Erras duas, três ou mais vezes.

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Erras duas, três ou mais vezes.

Mensagempor Dahak em 02 Abr 2008, 16:57

Errar duas, três ou mais vezes.



Era um garoto ordinário, de um nome qualquer, não menos especial que o seu ou o meu. Era um adolescente dessas cidades grandes, inserido em um psicodelismo sem fim de cores, texturas e acontecimentos. Ou talvez deveria ser assim.

Sua mãe trabalhava fora, era empregada doméstica. Alguém precisava sustentar a casa. Aliás, eu, narrador, gostaria de poder me referir àquele local como um lar para aquela família, mas simplesmente não posso.

A mãe, mulher digna e esforçada, criada e educada dentro da melhor concepção tradicionalista, sofria agressões de seu marido, um alcoólatra deliberado. Era incrível a quantidade de maquiagem que ela tinha de usar para disfarçar os hematomas. Seus patrões eram muito bem de vida, muito instruídos e altruístas. Por vezes desconfiaram do sofrimento de sua empregada, mas a mesma refutava veementemente.

Seu filho, meu amigo, o garoto que abordei no início, acordava cedo para ir ao colégio público, andava meia hora descalço para não gastar a sola de seu único tênis até chegar à estação de trem mais próxima. E fazia isso todos os dias, duas vezes por dia, ida e volta.

Ele não tinha dormia muito bem, pegava no sono muito tarde, sempre receando por sua mãe que tanto sofria nas mãos de seu pai. Era complicado dormir enquanto um choro calado e oprimido, baixinho e agonizante era ouvido quase todas as noites e noite após noite.

Subitamente, em um dia não muito belo, o pior aconteceu: seu pai falecera. Foi diagnosticado com o desligamento do sistema nervoso central por excesso de álcool, vulgo overdose, vulgo um porre maior do que poderia suportar.

Os vizinhos, apesar de abatidos, comemoravam em silêncio, afinal, não teriam mais de lidar com os gritos ensandecidos de um imbecil que chegava embriagado em casa.

Sua mãe seria a pessoa com mais motivos para comemorar, mas, no entanto, era a pessoa mais desesperada, inconsolável e sem chão que estava no funeral. Nem mesmo a mãe do falecido, avó do meu amigo, estava tão cabisbaixa.

Os meses passaram, a dor passou para todos, exceto para aquela esposa, para a mãe de você sabe quem.

Seu filho, meu amigo, o garoto que abordei lá no comecinho, compunha uma banda outros dois amigos, além de mim. Ele era nosso vocalista. Cantava muito.

Dávamos muito duro com a banda, queríamos que todos pudessem ouvir nosso som. Já tínhamos nossas próprias canções, nossos próprios arranjos e tudo mais. Foi em uma época bem chuvosa que conseguimos nossos primeiros minutos de fama: faríamos nossa primeira apresentação significativa em um barzinho local.

Mas também foi naquela época de chuva que a casa desse meu amigo se mostrou frágil. As tábuas que compunham o teto, o chão e as paredes não interceptavam toda a água e, ainda que conseguissem, ficavam deveras umedecidas e inóspitas. E foi naquela época de chuva que meu amigo foi parar no hospital, diagnosticado com pneumonia.

Foi um choque. Foi um grande choque. Seu quadro era grave porque a doença já estava instalada havia muito tempo, mas com medo de levar ainda mais preocupações para sua mãe, nunca se disse indisposto ou reclamou de sua saúde. Infelizmente não tardou até que ele desenvolvesse outras complicações.

Meus amigos e eu o visitávamos sempre que podíamos. Ele estava abatido e talvez nós fossemos os únicos que iam vê-lo além de sua mãe.

Certa vez resolvemos bolar uma surpresa, estávamos compondo uma música em homenagem a ele e a sua mãe. Levou alguns dias, foi bastante trabalhoso, mas sabíamos que valeria a pena, sabíamos que era o mínimo que poderíamos fazer.

Quando finalmente terminamos, fomos muito animados para o hospital. Lembro-me como se fosse hoje, era uma tarde fresquinha, sem sinal de chuva, aliás, sem sinal de nuvens.

Ao subirmos as escadas, notamos uma certa movimentação estranha. Duas macas saíram do quarto em que ele estava.

A estranheza foi generalizada e logo fomos pedir informações.

Uma enfermeira hesitou e, depois de muito insistirmos, proferiu: noite passada ele teve uma parada respiratória e entrou em coma.

