o chamei aqui?

-Não, senhor. Esperava que você me dissesse, senhor.

-Pois bem, amanhã você partirá para a França, mais precisamente para a cidade de Saint Maria de Douleurs, nestes últimos tempos algo tem atacado a cidade, sua missão é infiltrar-se nela e fornecer apoio as pessoas da cidade que vão contra o governo napoleônico. Tudo o mais que puder fazer dentro da cidade, para desestabilizar o governo francês, também está autorizado, ataques, assassinatos, desestabilize-os de todas as formas possíveis. Apenas tenha cuidado para não ser capturado, não queremos mais um dos nossos perdidos para um batalhão de fuzilamento.

-Sim, senhor, quando devo partir?

-Parta amanhã, meu caro, amanhã de manhã...

França, Cidade de Saint Maria,13 de Nivoso de 1810

Pedro Alencar era realmente ótimo em seu trabalho. Se fosse ser avaliado por alguém, o que era praticamente impossível sabendo-se que apenas uma pessoa conhecia toda a extensão do seu trabalho, o avaliador ficaria no mínimo... Fascinado...

Em apenas alguns dias fizera de tudo. Estabelecera contatos, exercera influências, conhecera a cidade. Andava como uma sombra pelas ruas, altivo e distante, uma sombra que quando presente dominava o ambiente, quando se retirava era logo esquecida. Em meio a isso era satisfatório notar também a deferência de alguns que entendiam um pouco de seus negócios, o taverneiro, por um exemplo, um personagem que havia se mostrado convenientemente fiel aos seus propósitos. Estava também se tornando um hábil conhecedor dos caminhos da cidade, atualmente conhecia tão bem quanto qualquer outro habitante os becos, passagens e locais que conectavam intrinsecamente a cidade, se continuasse naquele ritmo, em mais uma semana poderia despistar qualquer eventual perseguidor que o incomodasse.

Duas ruas mal iluminadas, um beco como atalho e destrancar um portão. Após andar mais este pequeno pedaço do caminho, Pedro estava finalmente em sua casa. Abre a porta e entra pensando no que faria no dia, agora seria obviamente a hora do descanso voltando do longo trabalho da noite passada. Pensa no colchão que o espera logo ao lado de sua mesa. A mesa... Reparando nela, havia um fato curioso. Uma carta em cima da pesa, como diabos?

Pedro pega, abre e finalmente lê a carta, um tratado sobre apicultura que ele obviamente não pedira. Cinco minutos depois com o simples código decifrado, ele encara o conteúdo da mensagem de seu informante postado na estrada que vinha da Capital para a cidade.

“ Investigadores estão agora a poucas horas de Saint Maria, acompanhados de tropas. Fique alerta.

PS: Menarien.”


Investigadores vindo para a cidade... Isso não poderia ser bom. Se ele saísse agora talvez conseguisse armar uma “recepção” a altura daqueles tolos. Perderia seu descanso, mas fazia parte... Optara por estas incômodas conseqüências ao escolher servir a nação dessa maneira...
This is NOT Sparta!
Avatar do usuário
Elara
 
Mensagens: 668
Registrado em: 05 Set 2007, 12:04
Localização: João Pessoa

O Mistério de Saint Maria - Parte X

Mensagempor Malkavengrel em 05 Mai 2008, 16:11

Eu me lembro deste conto, prometi acompanha-lo mas bem devido a contra tempos (diversos) não pude, agora eh uma bom momento para faze-lo.

Mas está muito bom o texto, espero por mais capitulos.

Abraço.
Imagem
"For every complex problem there is an answer that is clear, simple and wrong."
"I can make wonders, and still let you wander alone."
Avatar do usuário
Malkavengrel
 
Mensagens: 250
Registrado em: 25 Ago 2007, 18:40
Localização: Ilha da Magia

O Mistério de Saint Maria - Parte X

Mensagempor Elara em 09 Mai 2008, 13:34

Malka,

Sua leitura e considerações serão mais que bem-vindas.

Chero!

Segue a parte IV, fechando um ciclo dos contistas.

============================================================================================

O mistério de Saint Maria – Parte IV

Elara


“Querida Joannah,

Não agüento mais ouvir falar em todas essas coisas de Império, essas coisas de bloqueio econômico, políticas da França, políticas da Inglaterra. De uns tempos pra cá é que comecei a entender o porquê da condição de teu povo, o porquê de vagarem assim, com tanta freqüência, sem que nenhuma terra seja realmente própria. Sim eu entendo, querida, e apesar de maldizer antigamente os Tsigane, hoje sinto até um pouco de inveja por não seguir a vida contigo. Até porque nossa paixão é impossível, somos muito diferentes, e meu pai revela um asco por teu povo, só de ouvir falar a designação.

Esta é minha carta de despedida. Não posso mais vê-la. Caio na tentação de fugir contigo. Sinto algo estranho quando olho nos teus olhos, uma vontade de fugir, um sentir que nada disso é meu, um correr de sangue selvagem que só na tua presença me consome. Mas não posso.

Um último beijo,
Loup-marrie.”

Era o conteúdo da carta que entregara à sua amada Joannah no dia de sua partida. Começava nivoso e um frio branco e brando a se apoderava do ambiente. Aquele momento em que olhava a última carruagem retirar-se dos arredores do povoado remontava a anos atrás, remetia ao ano de 1799, quando tinha apenas 12 anos.

Saint Maria Douleurs, 28 de Floreal de 1799

Loup-marrie acordara com o sol tímido começando a entrar pela sua janela, o indício de que era a hora de pôr-se de pé. Levantou, e antes que seu pai chegasse à porta para chamá-lo já havia se aprontado para o início de seu aprendizado. Naquele dia começaria a aprender mais um ofício, o de alfaiate.

— Vá, meu filho. Joseph Renuart o aguarda na alfaiataria. Pegue esse estojo e trate de não se atrasar.

