Conto recém escrito, ainda sem nome. É um pouco pesado.
Bom, vamos a ele.
É uma sala ampla, às escuras. A luz incerta da lua penetra naquele local lentamente, como que tomando cuidado com o que pode encontrar. Há uma lareira acesa, e três figuras são iluminadas pelo trepidar das chamas. Os três são jovens, tendo o rosto congestionado pelo conteúdo de várias garrafas de alguma bebida. O maior deles, a direta, tem cabelos escuros e é magro, com um ar meio sombrio que lhe dava charme. O da esquerda era louro, mais baixo, com significativos olhos azuis, e parece o mais afetado pela bebida, ainda que seja o que menos bebeu. Ao centro, está o menor, mas de ombros mais largos, com cabelos negros e lisos, e olhos da mesma cor. Há mais bebida a seus pés, mas ele parece o mais sóbrio. É também o mais novo na aparência.
- Ah, o vinho! Possa a morte ser tão doce quanto o olvido que nos proporciona o néctar! Astuto foi Dionísio, até hoje venerado, mesmo debaixo dos pés das imagens mortas de um suposto Cristo!
- É notavelmente poético e exagerado em suas descrições, Jacinto. Mas porque celebra a morte, quanto temos toda a vida pela frente? Somos jovens!
- Porque estou mais velho do que o mundo ao completar vinte anos de idade? Que me vale, mais? Estudo o que não me dá nenhum prazer. Tenho, de fachada, um noivado com uma mulher que não amo, pois sequer desejo mulheres ao meu lado, no recesso do leito. Vejo, a cada dia, o atroz uso dos símbolos de um ser divino pelo veneno da religião. Nos governos dos homens, há apenas a podre corrupção. Onde desejo estudar o local é tão desprovido de atrativos que seus alunos e alunas são vítimas de animais em forma de homem, que os violentam. E, para coroar, moro no país que mais mata pessoas como eu, e o faz cruelmente! Não sou pessimista, Glauco, mas acho que a situação dificilmente está-me sorrindo. Melhor descer de vez ao inferno, e perguntar a Sócrates o que queria ele dizer com a Alegoria da Caverna! Que propôs ele com sua "república". E se corretamente registrou essas linhas Platão, o de ombros largos! Ao menos isso me daria algum prazer, por toda a eternidade!
- Ainda há felicidade nesse mundo, Jacinto. Ou ignora que uma mulher se realiza na maternidade, tomando o filho nos braços, depois de todo o sofrimento? Será que não há nada digno de suas alegrias?
- Sim, de fato há. Muitas são minhas alegrias. E ainda por cima, todos temos – podemos ter - a sensação de como é morrer, para que, nessa hora, não sejamos tolos e aceitemos o grande vôo Tanatológico, o clímax da nossa existência! Ah morte, sim, mais esse brinde! E que seja breve e indolor, qual a taça de bom tinto!
- Não há nada depois desse mundo, Jacinto. Porque não o vive? Porque não o muda?
- E não o vivo? Temos o vinho, que nos acompanha a cada dia! Temos o dinheiro, com o qual pago amantes, que dizem amar-me, e que me usam como receptáculo de prazeres! Tenho conhecimento, invejável biblioteca! Tenho vocês dois, tolos que me seguem! E, além disso, como pode haver nada? É tão avançado o seu raciocínio que pode conceber o nada? Pode me oferecer um conceito? Sublime e ousado que é, Hípias, meu primo. E para que mudar? Será mais uma taça amarga que terei de carregar, para que, a cada dia, eu me torne ainda mais igual aos que odeio? Paz! Alguma paz! Todos os governantes, no fim, são os mesmos. Medíocre e infeliz humanidade, que renegou tudo o que fez de bom! Chaga sobre uma terra moribunda!
- É grande seu domínio da ironia. Quisera a usasse contra os que, de fato, o merecem, os que o desagradam, e não contra os que não tem culpa, e que você engloba em seus discursos.
- E grande a sua tolice! Tão pedante e ambicioso quanto um bispo, em seu ateísmo! Tão preso ao que dizem seus mestres, que matou sua notável criatividade! Beba mais, e me poupe de seus choramingues. Hoje sou eu o rei da noite. Celebremos o fim, como previsto pelos doces bárbaros nórdicos, em grande estilo. Que nos queime a luz do incêndio do Ragnarok, e a vocês, meus amigos. Sim, não se poupe, Glauco. Só se é jovem uma vez, e também você, descrente e louro Hípias. Temos ainda muitas garrafas, e o azeite perfumado que temos em nossos corpos impede que o cheiro do álcool nos incomode. Bebam e celebrem, enquanto nosso mundo morre. Guerras da economia, loucos como Bush e Chavéz, religiões sectárias! Que morra a filosofia, que morra a história, que morra o humanismo! E bem vindas ás trevas, a quem saudamos com fogo, para que mais rápido possa se extinguir! Vitória de tudo que é indigno do homem, e que se faça animal o ser humano!
E Jacinto se levantou, jogando um tição bem na mesa das bebidas, molhada de vinho tinto. Rapidamente ele se incendiou, pegando parte das roupas de Glauco e de Hípias, que gritaram. Mas havia pouco a fazer, pois logo eles mesmos eram tochas humanas. Era um tributo a Febo, tochas feitas do fogo de seres humanos, os amantes que Jacinto abraçou e com os quais compartilhou a morte, porque era generoso demais para ficar sozinho nas trevas. Que sua mente moribunda fosse a última luz do mundo que se extinguia, e que, depois disso, ele acabasse.
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Seth