Errar duas, três ou mais vezes.
Era um garoto ordinário, de um nome qualquer, não menos especial que o seu ou o meu. Era um adolescente dessas cidades grandes, inserido em um psicodelismo sem fim de cores, texturas e acontecimentos. Ou talvez deveria ser assim.
Sua mãe trabalhava fora, era empregada doméstica. Alguém precisava sustentar a casa. Aliás, eu, narrador, gostaria de poder me referir àquele local como um lar para aquela família, mas simplesmente não posso.
A mãe, mulher digna e esforçada, criada e educada dentro da melhor concepção tradicionalista, sofria agressões de seu marido, um alcoólatra deliberado. Era incrível a quantidade de maquiagem que ela tinha de usar para disfarçar os hematomas. Seus patrões eram muito bem de vida, muito instruídos e altruístas. Por vezes desconfiaram do sofrimento de sua empregada, mas a mesma refutava veementemente.
Seu filho, meu amigo, o garoto que abordei no início, acordava cedo para ir ao colégio público, andava meia hora descalço para não gastar a sola de seu único tênis até chegar à estação de trem mais próxima. E fazia isso todos os dias, duas vezes por dia, ida e volta.
Ele não tinha dormia muito bem, pegava no sono muito tarde, sempre receando por sua mãe que tanto sofria nas mãos de seu pai. Era complicado dormir enquanto um choro calado e oprimido, baixinho e agonizante era ouvido quase todas as noites e noite após noite.
Subitamente, em um dia não muito belo, o pior aconteceu: seu pai falecera. Foi diagnosticado com o desligamento do sistema nervoso central por excesso de álcool, vulgo overdose, vulgo um porre maior do que poderia suportar.
Os vizinhos, apesar de abatidos, comemoravam em silêncio, afinal, não teriam mais de lidar com os gritos ensandecidos de um imbecil que chegava embriagado em casa.
Sua mãe seria a pessoa com mais motivos para comemorar, mas, no entanto, era a pessoa mais desesperada, inconsolável e sem chão que estava no funeral. Nem mesmo a mãe do falecido, avó do meu amigo, estava tão cabisbaixa.
Os meses passaram, a dor passou para todos, exceto para aquela esposa, para a mãe de você sabe quem.
Seu filho, meu amigo, o garoto que abordei lá no comecinho, compunha uma banda outros dois amigos, além de mim. Ele era nosso vocalista. Cantava muito.
Dávamos muito duro com a banda, queríamos que todos pudessem ouvir nosso som. Já tínhamos nossas próprias canções, nossos próprios arranjos e tudo mais. Foi em uma época bem chuvosa que conseguimos nossos primeiros minutos de fama: faríamos nossa primeira apresentação significativa em um barzinho local.
Mas também foi naquela época de chuva que a casa desse meu amigo se mostrou frágil. As tábuas que compunham o teto, o chão e as paredes não interceptavam toda a água e, ainda que conseguissem, ficavam deveras umedecidas e inóspitas. E foi naquela época de chuva que meu amigo foi parar no hospital, diagnosticado com pneumonia.
Foi um choque. Foi um grande choque. Seu quadro era grave porque a doença já estava instalada havia muito tempo, mas com medo de levar ainda mais preocupações para sua mãe, nunca se disse indisposto ou reclamou de sua saúde. Infelizmente não tardou até que ele desenvolvesse outras complicações.
Meus amigos e eu o visitávamos sempre que podíamos. Ele estava abatido e talvez nós fossemos os únicos que iam vê-lo além de sua mãe.
Certa vez resolvemos bolar uma surpresa, estávamos compondo uma música em homenagem a ele e a sua mãe. Levou alguns dias, foi bastante trabalhoso, mas sabíamos que valeria a pena, sabíamos que era o mínimo que poderíamos fazer.
Quando finalmente terminamos, fomos muito animados para o hospital. Lembro-me como se fosse hoje, era uma tarde fresquinha, sem sinal de chuva, aliás, sem sinal de nuvens.
Ao subirmos as escadas, notamos uma certa movimentação estranha. Duas macas saíram do quarto em que ele estava.
A estranheza foi generalizada e logo fomos pedir informações.
Uma enfermeira hesitou e, depois de muito insistirmos, proferiu: noite passada ele teve uma parada respiratória e entrou em coma.
O choque foi indescritível e sorrateiro. O choro foi instantâneo. Aquele papel em minha mão, com uma música que contemplava a vida, que outrora parecia tão boa idéia, agora me soava tão obsoleto. Eu me sentia tão estúpido.
A enfermeira também estava em situação desconfortável e parecia querer se expressar, parecia querer escolher as palavras, mas não sabia onde as encontrar.
Acabei me esquecendo da segunda maca, mas o mesmo não aconteceu com um amigo meu que perguntou sobre o ocorrido. A resposta, no entanto, não poderia ter sido mais inusitada: a mãe do nosso amigo havia cometido suicídio e morreu ali, debruçada sobre seu filho.