E abriu a porta de madeira para que o rapaz pudesse passar. As flores já haviam germinado e as ruas do povoado estavam bastante coloridas, de modo que Loup-marrie decidiu dar uma volta pelo bosque, aproveitando que ainda era cedo. O sol penetrava por entre as árvores realçando o verde das folhas e o colorido das flores, numa imagem belíssima, que Loup-marrie muito apreciava. Sentou-se por um momento e começou a degustar uma maçã. Momento interrompido por um sentimento estranho que se apoderou do rapaz. Sentiu estar sendo observado. Olhou ao redor e viu um lobo, um lobo negro além das árvores que o circundavam. Achou muito estranho, já que há muito não ouvia falar de lobos naquela região. Levantou-se e num momento de impulsividade tentou aproximar-se. Quando o fez, o lobo levantou-se e seguiu por entre a vegetação. Loup-marrie sentiu-se irresistivelmente tentado a segui-lo e assim o fez.

Depois de muito andar pelo bosque perseguindo o animal, o perdeu de vista. Muito frustrado, tratava de voltar para o caminho para então ir à alfaiataria quando percebeu uma mulher sentada numa pedra à beira de um córrego. Era uma velha cigana.

— Venha cá meu jovem. – disse ela enquanto baforava em seu cachimbo.
— Não, meu pai me disse para não falar com gente como vocês. – disse ele enquanto recuava.
— Vamos, não tenha medo. Venha cá, venha. Você quer vir, dá para sentir só de olhar para você.
— Não, eu vou embora. — e saiu correndo.

A velha gritou para ele logo que se virou:
— Cuidado com o lobo dentro de você.

Loup-marrie corria com todas as suas forças até voltar à estrada que dava para a cidade. Voltou e entrou na alfaiataria pálido. Daí em diante só vivia de maldizer os ciganos, agindo de acordo com o que Rochambeau, seu pai, esperava, ainda que nunca tivesse contado a ele o acontecido.

O mais estranho em suas lembranças é que a velha cigana tinha o mesmo olhar de Joannah. O olhar de sua amada lembrava o olhar da velha cigana e vice-versa. Sentia-se estranhamente inquieto em sua presença, mas ainda assim atraído por algo inexplicável, quase sobrenatural.

Arredores de Saint Maria, 13 de Nivoso de 1810

Um vento frio enregelou suas têmporas e então Loup-marrie percebeu que era hora de sair de suas lembranças e voltar à vida normal. Ela se fora. Ele tinha de voltar para a alfaiataria, tinha que voltar a ouvir as fofocas do império. Tinha de ser quem não era, tinha que ver seu país sob os olhos de múltiplos interesses. Começou sua caminhada.

Chegando à praça da cidade, viu que se formava certo burburinho. Aproximou-se e pôde ver que a esperada comitiva chegara ao local. Começava a escurecer e muitas pessoas se amontoavam para ver os soldados que ficariam na cidade. Algumas donzelas arriscavam seus despercebidos flertes e a maioria dos homens mantinha-se de forma respeitosa, limitando-se a cumprimentar os soldados. Leblanc, o secretário do prefeito, já havia tomado a frente e procurava desajeitadamente conduzir a comitiva até a casa do prefeito, embora as pessoas amontoadas o dificultassem.

— Até que enfim alguém para fazer algo. – disse Loup-marrie como quem fala consigo mesmo.
— Loup-marrie, sempre ingênuo. Eles vieram para nos oprimir, sob apenas um pretexto, esses desaparecimentos. Só vamos ter sossego quando Napoleão cair. – disse uma voz masculina ao seu lado.

Era Luis Jugnout fazendeiro e amigo de sua família.

— Luis, como se atreve a falar isso aqui? Quer ser morto? Estamos perante uma comitiva enviada pelo Imperador. – falou cochichando.
— Não adianta Loup-marrie, sei que não há monstro algum. Diferente dos outros fazendeiros, sei que tudo isso é porque somos uma vila próspera. Há muitos interesses sobre nós.
— Bem, ache o que quiser Luis, eu vou certificar-me de que a alfaiataria já foi fechada e me retirar. Já está anoitecendo e não quero testar a eficácia dos boatos.

E dizendo isso, saiu da praça em direção a alfaiataria. No caminho, esbarrou em um sujeito estranho, corpulento, com quem trocou um olhar desconfiado. Deu dois passos a frente e voltou-se novamente ao sujeito.

— Perdão senhor. Percebi que deixou cair isso no chão. – disse Loup-marrie com uma carteira de couro em sua mão.
— Ah sim, obrigado.
— Nos conhecemos? Não lembro de tê-lo visto na cidade.
— Não, ainda não nos conhecemos. Estou só de passagem.
— Veio com a comitiva?
— Não, não vim.
— Oh, sim. Bem, sigamos os nossos caminhos. Boa noite. À propósito, sou Loup-marrie, o alfaiate.
— Pedro Alencar.

Trocaram um aperto de mão, um sorriso frio e seguiram em direções opostas. O sotaque do homem era forte, o que o deixou com a impressão que fosse um estrangeiro. Da alfaiataria foi para a casa, onde repousou um sono tranqüilo.
This is NOT Sparta!
Avatar do usuário
Elara
 
Mensagens: 668
Registrado em: 05 Set 2007, 12:04
Localização: João Pessoa

O Mistério de Saint Maria - Parte X

Mensagempor laharra em 10 Mai 2008, 02:03

Ficou mais interessante, principalmente depois da parte IV. Um dos capítulos destoou um pouco do resto, mas no geral os contistas estão conseguindo manter uma unidade na história - mesmo cada um deixando aflorar um estilo diferente.

Continuo acompanhando. :cool:
Tentando encontrar inspiração para terminar o conto abaixo:
O Som do Silêncio: Parte IV - A decisão
Reger está às vésperas de uma batalha onde decidirá seu futuro. Durante o que podem ser seus últimos momentos com a Espada e com Alyse, ele se pega pensando sobre a validade de suas aspirações. Acompanhe o conto no link a seguir:
http://www.spellrpg.com.br/forum/viewtopic.php?f=24&t=1067
Avatar do usuário
laharra
 
Mensagens: 123
Registrado em: 21 Out 2007, 18:27

O Mistério de Saint Maria - Parte X

Mensagempor Elara em 12 Mai 2008, 14:04

Laharra,

Afinal, qual capítulo você acha que destoou do conjunto? =)

Chero!

