Uivo na Noite, Gritos na Escuridão
A lua minguante se escondia atrás das nuvens vermelhas. Já passava da meia-noite, mas para eles, era apenas o começo. Avançavam pelas ruas desertas, à procura de caça e diversão. Bêbados, prostitutas, mendigos...
As sombras eram extensões de seus corpos fortalecidos pelo êxtase de sangue e pelas drogas. A chuva que estava por vir, o prenúncio de sua chegada. Logo encontraram a primeira vítima, um pobre garoto dormindo às portas de uma padaria. Urraram como selvagens, acordando a inocente criatura. Acuaram-na contra as grades férreas pintadas de escarlate do estabelecimento. Lançaram seus punhos sobre a carne escura e macia da criança, arrancando-lhe a vida do corpo mirrado.
Como cães famintos estavam indo e vindo, ocasionalmente açoitando sua vítima com os braços ou estocando-a com um pedaço de pau. Sorrindo e gritando em zombaria ao sofrimento alheio. Nem mesmo os demais moradores da área se atreveram a por as caras para ver o que estava acontecendo. Muito menos uma viva alma apareceu para tentar parar aquele festim violento.
Ele estava apenas observando de longe, indiferente à sorte do mais fraco, enquanto ela olhava para o relógio impacientemente. Queria ir logo para casa, jantar, tomar banho e ir dormir, mas não queria deixá-lo sozinho. Se tinha que ir pra casa, deveria pelo menos deixá-lo na segurança de seu lar, caso contrário, a mãe dele reclamaria com ela novamente.
- Viúvas histéricas... – Ela bufou, levando um cigarro à boca e acendendo-o.
- O que disse? – Perguntou o rapaz tirando o olhar do massacre e pousando os olhos verdes sobre a face dela, banhada pela escuridão.
De fato, ele não se importava com ninguém naquele lugar. Estava apenas interessado na diversão que a noite proporcionaria para ele naquela imensa selva de pedra e vidro a qual ele fora trazido.
- Nada, garotinho, eu não disse nada. – Ela respondeu rapidamente dando uma longa tragada. – Vai ficar ai apenas olhando? Eu tenho que te deixar em casa...
O rapaz voltou a olhar a cena cantarolando uma canção alegre que ouvira no rádio pela manhã. Estava gostando daquela vida. Era mais perigosa que a que tinha nas florestas que sua tribo ainda mantinha intocadas.
- Você vai permitir que eles continuem massacrando aquele filhote de rato? – Questionou ele com um sussurro.
- Ei... – Ela o chama, injuriada por ele estar ignorado seu zelo. Leva a mão até a orelha dele, decidida a arrastá-lo logo para casa e poder cumprir sua rotina tão querida. – Nós não temos nada a ver com eles. Não tem o porque nos envolvermos com...
- Eles vão acabar vendo a gente... – Murmura o rapaz, deixando um sorriso escapar.
- Essa não... – O cigarro quase foi ao chão.
Ela pôde reconhecer dois ou três como sendo seus alunos da escola. Bons alunos, por sinal. E aquilo era mau...
Ele apenas retirou as mãos dos bolsos da calça e novamente lhe dirigiu o olhar.
- E então? Acha que você ainda não tem nada a ver com isso?
- Vocês estão de brincadeira comigo... – Ela sussurra.
- São as Leis. – Ele interrompe. – Você vai querer ir contra as Leis?
- Claro que não. Até porque, eles são homens... – Ela responde rapidamente, escondendo seu desagrado em ter que ir em frente.
-... “E os homens não são nada além de reprodutores”, não, Grito da Escuridão-rhya?
Ouvir aquelas palavras vindas da boca daquele garoto lhe causou um certo desconforto. – Maldito seja você, Uivo na Noite!
A lua minguante saía detrás das nuvens vermelhas, junto com alguns respingos escarlates. Ninguém pareceu se incomodar com os gritos dos rapazes. O jovem que outrora se mostrava quieto agora sorria como uma criança ao sentir o sangue quente escorrer por entre os dedos e respingar por sua face oculta em trevas.
Sentia falta daquilo. Muita falta.
No dia seguinte, todos deram por falta dos jovens, conhecidos por nunca faltarem sem boas razões. Leonora entrara mais séria que o de costume na sala para dar início a sua aula de química orgânica. Por dentro ainda amargava o que acontecera na noite anterior. Presenciara a barbárie de seus melhores alunos. Não, fizera ainda pior.
Ela e Uivo na Noite massacraram os rapazes e deixaram os seus restos espalhados pela rua.
No quadro negro, passou um exercício aos seus alunos e sentou-se pesadamente à mesa, onde se colocou a refletir sobre o que acontecera durante a noite. Estava sentindo o peso de seu fracasso como nunca antes sentira.
Um papelzinho colorido de fichário chegara até ela, dobrado cuidadosamente. Olhou o por alguns segundos, ainda atordoada, antes de pegá-lo e desdobrá-lo.
“A senhora não está parecendo bem, professora. Aconteceu alguma coisa? Beijo. Allicia”.
Suspirou ao terminar de ler e olhou discretamente na direção de quem mandara o bilhete cuidadoso. Ela estava sentada próxima à parede, olhando-a com preocupação. Leonora sorriu de modo fraco e logo voltou a se perder em pensamentos. Seus olhos castanhos inevitavelmente cruzaram com os do último aluno da primeira fila. Os olhos verdes que ainda faiscavam com o êxtase da caçada na noite anterior.
A professora deixou que seus cabelos castanhos lhe cobrissem o rosto preocupado, mas, para ela, até mesmo eles ainda fediam a sangue.