A Flecha

Mostre seus textos, troque idéias e opiniões sobre contos.

Moderadores: Léderon, Moderadores

A Flecha

Mensagempor Doktor Faustus em 05 Mar 2008, 16:44

Um conto antigo, que eu acho que é um dos que eu mais gostei. Ia reescrevê-lo, alterando algumas coisas - especialmente o final, mas estou com outros projetos de contos e acabei deixando de lado.
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

A Flecha

Uma flecha é disparada.

Em sua trajetória retilínea, atravessa velozmente o campo de batalha, onde, nos dois flancos, os mortos amontoam-se e o sangue forma pequenos riachos e poças dispersas, tornando lama a terra antes seca, na qual os combates foram iniciados. A grama, abundante em longínquas eras, já não cresce mais nesses campos inférteis, adubados pelas cinzas de soldados vencidos e pisados por tropas e mais tropas durante dezenas, se não centenas, de anos.

O soar das trombetas, o clangor dos tambores, os brados de guerra ritmam a batalha; outros sons fazem com que o caos prolifere: gritos de dor, o choque dos metais, relinchos desesperados, urros de fúria, ressoando em todas as direções. Bandeiras verdes e bandeiras azuis agitam-se no ar, algumas apresentando manchas rubras irregulares em seu tecido. Outras jazem no chão, irreconhecíveis.

Em uma das bandeiras caídas, uma cabeça separada de seu corpo olha, com uma expressão de terror, a batalha que parece longe de estar perto de seu fim. Seus olhos apavorados parecem procurar desesperadamente uma orelha que a cabeça perdera, provavelmente caída na terra e engolida pelo lamaçal de sangue. Se pudesse mudar o eixo de sua visão, veria a seu lado, a poucos metros de onde jazia, uma mão segurando uma espada ensangüentada, possivelmente a mesma que separara há pouco seu corpo de si. Um pouco mais distante, encontraria seu próprio corpo caído, ossos esmagados pelos pesados pés que lhe pisavam a todo instante, procurando abrir caminho entre os mortos na batalha. Se olhasse para cima, veria a flecha, em posição privilegiada, observando, enquanto cortava o ar, tudo a seu redor. A flecha podia ver cavalo e cavaleiro queimando, procurando desesperados (e em vão) algo para apagar as chamas. Um lago, talvez, se este não ficasse a quilômetros de distância. Ou mesmo a terra. Mas seria a morte deitar-se próximo a tantos inimigos. Um último golpe de espada e seu corpo tostado passou a fazer companhia à cabeça decepada, que continuava a procurar a orelha.

O cavaleiro, porém, teve sorte melhor que a cabeça. De costas para o chão, olhando para cima, poderia, se vivesse, ver muitas flechas cruzando o campo de morte em direção aos inimigos. Mas estas passavam rápido. A última visão que teria, antes de ser pisoteado por dezenas de cavalos e soldados, seria o bando de urubus que formavam uma nuvem negra no céu azul.

Um velho lhe faria companhia segundos depois. Sem uma perna e com a mandíbula deslocada. Olhava para o inferno, como a criança que caíra pouco antes, uma lança atravessada na garganta, seu corpo afundando na lama, o rosto sujo de sangue e lágrimas de desesperança. Suas fezes, escorrendo pela leve armadura improvisada, dada aos camponeses, juntavam-se às dos outros mortos e formavam um enorme esgoto a céu abeto, de sangue e dejetos. A flecha, porém, não sente cheiros.

A flecha, enfim, atingira seu alvo. Um camponês, a julgar por sua indumentária de guerra. Se fosse clarividente, a flecha poderia ver, longe dali, uma pequena casa. Nela, uma jovem mulher e três crianças esperavam. Olhavam, tristes, a estrada de terra que levava à batalha aquele que esperavam. Esperavam, e permaneceriam esperando. Porque a flecha é insensível. Não vê, não cheira, não sente.

Outra flecha é disparada
"Não, não são plantas, apenas fingem sê-lo. Mas nem por isso vocês devem menosprezá-las. Pois é precisamente a circunstância de elas pretenderem sê-lo e darem o melhor de si nesse sentido o que as torna merecedoras de todo o nosso apreço."
Jonathan Leverkühn, em Doutor Fausto, de Thomas Mann.
Avatar do usuário
Doktor Faustus
 
Mensagens: 117
Registrado em: 21 Fev 2008, 10:04
Localização: São Paulo

A Flecha

Mensagempor Elara em 05 Mar 2008, 16:51

Excelente conto.

Lembrou-me uma cena d'O Gladiador.

Chero!
This is NOT Sparta!
Avatar do usuário
Elara
 
Mensagens: 668
Registrado em: 05 Set 2007, 12:04
Localização: João Pessoa

A Flecha

Mensagempor Corvo da Tempestade em 05 Mar 2008, 16:52

Bonito o conto...
"Se a Liberdade significa alguma coisa, será sobretudo o direito de dizer as outras pessoas o que elas não querem ouvir" - George Orwell
Avatar do usuário
Corvo da Tempestade
 
Mensagens: 2466
Registrado em: 25 Ago 2007, 19:52
Localização: Ilha do Governador
Twitter: http://twitter.com/macoaz

A Flecha

Mensagempor Gehenna em 05 Mar 2008, 19:22

Ótima repostagem. Lembro bem de quando o postou na Spell_Forever.
Conto, além de bom, excelente. :aham:
Avatar do usuário
Gehenna
 
Mensagens: 828
Registrado em: 25 Ago 2007, 01:52
Localização: Torre Sombria, no bairro de Noite Eterna, em Contonópolis

A Flecha

Mensagempor laharra em 10 Mar 2008, 22:35

Também achei muito bom quando li na outra Spell. Fiz até alguns apontamentos que nem lembro no momento. Foi muito bem conduzido. Parabéns, Doktor Faustus.
Tentando encontrar inspiração para terminar o conto abaixo:
O Som do Silêncio: Parte IV - A decisão
Reger está às vésperas de uma batalha onde decidirá seu futuro. Durante o que podem ser seus últimos momentos com a Espada e com Alyse, ele se pega pensando sobre a validade de suas aspirações. Acompanhe o conto no link a seguir:
http://www.spellrpg.com.br/forum/viewtopic.php?f=24&t=1067
Avatar do usuário
laharra
 
Mensagens: 123
Registrado em: 21 Out 2007, 18:27

A Flecha

Mensagempor Vatek em 10 Mar 2008, 22:58

Rápido e certeiro como uma flecha. É excelente (não, não estou nada inspirado para comentários...).
Avatar do usuário
Vatek
 
Mensagens: 901
Registrado em: 29 Dez 2007, 15:08


Voltar para Contos

Quem está online

Usuários navegando neste fórum: Nenhum usuário registrado e 2 visitantes

cron