Vai mais outro! Apreciem.

====================================================================================

O mistério de Saint Maria – Parte V

Lobo Branco


França, cidade de Saint Maria de Douleurs, 13 de Nivoso do ano 1810

- Que bom que vieram. - A voz saia rouca e doída, num esforço hercúleo, d’Anjou apontou para uma porta a alguns metros no corredor. - Por obséquio, acompanham-me até o escritório.

Seus passos vagarosos, seu corpo arqueado pendendo para frente, aquilo poderia ter sido um ser humano, hoje não mais, não passava de uma sombra, um espectro, algo que se apegava com suas ultimas forças a uma batalha que muitos teriam sido derrotados. Logo ao entrar no escritório o bom prefeito deixou-se desabar sobre uma poltrona próximo a janela, o cômodo se apresentava com as pesadas cortinas fechadas, um forte cheiro de mofo, sobre a mesa podia ver o contorno de alguns livros e documentos, havia também algumas pequenas estatuas de leões na sala, e o tapete era felpudo, e cheio de pó.

- Eu temia que o senhor Uiatté não tivesse levado minha carta a sério, perdoem minha indelicadeza senhores, mas vocês demoraram mais do que o esperado. - disse o prefeito em meio a tosses e sussurros.

- Mas a cá estamos meu senhor, e logo teremos nosso assassino a forca. - os olhos de Armand, brilhavam como os de uma ave de rapina, mesmo em meio ao cômodo umbral podia-se vê-los - Agora nos coloque a par dos últimos ocorridos meu caríssimo prefeito.

- Perfeitamente, meus caros - o prefeito em meio a um grande suspiro deixa lágrimas sutis escorrerem pelo seu rosto - Poucos dias após eu mandar a carta senhores, eu perdi meu varão, ele foi atacado em meio as ruas, teve seu corpo destroçado, uma coisa realmente horrível senhores. - mesmo fazendo um grande esforço para se mostrar o mais calmo possível, os soluços do prefeito se tornavam audíveis agora, ele escondia seu rosto em entre as suas mãos, sua voz saia baixa e abafada - então senhores, há poucos dias, o assassino levou duas das mais ilustres senhoras da nossa cidade, a minha mulher e a do senhor Castella, nosso representante do banco da França. Elas sumiram, assim como todas as outras moças que andavam sumindo. Eu temo pelo pior senhores, pelo pior!

O prefeito em meio a sua dor e sua condição, tremia, se encolhera na poltrona, como uma criança ferida.

- E onde se achava suas senhoras antes de darem conta de seu sumiço? - a voz de Armand soava sem sentimentos, fria, apático as condições deploráveis do prefeito.

- Eu, eu, não sei, não lembro. - a frágil criatura tremia.

- Lembre-se meu caro, pois eu tenho uma certeza a dizer-lhe, sua inadimplência com os fatos e lembranças pode ser a ruína de sua mulher. - os olhos atentos e ferinos de d’Athos fuzilavam o pobre prefeito, assim como ele mesmo era observado, com espanto, pelo capitão Piccard.

- Oh senhor, eu não consigo. Não sou mais o mesmo de antes. Posso afirmar que minha mulher estava em casa, mas eu aqui não me encontrava, estava na prefeitura, na prefeitura. - sua voz falhava, ele mal sussurrava agora.

- E quanto à senhora Castella, meu bom d’Anjou, sabes onde ela se encontrava? - a voz de d’Athos era acusadora, apesar de soar um tanto meiga dessa vez.

- A senhora Castella? Como eu haveria de saber onde encontrava a Hanya? - por um breve período a voz do prefeito se encheu de ira, e seus soluços pararam.

- Sem comentários na cidade ou na câmara? - Armad tinha um sorriso de canto de lábio, e enrolava a ponta de seu bigode levemente com os dedos.

Mais uma vez d’Anjou escondia seu rosto nas suas mãos, seus soluços recomeçaram, e ele balançava a cabeça negativamente. Aquela cena perdurou por alguns minutos, com os olhos de Armand e Piccard sobre ele.

- Não senhores. Sem comentários. Talvez o sr Castella saiba de sua mulher, o que seria o mais razoável, não crêem?

- Sim senhor. - Adiantou-se Piccard, da forma mais reconfortante possível.

- Voltaremos depois senhor, pela manhã, quando estiveres melhor, descanse, ainda há muito que eu quero indagar-lhe _ o investigador levantava-se, girava sobre os calcanhares e voltava-se para a porta - antes senhor, gostaria de saber se tens um mapa da cidade e dos arredores, pois me foi cedido apenas um da província, e eu preciso de mais detalhes.

- O senhor LeBlanc arranjará tudo que necessitarem meus senhores. Tudo. - o prefeito deixara de lutar contra suas condições, sua sentença fora praticamente inaudível, e ele deixava-se escorrer pela poltrona, como se o seu próprio peso fosse demasiado grande.

Os dois homens saíram da sala e deram alguns passos ainda em silêncio. Piccard estava um tanto impressionado com aquilo.

- Desculpe a minha indelicadeza meu bom d’Athos, mas crê que tamanha crueldade com aquela pobre criatura fora realmente necessária?

- Oh, claro meu jovem. Aquela desgraçada criatura apesar de sofrer nos esconde muitas coisas. Se ele estivesse um tanto mais pesado, eu juraria que nosso bom prefeito estava mentindo até mesmo quanto a sua dor, e pô-lo-ia a ferros aqui mesmo - Armand sorria, enquanto pegava um bom cachimbo de carvalho de dentro de sua casaca - Não percebeste Piccard? Quando disse-nos sobre seu filho, seu varão - Armand colocará ênfase ao dizer essa palavra - o homem só faltou desfalecer, ao ser questionado sobre sua mulher, ele ficou confuso, sem respostas, e quando indaguei-lhe sobre a mulher do bancário ele se sentiu ofendido, apesar de toda a dor. Não se surpreenda, em meio a todas as mortes e rebeldes, essa cidade também nos revelará um bom e quente caso de adultério. - o velho investigador sorria ao comentar todas essas coisas - Além de tudo isso, eu pude sentir um perfume fraco em meio aquela sala fechada e mofada, que não há nos andares térreos da casa, pelo menos não onde estivemos, mas posso estar errado, mesmo duvidando disso.

