Olhei para seus pequeninos olhos, que já tão cedo se abriam para contemplar aquele belo mundo. Seus pequenos olhos de um azul acinzentados eram belos. Como as ondas ao quebrar na praia, tão belo, quão belo que vi me olhar nos olhos vazios. Me perguntei naquele momento, em que tive a leve sensação de ser visto, qual seriam as cores, a cor, de meus olhos. Seriam belos e serenos como os dela? Tenro e leves...
Naquele singelo minuto me senti desejado. Como se por um momento surgisse uma beleza em mim que antes não havia. Se eu pudesse esboçar um sorriso, belo e grande como os deles, eu o faria com prazer. Queria poder sorrir. Segurei a pena com força, queria poder quebra-la em mil pedaços por um sorriso. Apertei o enorme livro contra meu corpo nú. Se eu pudesse, oh se pudesse, rasgaria suas infinitas páginas por um minuto de sorriso.
Franzi o cenho em arrependimento. Seria aquilo que percorria meu corpo e alma nús arrependimento? Seria aquilo o doce sabor do arrependimento fluindo pelo meu corpo vazio? Não é possivel, não era possivel. Foi quando num relance, entre pensamentos contraditórios que notei em seus lábios um pequeno sorriso. E sorria para mim. Sorria para mim?
Se eu pudesse largar aquele livro, soltar aquela pena, a tomaria em meus braços finos, encostaria contra meu peito e a abraçaria durante um tempo que, mesmo eu, não posso definir quão longo. Ah... Tão pequena, caberia facilmente em meus braços, roçaria seu rosto contra o meu tentando expressar algum carinho que eu não havia sentido antes.
Foi quando seus olhinhos marejaram. A água embaçava a cor bela de seus olhos e escorria pelo rosto rosado. O sorriso tímido desapareceu, seus olhos ficaram semi-cerrados, os dedos, tão pequenos, se fecharam e o corpo se contorceu levemente. Foi quando o livro se abriu e a ponta da pena se banhou em tinta negra.
Eu tinha de fazer o que sempre fiz. Simplesmente fazer. Mas algo me impedia de faze-lo, contra meu propósito único de viver, contra meu trabalho. Aquilo que eu havia denominado arrependimento lutava contra minha essência pura.
Joguei a cabeça para os lados como se pudesse afasta-lo, fazer o que tinha de fazer. Fazer o que sempre fiz. Me debruçei sobre o livro e toquei a pena contra a página já desenhada com outros inumeros nomes e relutei. Assim como ela relutava em ceder.
Lutavamos bravamente contra o inevitável. Seria inevitável? Foi quando me dei conta que escrevia seu nome lentamente sem nem ao menos perceber, e a sua respiração diminuia gradativamente. E por fim o ponto. E por fim seu nome em meu livro. Completo.
Joguei a pena para cima. Cerrei o punho e bati contra o livro como se pudesse feri-lo e ve-lo sangrar, agonizar em dor. Bati. Bati. Tomei a folha entre meus dedos, e com a força indescritível que havia em mim tentei rasga-la, feridas se abriam despejando meu sangue azul contra o chão.
Uma voz dentro de mim gritou. Uma voz que nunca antes tinha escutado. Não saberia dizer se aquela era minha voz. Minha alma. Eu. O sentimento. O que era aquilo que gritava dentro de mim? Sei apenas que me deu mais força. Força que brotava da voz. Senti meu rosto rasgar onde, antes, não havia boca, e do corte o grito se fez ouvir. E a página rasgar ao meio levando meus dedos e banhando o cômodo em azul celeste.
O tempo parou. Quebrou. Estilhaçou em milhões de pequenos pedaços, como vidro, e tudo se distorçeu. E como vidro o senti fincar em minha pele abrindo espaço para que minha alma saisse. Vi meu peito aberto por onde ela se esgueirava lentamente para fora. Para um vácuo rubro pintado com pontos brancos do tempo que havia se estilhaçado.
E nua, como eu, como havia de ser, corpo e alma, ela ergueu suas mãos em minha direção. Toquei-a, senti plenitude. Como um rio que atravessa além das fronteiras e acaba no mar.
O tempo se reconstituia lentamente. Como um quebra-cabeça complicado, onde achar as peças parecia impossivel, e montava-se lentamente. Voltando a correr. Voltando a normalidade.
Ela me tomou em mãos. E senti meu corpo pesar, o que outrora não tinha ali aparecia como num desenho. A ferida aberta, se sujava no próprio tempo e o azul se tornava vermelho, meus dedos voltavam como as peças do quebra-cabeça, e num sorriso com um triste olhar ela voltou para dentro.
E vi o castelo de meus sonhos não sonhados. Lamberia o chão por ela. Limpei cada centímetro enquanto lentamente o tempo voltava. Limpei cada parede, teto e haste. Ergui as mãos após limpo ele brilhar e implorei... Implorei do alto da torre, e aos céus ainda incompleto implorei.
Para ao findar não dar em nada.