O choque foi indescritível e sorrateiro. O choro foi instantâneo. Aquele papel em minha mão, com uma música que contemplava a vida, que outrora parecia tão boa idéia, agora me soava tão obsoleto. Eu me sentia tão estúpido.

A enfermeira também estava em situação desconfortável e parecia querer se expressar, parecia querer escolher as palavras, mas não sabia onde as encontrar.

Acabei me esquecendo da segunda maca, mas o mesmo não aconteceu com um amigo meu que perguntou sobre o ocorrido. A resposta, no entanto, não poderia ter sido mais inusitada: a mãe do nosso amigo havia cometido suicídio e morreu ali, debruçada sobre seu filho.
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Mensagempor Elara em 03 Abr 2008, 14:46

Dahak,

As considerações maiores fiz no msn para você. =)

Como sempre, um texto bem gostoso de ler. Você é mestre com as palavras. Mas uma história bem triste, aclimatada pelas fortes chuvas que assolam o país. Aliás, depois daquela crônica sobre São Paulo, acho que vc anda migrando para os temas "sociais", não?

Chero!
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Mensagempor Dahak em 03 Abr 2008, 16:02

Lalinha, muito obrigado pelas considerações e apontamentos.
Sou, dentre outras coisas, um péssimo revisor, muito desatento, lol. Preciso mesmo que alguém me dê sua opinião para me policiar.
Sem suas considerações eu pagaria um mico sem precedentes XD

Fico feliz em saber que a leitura correu bem, mas a parte do "mestre com as palavras" é questionável, porque só sendo muito amiga minha assim para dizer uma coisa dessas :linguinha:

Sobre o caráter social de meus últimos escritos, não sei se foi mero acaso, se é uma predisposição atual ou se é algo em solidificação em mim. Sei que sinto saudades de poder divagar um pouco mais, de ser um pouco menos óbvio e contundente em meus dizeres, lol. Mas também sei que determinadas figuras de linguagem e condutas não seriam muito cabíveis dentro do meu propósito nesses últimos trabalhos.

De qualquer forma, se tudo der certo, por esses dias sai um poeminha mais old school ^^"

Beijão.

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Mensagempor Malkavengrel em 04 Abr 2008, 01:43

Concordo com a Elara, em tudo =P

Mas enfim, vindar uma passada. Espero que não seja baseado em uma historia de seu meio, se for minhas condolências.
Como sempre um trabalho um tanto impecável. Nenhum erro que eu possa apontar.

Espero por um outro trabalho seu, como de costume.

Uma abraço,
Malka.
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Mensagempor Dahak em 06 Abr 2008, 21:30

Malkinha, graças a Deus não tem relação pessoal alguma. Totalmente isento disso =)

Muito obrigado pelos elogios.
Abraço!

Dahak Out
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Mensagempor Ermel em 07 Abr 2008, 07:33

Achei trágico de mais. Esse final, sempre me da um aperto no coração. Fico imaginando a tristeza imensuravel e inimaginavel que levou a mãe a cometer o suicidio ali, sobre o filho. É uma cena que monto de vários modo na minha cabeça que começa a soar interessante.

Mas eu gostei, ao contrario do que você disse, que não era pra se gostar, ficou muito, mas muito bom!

Abração!
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Mensagempor Aleχ em 14 Abr 2008, 00:06

Curti o conto, como disse pelo msn.

Quanto à escrita, está excelente. Um texto bem escrito, com ótimo uso de palavras, uma estrutura bem amigável, a ótima forma como ele é narrado. Nada de novidade, né? :roll:

E a história do conto achei ótima, muito tocante. Me lembrou a infância e juventude de Jack Torrance, como comentei no msn, do romance O Iluminado, de Stephen King. E o pior é que os acontecimentos do conto são sim a realidade de várias pessoas. Aliás, parabéns a você por conseguir entender a cabeça do ser humano nessas circunstâncias. Ou, se "entender" não é a melhor palavra, parabéns por conseguir "transcrever, com fidelidade, para um conto".

P.S.: Que coisa mais Luis colocar "desligamento do sistema nervoso central" no meio do conto. Viu só? Precisou de 2 vulgo's para explicar o que tinha acontecido. :bwaha:

P.S.²: Gostei do título. Mesmo. Apesar de só ter entendido ele após perguntar para você no msn.
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And it always, at the end, came round to the same place again."
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