- És deveras incrível Armand, julgava-o bom, mas isso é... - o jovem capitão fora interrompido, estavam já em meio a porta que ligava a sala ao corredor, quando descendo as escadas principal, foram surpreendido por uma bela jovem. Loira de olhos claros, pele alva e corpo bem desenhado, apesar de toda aquela roupa por cima dele. O olhar dos jovens se encontraram, e um leve enrubescer afligiu a jovem, enquanto Elric ensaiava um dos seus mais sedutores sorrisos.

Eles pararam próximo a escada. Enquanto ela descia vagarosamente, Armand ascendia seu cachimbo, seus olhos se encontravam semi-serrados, e ele olhava a jovem apenas de canto. Elric fez uma leve vênia retirando o chapéu e curvando a cabeça, ela retribuiu a gentileza e deu a mão a Elric para beijar.

- Boa noite cavalheiros, são os homens enviados para resolver todos esses eventos que acometem minha bela cidade? - sua voz era suave, e parecia sofrida.

- Sim senhora, sou o capitão Elric Piccard, esse nobre senhor é o investigador Armand de Sellègue d’Athos, e nós pegaremos o culpado por isso, dou-lhe minha palavra. - Armand a olhava nos olhos, não ousaria quebrar aquela ligação, e ainda segurava a mão da bela rapariga, que enrubescia mais a cada instante.

- Que indelicadeza a minha, meu nome é Alaíde d’Anjou, sou a filha mais nova do prefeito, e estou encantada em conhecer os heróis da minha cidade. - ela sorria discretamente, e apesar da indelicadeza do capitão, não fazia menções de retirar sua mão da dele.

- Desculpe a minha falta de modos minha cara, mas gostaria de sanar uma duvida contigo, algo que seu pai não pôde fazer, devido ao seu estado de dor _ Armand tragava seu cachimbo, enquanto falava - Mas onde encontrava sua mãe quando ela sumiu?

A jovem retirou a mão ao ouvir a pergunta, juntando ambas sobre o ventre, seu olhar voltou-se para o chão, e logo se encheu de lágrimas.

- Claro senhor. Ela estava comigo em casa, estávamos a fiar, quando ela então saiu até o roseiral.

- Uma saída repentina ou justificada minha jovem?

- Ela disse que tinha ouvido algo lá, talvez papai, porem eu não fui capaz de fazê-lo, mesmo contando com uma ótima audição. - lágrimas escorriam por seu rosto, e apesar da tristeza sua beleza era incomparável.

- Certo minha jovem, mais uma vez eu peço minhas sinceras escusas. - Armand então lhe dera seu lenço, e voltou-se para a porta - Agora devemos ir, não vamos mais segurá-la aqui.

Uma breve troca de vênias e mais uma vez os dois homens estavam a caminhar, eles deixaram a casa, encontram com LeBlanc na varanda, cochichando com uma das aias da casa. Pediram aquilo que acharam necessário, e logo estavam a cavalgar para fora das propriedades do prefeito.

- És verdadeiramente um monstro sr d’Athos, como podes fazer aquilo com tão preciosa dama? - a voz de Elric apesar de respeito, estava carregada de ira.

- Me desculpe se eu ofendi sua “amada” meu jovem galanteador, mas sou um velho ávido por informações, e estava lhe prestando um favor, afinal o destino de lagrimas de jovens damas, sempre são seus belos decotes. - Armand ria, e apesar da ira de Piccard ele também sorriu com a colocação do companheiro. Após alguns metros da casa, Armand deu a volta no cavalo, surpreendendo Elric.

- Aonde vais, senhor d’Athos? - Elric se assustara, parando repentinamente o cavalo.

- Olhar o roseiral, quero ver até onde sua bela e um tanto ensandecida dama estava correta. - ele botava o cavalo a galope até árvores próximas - Vá-te para a taverna, logo mais estarei lá.

Ali os companheiros se separaram, Armand deixou o cavalo preso a algumas árvores seguindo gatunamente o resto do caminho a pé, enquanto Piccard fora a galope para a cidade.

...

Horas depois Elric estava debruçado sobre o parapeito da janela de seu quarto com uma jarra de vinho na mão, observando a cidade, com as ruas vazias, sem vida, quando a porta do quarto se abriu, Armand entrava, suas calças estavam sujas de lama, e tinha algumas folhas e arranhões sobre sua casaca.

- E então Armand? - voltou o capitão, oferecendo o vinho.

- Bem, a sua bela rapariga não estava mentindo, bem, pelo menos não totalmente. É praticamente impossível precisar com exatidão, já que tem um bom tempo que tudo ocorreu, e nevou. Mas digo-lhe meu jovem, uma mulher esteve lá, andou por meio a caminhos impróprios por meio do roseiral, mas não teve luta, nem tentativas de fuga. Ela atravessou o roseiral e não voltou. O mais intrigante de tudo isso, após o roseiral não a marcas ou pegadas. - Armand tirara sua casaca e suas calças ficando apenas de ceroulas, atravessara o quarto e pegara a garrafa da mão do jovem, dando um grande trago.

- Talvez algum conhecido a chamou a alguns metros de distância, e ela voltou por suas próprias pegadas.

Armand, estava a vestir roupas novas, estava se preparando para sair mais uma vez.

