O Clube dos Solitários

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O Clube dos Solitários

Mensagempor Speranza em 19 Mar 2008, 18:29

Parte 1 de 2

Naquela época do ano das manhãs cinzentas e nubladas na serra, temporada de imensas nuvens de algodão se preparando para se dissolver em fofos flocos de neve, um grupo falante e variado se reunia novamente dentro de um aconchegante chalé de estilo montanhês. A lareira já havia sido acesa pelo homem grande e forte perto dela, o primeiro a chegar à reunião, dono de barba e cabelos vermelhos espessos, braços fortes como toras. Estaria certo qualquer um que se rendesse à primeiras impressões e supusesse que ele era um lenhador.

Ao seu redor, outras pessoas se congregavam e interagiam. Um casal, na casa dos trinta, bebendo de canecas fumegantes, conversava íntimo próximo ao passa-pratos que ligava a cozinha à sala. Uma senhora se encontrava sentada em um aconchegante sofá vermelho, entrelaçando feliz agulhas de tricô dentro de uma meia em potencial. Um homem de cabelos desarrumados, sentado ao seu lado, mostrava a outras pessoas, orgulhoso, um livro que estava em sua mão.

Um dos homens, vestido como um andarilho, roupas puídas e uma toca de lã, chamou a atenção de todos, fazendo um chiado de silêncio. Apontou para cima, para o topo da grande e sólida escada de madeira:

- Ele chegou!

Um senhor, físico robusto, apareceu no alto da escada e olhou para as pessoas abaixo dele com felicidade. Vestia um terno preto, uma gravata, e trazia uma pasta preta de tipo executivo. Desceu orgulhoso, degrau por degrau, e o interior do chalé ficou em silêncio, com todos os olhos voltados para ele.

- Mil perdões pela demora. Vamos começar?

Pousou sua pasta sobre a mesa de jantar de madeira escura que se encontrava na sala, pegando então uma pêra de uma cesta decorativa de frutas de plástico. As pessoas de dentro do chalé, ainda sem nada dizer, foram se removendo furtivamente de seus lugares e cercando a mesa.

- Afiliados, damos início assim a nossa anual reunião do Clube dos Solitários. Sejam todos bem vindos mais uma vez ao meu chalé. Nosso clube foi fundado há muito tempo atrás quando percebi que, ao redor do mundo, existiam outros como eu, escondidos em seus porões escuros, apartamentos fechados, residências longínquas e tantos outros adoráveis lugares. Pessoas que, como eu, em seu passado, encontraram motivos para se afastar do mundo, motivos para desejarem distância de toda a humanidade. Este chalé, uma vez por ano, se torna o refúgio onde nós, ermitões, podemos nos encontrar para debater os aspectos da nossa vida e da nossa classe. Como evitar o contato com outras pessoas, como se desvencilhar de todos os outros... enfim, como viver sem ninguém.

Ele tomou fôlego, e continuou, fazendo a piada que sempre fazia:

- Vejo que alguns dos nossos usuais companheiros não se encontram aqui hoje. Não tem importância! Não precisamos deles!

Dessa vez, entretanto, as risadas ao redor da mesa foram meramente cerimoniais. Ele se recompôs e prosseguiu:

- Eu, o presidente do nosso clube, com muito orgulho anuncio que desde a última reunião, não tenho saído desta cabana para absolutamente nada! Eu contratei um morador da cidade mais próxima para me trazer mantimentos ao longo do ano. Ele vem, deixa as coisas em frente a minha porta terceiro dia do mês, toca a campainha e depois se vai. É uma beleza! Eu mal me lembro de seu rosto! - Ele olhava para os integrantes do grupo com um olhar maravilhado, porém o grupo não correspondia, todos com uma expressão estranha nos rostos. Tendo percebido isso, o dono da casa interagiu - Vocês estão estranhamente calados hoje, sócios. Vamos, - ele se virou para a senhora ao seu lado – conte-me, como foi o seu ano? Reclusão total?

- Bem... - a senhora começou a se justificar, com um certo tom de vergonha em sua voz – no início desse ano eu adoeci, tive uma crise de bronquite e precisei ser hospitalizada... - ela se retificou rapidamente - mas foram só duas semanas!

O grupo todo, fragilizado pela situação da senhora, olhou para ela com compaixão. O presidente do grupo, contudo, parecia insatisfeito, encarou-a seriamente, fungou com desdém e se virou para as outras pessoas no chalé:

- Mais alguém?
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Mensagempor Speranza em 22 Mar 2008, 10:26

Parte 2 de 2

As pessoas se olharam como se aquela fosse uma proposta terrível, a qual ninguém quisesse se voluntariar a fazer. Parecia que eles prefeririam pular de cabeça do pico da montanha onde estavam a dizer uma palavra. O silêncio foi se alongando, se alongando, de forma insuportável, até que enfim o rapaz que se sentava com um livro na mão deu um passo metafórico a frente, pigarreou baixo e falou:

- Eu fiquei todo o ano passado dentro do meu apartamento, escrevendo o meu romance.

O presidente socou o tampo da mesa com a mão em regojizo e olhou nos olhos de cada um dos membros, como se estivesse através desses olhares e asserções com a cabeça transmitindo um pouco da alegria que sentia.

- No início desse ano, – continuou o rapaz, perdendo a timidez – eu fui premiado. Já recebi 63 cartas me elogiando pelo livro!

- Eu te vi na televisão! - deixou escapar a senhora, e logo enrubesceu percebendo que tinha cometido uma gafe.

O rosto do presidente ficou vermelho. Todo esse contato dos seus sócios com outras pessoas o deixava triste e ao mesmo tempo com raiva. Um garoto, tão novo, com tamanho potencial para ser um exemplar ermitão e viver uma vida de modelo sociofóbico, desperdiçando sua vida dessa forma. Ele não podia acreditar.