- O que você diz tem sentido meu jovem, mas se ela o fez, foi de uma forma impecável, e realmente tinha marcas a alguns metros de distância, aproximadamente 20 metros. O que é deveras estranho, a 20 metros numa noite de inverno a visibilidade não é muito boa. Mas seja quem for, tem um cão realmente grande, e ficou um bom período de cócoras, apoiando as mãos no chão, e estava descalço. - Armand estava a porta já, Piccard estava logo atrás dele - Gostaria de sua ajuda meu bom capitão, mas tem que ser você, e deves ficar o mais atento possível, volte gatunamente às terras do prefeito, e do roseiral até os portões, siga por aquele amontoado de árvores, e procure por vestígios desse vestido. - ele entrega um pedaço vermelho de pano sedoso ao capitão - Caso encontre algo, devolva onde estava e tudo no lugar, tente não mexer em nada, logo ao amanhecer voltarei lá.

- E aonde vais agora sr d’Athos? - observava Piccard agora também se preparando para sair, pegando sua capa.

- Marquei uma entrevista com o banqueiro, tirarei as suspeitas sobre os adúlteros dessa cidadezinha pacata. E cuidado com a rapariga dos d’Anjou, apesar de estar caindo em um estado parecido com o pai, tendo olhos fundos, unhas quebradas e comidas, marcas de choro constante, cabelos desgrenhados e espartilho mal fechado, ela é um tanto quanto orgulhosa e possessiva. Mulheres assim são perigosas, muito perigosas. - ao dizer isso Armand fechou as portas atrás de si e logo estava a galope pelas ruas da cidade, que teve sua calma mais uma vez perturbada pelos galopes do capitão em direção a casa do prefeito.

Arredores de Saint Maria, cemitério da família d’Lambert, 13 de Nivoso do ano 1810

Um homem encapuzado atravessa aquele velho cemitério, com anjos e tumbas de mármores, tomados pela neve e vinhas, pequenos animais o observam, e uma neblina escura a tudo traga. Em sua mão ele tem uma corrente enferrujada, sendo arrastada, e na outra carrega uma carta de tarô. Seus passos são graciosos e exatos, o levando até uma tumba meio subterrânea, a mais ao norte, sem ornamentos e escura, a grade se encontrava semi aberta, e apesar de toda a escuridão, podia-se ter certeza que estava vazia.

O encapuzado parou à entrada, abaixou-se, enrolando a corrente em seu tornozelo, e enfiando a carta na neve, voltada para si, colocando a corrente em torno da mesma.

- A cá eu vim, e rogo-lhe por ajuda. Fazei aqueles que sangraram meu povo sofrer, carregai-vos para as tumbas cadavéricas que merecem. Eu rogo-lhe que me escute, faça isso por mim, ajude-me Ankou, eu rogo por ti Ceifador!_apesar de carregada de sentimentos a voz era sussurrada, e tinha um leve sotaque espanhol. Logo ele cantarolou algumas palavras estranhas, de um dialeto único e desconhecido.

Um forte vento veio em resposta, balançando velhas árvores, fazendo-as projetar sombras sobre o velho e nevoado cemitério. Em algum lugar do mesmo, uma enorme sombra como uma mortalha corria por entre duas tumbas, próximo a uma árvore torta, negra e sofrida.

Em Algum lugar na mesma noite do ano de 1810

Ele correra a noite inteira, desde a chegada das tropas imperiais não estava se sentindo bem, seu peito ardia e ele procurou sua bela cigana, uma mulher de cabelos castanhos, seios fartos e espírito fogoso. Apesar das recomendações do pai, mais uma vez ele se apaixonara por uma cigana, elas o atraia como lâmpadas atraem insetos.

Pórem não a encontrava, aquilo como nunca o irritou, seu peito ardia e ele ansiava por ela. Em casa ele via sombras estranhas, e pensamentos horrendos perambulavam por sua mente.

Começara a correr, como nunca tinha feito. Correu como um homem, e logo estava correndo como um lobo.

E um lobo corria atrás dele. Um lobo feroz e negro, o demônio que o acompanhava desde o nascimento e sempre estava a perturbar os sonhos do garoto. Então sua vida ficou vermelhas, coisas gritavam em seu ouvido, e um gosto salgado e ferroso tomou sua boca, e um liquido quente escorreu pelo seu rosto e garganta.

Com os raios de sol, Loup-Marrie despertara, tinha um gosto estranho na boca e seu corpo doía, demorou minutos para perceber que não estava em casa, e sim, em algum lugar no meio de um bosque. Seu corpo estava sujo de lama neve e algo vermelho escuro seco, seus dedos doíam, e ele tinha pequenas marcas pelo corpo, como bicadas, e estava com penas grudadas no corpo. Não conseguia lembrar como fora parar ali, nem o que tinha feito na noite anterior, não tinha bebido, mas sua cabeça doía, estava enjoado e com a boca seca, como se recuperasse de um porre.

Seus passos incertos o fizeram tropeçar em alguma coisa, ele rolou. Ao checar o que era, viu apenas uma pequena e pálida mão, saindo da neve, lhe faltava um dedo, e estava lacerada.

Loup-Marrie gritou, mas seu grito se assemelhou a um uivo de dor, e ele vomitou, desesperado ele voltou a correr, sem destino, com medo, muito medo.
This is NOT Sparta!
Avatar do usuário
Elara
 
Mensagens: 668
Registrado em: 05 Set 2007, 12:04
Localização: João Pessoa

O Mistério de Saint Maria - Parte X

Mensagempor Beholder_vesgo em 13 Mai 2008, 21:42

Que agradável rever nosso conto ser ressuscitado!
Mal posso esperar pra voltar a escrevê-lo.
Só temo por fazer mais de ano e meio (desde de setembro de 2006) que não escrevo nada... Desculpem se a qualidade cair muito!

E bem-vindo ao grupo, Gehenna!Mal posso esperar para ler suas contribuições à história!

Aos leitores (novos e antigos), desejo uma ótima leitura e espero comentários!
Até mais, amigos!
Avatar do usuário
Beholder_vesgo
 
Mensagens: 1
Registrado em: 30 Abr 2008, 11:05

O Mistério de Saint Maria - Parte X

Mensagempor Lady Draconnasti em 14 Mai 2008, 13:19

Beholder_vesgo

Eis sua chance de espanar as teias de sua pena.
Imagem

Status: Cursed
Alinhamento do mês: Caótica e Neutra
Avatar do usuário
Lady Draconnasti
 
Mensagens: 3753
Registrado em: 25 Ago 2007, 10:41
Localização: Hellcife, 10º Círculo do Inferno

O Mistério de Saint Maria - Parte X

Mensagempor Lobo_Branco em 14 Mai 2008, 18:51

Meu deus, ele vive!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Bem vindo de volta Vesgo!!!!!!!!!!!!!!!!!!! :victory:

Abração!
"— Nós também éramos crianças, e se eles nos deixaram órfãos, os deixamos sem filhos."(

Óglaigh na hÉireann)


O Último Duelo - conto Capa&Espada
Avatar do usuário
Lobo_Branco
 
Mensagens: 289
Registrado em: 26 Ago 2007, 13:22
Localização: Aquele Bosque com ares de Floresta, na periferia de Contonópolis

O Mistério de Saint Maria - Parte X

Mensagempor Elara em 15 Mai 2008, 13:38

Beholder,

É um prazer tê-lo de volta! Colegas de pena como você fazem muita falta. =)

Chero!

----------------------------------------------------------------------------------------------

O mistério de Saint Maria – Parte VI
Beholder Vesgo


Cidade de Saint Maria de Douleurs, 14 de nivoso de 1810

O senhor Benoit LeBlanc acordou extremamente cedo, como era seu costume. Mas hoje havia acordado cedo por que seu sono fora agitado e ruim. Sonhara que, na calada da noite, uma sombra saía da alfaiataria vizinha a sua casa e corria para a mina de ferro. Em seu sonho, sua filha acordava com o barulho da casa vizinha e ia atrás do vulto, seguindo as trilhas no bosque. Depois ouviu um grito de desespero. Nesse momento acordou.

Sentia-se muito mal. Sempre se sentia deprimido quando sonhava com a filha, morta há dois anos.

Vestiu-se, saiu de casa e percebeu que, como sempre, o sol era mais preguiçoso que ele. Os raios dourados não tardariam a se apresentar na ópera do amanhecer, mas, como o prólogo da peça, Benoit sempre estrelava antes deles.

Caminhou pelas ruas ainda desertas. Hoje o dia começaria tarde na cidade, disso tinha certeza. A cidade de Saint Marie, como um ser único, dormira tarde, tal a excitação pela chegada da comitiva. LeBlanc atravessou a praça central da vila e seguiu o caminho de passeio preferido de Amandine.

O passeio matinal para relembrar a memória da filha se tornara um ritual necessário desde o falecimento da menina. Tida como uma das mais belas mulheres do povoado, e a maior alegria da vida de Benoit, morreu cedo de uma doença misteriosa. Até hoje, o pai não sabia exatamente que estranha fraqueza se abatera sobre a garota.

Quando voltou a frente da residência LeBlanc, o sol resolveu levantar-se e cumprimentá-lo. Decidiu que iria a taverna para desjejuar, e também possivelmente conversar com o capitão Piccard. Sabia que ainda estava cedo, e como sua alma não se aquietava, continuou andando pelas ruas de Saint Marie, observando o despertar do povo. Quando julgou já ser hora, foi a taverna.

Entrando no recinto, viu vários soldados descendo dos quartos e preparando-se para o dia que chegava. Cumprimentou o taverneiro e pediu-lhe um café. Nesse momento, viu o Capitão Eleric Piccard descendo as escadas com uma certa pressa e o cumprimentou.

- Bons dias, Capitão!

O semblante de Eleric apresentava preocupação, e a resposta veio em um tiro, mesmo o capitão esforçando-se para não se mostrar desrespeitoso.

- Bons dias, senhor LeBlanc. Desculpe, mas a pressa me impede de conversar. Tenho que verificar uma informação que um de meus homens me passou. Parece que o sentinela que cuidava dos animais durante a noite amanheceu morto, assim como dois de nossos cavalos.

Em uma casa afastada dali, Pedro Alencar dormia um sono tranqüilo, embalado pela sensação de um serviço satisfatoriamente cumprido.

Em algum lugar próximo da mina de ferro, 14 de nivoso de 1810

Quando o pânico irracional abandonou o corpo de Loup-Marrie, deixando apenas uma incômoda sensação de estranheza e perplexidade do mundo, ele já se encontrava longe do bosque onde acordara. Seu corpo suado tremia, tanto pelo cansaço quanto pelos pensamentos terríveis que se mostravam na mente frágil e perturbada do jovem alfaiate.

Como e porque acordara naquele bosque, ele não sabia responder. As têmporas lhe doíam de forma lancinante. Tentou ordenar a confusão que se alojava em sua mente e recordar tudo.

Após ver a chegada da comitiva imperial, fora para casa, trancara a alfaiataria, e, com medo da veracidade dos boatos acerca da criatura medonha que andava sumindo com gente da cidade, verificou todas as trancas mais uma vez. Pediu a benção a seu velho pai e foi deitar-se. De início, seu sono foi tranqüilo. Mas depois disso...

Lembrou-se que acordara no meio da noite suando, e quando voltou a dormir... Não conseguia lembrar bem. Tudo ficava confuso! Teve um sonho horrível. Alguém lhe chamava, lhe requisitava um trabalho. Ele tentava escapar desse chamado, buscava sua amada. Então ele corria, corria como um animal. Corria como um lobo.

O gosto amargo na boca... A mão lacerada... Não podia estar acontecendo. Loup-Marrie não entendia, era confuso demais. O medo e o desespero não o deixavam pensar. Jogou-se na fina neve e, como um bebê assustado, se pôs a chorar. O que ele havia feito? O que isso tudo significava?

Com a cabeça ainda girando, um turbilhão de imagens se confundiam na mente do rapaz. O dia em que chegara no vilarejo e assumira a alfaiataria, há quase três anos. O dia em que encontrara a velha cigana na floresta, há onze anos. O momento em que os imperiais chegaram ao vilarejo, há algumas horas. O desaparecimento da primeira garota, há alguns meses. Os pesadelos, cada vez mais constantes.