- Bom... - ele se recompunha, esfregando a mão em sua careca, desbaratando os fiapos de cabelo resistentes no processo – eu assumo que os outros de vocês tenham tido uma vida mais solitária. Estou errado?

O casal que antes conversava próximo ao passa-pratos se entreolhou e cochichou baixinho entre si. O dono do chalé, se virando para eles, exclamou estupefato:

- Vocês estão – ele engasgou um pouco, como se não conseguisse pronunciar – de mãos dadas?!

Os dois ergueram as mãos acima da mesa, para que todos pudessem ver, esboçando sorrisos amarelos e sem graça. A senhora não conseguiu conter sua satisfação, erguendo suas bochechas enrugadas sutilmente num risinho. O gigante lenhador colocou suas mãos em forma de torno industrial nos ombros dos dois de leve, como para lhes congratular.

- Nós nos conhecemos aqui na reunião do ano passado, - disse a mulher do casal - e passamos a namorar desde então. Hoje é nosso primeiro aniversário de namoro.

Como se uma lufada de vento das montanhas escancarasse a janela e refrescasse os presentes, todos ficaram contentes e falantes com a novidade. Exceto, é claro, o presidente do clube. Esse, agora, já estava suando frio, limpando os óculos com um lenço, desnorteado. O lenhador abriu a bocarra banguela, retumbando num vozeirão grave, em tom confessional:

- Eu adotei um urso a dois anos atrás.

Dessa vez, a senhora não se aguentou e gargalhou com gosto. O jovem escritor abaixou a cabeça, escondendo o riso baixinho enquanto olhava para os próprios pés. O andarilho tomou coragem:

- Eu sou casado e tenho um filho.

Um por um, os integrantes do Clube dos Solitários foram contando sobre as pessoas das suas vidas e sobre suas relações com elas. Todos eles tinham uma família, porém por motivos tão diferentes quanto as pessoas que estavam ali, haviam se afastado delas. A senhora tinha um amontoado de filhos, netos, porém vivia solitária num asilo da região. O andarilho caminhava para ficar longe da sua mulher, com quem mal trocava uma palavra havia dez anos, e seu filho já havia saído de casa para ser artista de circo. O lenhador tinha acabado de sair da cadeia depois de quinze anos preso e simplesmente não tinha mais ninguém com quem contar. O jovem escritor, que tinha sido abandonado por seus pais graças a profissão que escolheu seguir, mantinha uma rede de relacionamentos por correspondência que seria descrita como, na mais adequada das palavras, promíscua.

Com os ouvidos entupidos com toda aquela euforia social contagiosa, o presidente saiu do seu torpor quando veio uma mulher com uma bandeja e um bule de chá fumegante. Eles estão se conhecendo, estão se... socializando! Desastre completo! Eu preciso tomar medidas severas, pelo bem do nosso clube:

- Vocês estão todos expulsos! Vocês são uma vergonha para todos ermitões ao redor do mundo, especialmente para mim! Saiam da minha casa!

Eles saíram. Saíram sorridentes, fazendo planos de como contatar seus familiares, de recomeçar velhas amizades, de reaquecer antigos amores e de como manter contato uns com os outros. Se despediram no gramado, enquanto entravam em seus carros ou, no caso do andarilho, se preparavam para seguir a pé. Na porta do chalé, o presidente, e agora único membro, do Clube dos Solitários esperneava e esbravejava hidrofobicamente algo como “Saiam da minha propriedade!”.

***

Algum tempo depois que todos já haviam ido embora, o dono do casebre parou de gritar e se escorou na porta de entrada, ofegante. Já era um senhor, e toda aquela cena havia o deixado exausto. Sentando-se nos degraus de madeira da entrada da casa, olhou para sua mão e viu que ainda segurava, firme, a pêra de plástico, que após o ataque nervoso havia ficado amassada. Ficou ali, sozinho, olhando para a fruta artificial enquanto recobrava o fôlego.
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Mensagempor Lady Draconnasti em 22 Mar 2008, 12:08

O clube dos solitários não tão solitários assim.

Speranza, como você consegue escrever contos assim?
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Mensagempor Speranza em 24 Mar 2008, 20:09

:b Assim legais? Ah, não sei... sai naturalmente! :b

Agora é sério, assim como? Ficou legal ou ainda tem alguma coisa na qual eu tenha que trabalhar?
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Mensagempor Lady Draconnasti em 24 Mar 2008, 21:01

Assim legais, fluídos e muito bons.
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Mensagempor Speranza em 24 Mar 2008, 21:12

:vermelho2: :laugh: Muito obrigado, Lady!

A fluídez é algo que eu venho trabalhando apenas recentemente. Antigamente, eu costumava escrever com um sentimento ou cena bem específico em mente, e limava e polia demais, escrevia num processo bem lento e escolhendo com cuidado obssessivo as palavras. Ultimamente, graças a um livro que eu li e conselhos de pessoas queridas, tenho escrito de forma mais... sincera? Talvez sim. :)
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Mensagempor Elara em 25 Mar 2008, 14:48

Olá Speranza,

Realmente bem fluido. O conto, pelo que vejo traz uma certa "moral", do tipo o ser humano não pode viver sem se socializar.

Bem interessante. Parabéns!

Chero!
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Mensagempor Speranza em 05 Abr 2008, 01:06

Demorei pra responder!

Muito obrigado pelo comentário, Elara! Mais uma vez, saber que o conto ficou fluido é realmente mais do que eu poderia pedir. Se esse conto possui uma moral, essa moral com certeza é a que você citou: nenhum homem é uma ilha. :aham:

Mais uma vez, obrigado!
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