Tentou se controlar. Levou as mãos ao rosto e disse para si mesmo que era filho do comandante Hermann Rochambeau, e não devia perder a calma. As palavras eram infrutíferas...

Em um instante de lucidez, notou não estar vestido com suas roupas de dormir. Estaria vestido como para um dia de trabalho, não fossem os rasgões adquiridos durante a noite. Sim, estava tão exausto que dormira com essas roupas. Levou as mãos ao bolso e lá encontrou as chaves da alfaiataria e uma carta de tarot. Algum tempo se passou até entender por que levava a Papisa no bolso.

A carta lhe trouxe uma lembrança doída. No vagão, o cheiro de perfume mesclava-se ao ambiente. O gélido hálito do inverno entrava assobiando uma melodia pela janela, e incomodava um pouco o rapaz. Na mesma janela, uma pequena cortininha de motivos estranhos cumpria o dever de impedir a invasão da luz do astro rei. Algumas velas estavam acessas, em alturas diferentes, causando uma dança de sombras bela e ao mesmo tempo horrenda nas paredes de madeira do vagão. A luz era crepuscular.

Alguns poucos móveis estavam dispostos sem muita ordem. Sob uma cômoda, havia alguns animais esculpidos em madeira. Mas era difícil atentar para qualquer coisa com a bela Joannah sentada a sua frente. Quando ela se mexia, seus cabelos castanho-escuros dançavam sobre seu corpo, hipnotizando o apaixonado alfaiate. A pele bronzeada, mal oculta pelas roupas que vestia, contrastava bem com o verde brilhante e profundo dos seus olhos.

Os olhos! Aqueles olhos de cigana o atraiam e ao mesmo tempo o assustavam tanto! O fogo que queimava por trás daqueles olhos exercia um fascínio sobrenatural sobre Loup-Marrie. Belos e perigosos, iluminavam a vida do rapaz, mas também o queimavam aos poucos. Não havia gosto ou castigo maior para ele que passar todo o tempo que dispunha a apreciar aquelas duas esferas de poder.

Entre Loup-Marrie e Joannah, uma mesa se encontrava. A mesa enfeitava-se e vestia-se de um longo pano de seda roxo escuro, com alguns pontos dourados, dispersos no tecido sem ordem ou padrão algum. Vendo o pano, nos raros momentos em que conseguia negar o chamado dos olhos da cigana, enxergava o céu noturno.

Nas mãos da mulher, dançavam com graciosidade cartas de tarot. O semblante da moça era enigmático. Um sorriso de timidez fingida tomava o palco dos lábios carnudos que o alfaiate tanto desejava. Num súbito, as cartas deixaram de bailar e, uma a uma, tomaram posição no céu noturno da mesa.

Ao final da organização, a constelação de cartas formava um desenho curioso. Ao centro da mesa, duas cartas formavam uma cruz. Ao redor destas, quatro cartas formavam uma espécie de rosa-dos-ventos. Ao lado esquerdo mais quatro cartas estavam dispostas em uma coluna. O monte com as cartas não utilizadas repousava em um canto isolado. Todas as cartas estavam viradas para Joannah, com exceção da que na visão do alfaiate representaria o sul da rosa-dos-ventos. A ilustração mostrava uma mulher meditando, e era nomeada “La Sacertodisa”, a Papisa.

- Curioso, Loup-Marrie. Mas não é agradável. Os segredos ocultos não me revelam coisas das quais vai gostar.

A voz da moça, mesmo predizendo um destino desagradável, era a coisa mais maravilhosa que ele já presenciara. Com exceção dos olhos da mesma.

- Teu passado foi construído por mudanças e imposições, e me parece que ainda é assim contigo – dizia tristemente a moça, mostrando a carta que apontava o leste. Loup-Marrie supôs ser uma carta de mau agouro. A gravura mostrava uma caveira ceifando cabeças, e estava intitulada de La Mort. – A carta da Morte não representa morte no sentido que estás imaginando. É o fim necessário ao começo, muitas vezes inevitável.

Seguiu para a cruz central, formada pelo quatro de cálices e pelo oito de espadas.

- Esta organização não mostra boa sorte, o naipe de espadas é muito presente. Tu passas por um período de indiferença, estás à parte dos problemas. Isso por que estás confuso, sentindo-se sem forças, sem poder para mudar nada. Está perdido por causa do que ocorre em tua cidade, Loup-Marrie?

A pergunta o pegou de surpresa. Não esperava por isso. E tampouco podia respondê-la. Os acontecimentos estranhos no vilarejo realmente o incomodavam, mas a forma como as pessoas o viam, cada um utilizando a morte de tantas outras apenas para fermentar seus próprios objetivos... Isso era inumano!

Um dedo da cigana passou por cima da coluna da esquerda. De baixo para cima, enumerava-se um seis de espadas, um dez de espadas, um cinco de espadas e um nove de espadas. Realmente, era o naipe predominante.

A cigana falou de como o rapaz se sentia abatido, preocupado, culpado por tudo, talvez por sua inação. Enquanto ele era um mártir, um sofredor sem forças, os outros todos usavam de forma desonrada os fatos, apenas para ajudá-los a promover seus próprios objetivos. A cigana previa que, ao fim, o alfaiate amargaria um tempo de recuperação do trauma, se assim fosse.

Loup-Marrie não gostava disso. Não aceitara de início que Joannah tirasse sua sorte, mas aqueles olhos sempre o dobravam... Desde que sua amada descera os olhos para as cartas, ele não estava se sentindo nada bem. Aquele seu sangue selvagem, que sempre despertava perto de Joannah, parecia querer tomar-lhe o corpo, e talvez escapar dele.

Os olhos da cigana fixaram-se nos cardeais norte e sul da cruz de cartas. A Papisa e a Lua. O vento que assobiava baixou a voz para as palavras da mulher.

- A verdade agora é o mistério. Tanto o que ocorre em tua vila, quanto o que ocorre em teu coração, são mistérios que tua mente não quer aceitar ou não consegue ver. A Lua me mostra um caminho de enganação e ilusão pelo qual os tempos estão andando, mas tua sombra sabe a verdade, segundo a Alta Sacerdotisa. Se veres dentro de ti mesmo, teus olhos se abrirão, e entenderás teu papel.

Por fim, o rosto de Joannah cobriu-se de preocupação e tristeza. Faltava uma última carta não mostrada na mesa, entre a coluna de cartas e a cruz central. Um cinco de copas. Joannah estendeu uma mão, como se fosse derramar um cálice sobre a mesa, e sua voz saiu engasgada:

- Loup-Marrie, existe algo que preciso te dizer. Eu te contaria ao fim disso tudo, mas o cinco de copas fala por mim. E eu traduzo. O futuro te traz perdas. E acho que a primeira que perderás sou eu, estou certa?

- Joannah...

- Se eu lhe disser que o acampamento todo sairá antes da lua minguante, e que eu não gostaria de me afastar de ti, tu abandonarias teu vilarejo, teu pai e a vida que tu possui? Pois é este o único jeito de ficarmos juntos.

A garganta do rapaz se fechava, ele tinha dificuldade de pensar. Lá estavam aqueles olhos tentadores, que lhe davam a certeza de que o certo era ir-se com ela. Mas ela falara uma palavra que o remontou ao passado. “Teu pai”. O seu enfermo pai, que precisava dos cuidados do filho. O seu velho pai, que o ensinara a não confiar em ciganos. Sua mente estava confusa, e o abatimento se tomava também no seu peito.

Perda, sim, ele teria perdas. Não importava se ficasse ou não, perderia algo. Mas não conseguia enxergar mais nada. As cartas sobre a mesa zombavam dele, inalcançáveis no céu noturno.

- Eu preciso pensar. Mas não aqui. Joannah, tu sabes que não tenho controle quando estás perto. Eu não sou eu. Ou não sou o eu que conheço.

Sem falar mais, levantou-se e foi saindo. A moça levantou e abraçou o rapaz, que se desvencilhou de um beijo. Por mais que desejasse novamente os beijos de Joannah, sentia que o seu sangue precisava apenas de mais um incentivo para escapar-lhe. Não que ele entendesse o que isso significava.

Não lembrou da volta para casa na noite escura contando apenas com o vento frio como companhia, mas sim de que, após as despedidas, dois dias depois, encontrou no bosque onde ficara o acampamento dos ciganos uma carta de tarot. A Papisa. Ou Alta Sacerdotisa, como Joannah a chamara.

Joannah lhe havia dito que, segundo a carta da Alta Sacerdotisa, ele possuía o conhecimento sobre os mistérios, só precisava ver dentro de si. Agora, essa afirmação lhe trazia terror. Mesmo assim, a imagem da carta o tranqüilizava. Algo na Papisa lhe dava um conforto e uma sensação de calma, de segurança.

E agora, analisando a figura na carta melhor, percebia que os olhos desta eram verdes. Em um momento de lembrança, um suspiro, como se imitasse o vento daquela noite:

- Belos e perigosos...

Cidade de Saint Maria de Douleurs, 14 de nivoso de 1810

A manhã já ia longa quando Armand finalmente desperta. Olhando uma janela, se pergunta por quanto tempo estivera dormindo. E se perdoa. Afinal, a noite passada havia sido longa em demasia.

O senhor Castella era realmente um sujeito curioso. Tendo atendido o investigador já tão tarde, em sua bela residência, o banqueiro se mostrou muito ávido por ajudar nas investigações. Assim como o prefeito, não sabia dizer onde fora o último paradeiro conhecido da mulher. Mas pela forma como demonstrou interesse e veracidade mesmo nas perguntas mais triviais de d’Athos, com certeza, não só desconfiava que a mulher o traía, como também era um homem muito rápido de raciocínio, e tentaria usar a investigação do próprio Armand para descobrir se era verdade.

Armand riu-se. Um homem deveras rápido, isso é o que o banqueiro era. E pelo que vira, o senhor Castella preferia que encontrassem uma mulher inocente morta a uma adúltera viva. Não queria a própria honra manchada desta forma.

Além do paradeiro de Hanya Castella, Armand argüiu muitas outras coisas, em maior parte, apenas para testar a veracidade das afirmações de Apollinaire Castella. E a veracidade foi confirmada, se o engenho e conhecimento do experiente investigador ainda eram confiáveis.

Já era hora de comer algo, e encontrar-se com Eleric. O jovem talvez tivesse encontrado algo nas proximidades do roseiral. Saiu do quarto e desceu as escadas. Na grande sala de entrada da taverna, perguntou a um dos poucos soldados que ali estavam se este vira o capitão. O homem lhe contou que o capitão havia saído, pois alguém o avisara que, durante a noite, o vigia dos animais e também dois cavalos foram mortos. Armand agradeceu seco e foi comer alguma coisa.

Enquanto se alimentava, viu um sujeito estranho se achegar do taverneiro e com ele trocar algumas palavras, mas ao fim do desjejum de Armand, o sujeito já havia sumido, tanto do campo de visão do investigador como de sua lembrança.

Localidade inexata, no sudoeste da França, à 14 de nivoso de 1810

Sentindo o balanço do movimento, dentro da carruagem, a moça pouco observa a paisagem. Árvores próximas e montanhas longínquas, nada realmente era capaz de tirar seu espírito ígneo da cidade de Saint Maria. Uma preocupação além da normal se instalara em sua mente. O passado havia voltado para assombrar, mas era um infortúnio injusto.
Os olhos verdes fitavam a Roda da Fortuna.
This is NOT Sparta!
Avatar do usuário
Elara
 
Mensagens: 668
Registrado em: 05 Set 2007, 12:04
Localização: João Pessoa

Próximo

Voltar para Contos

Quem está online

Usuários navegando neste fórum: Nenhum usuário registrado e 4 visitantes

cron