Esse conto é antigo, já foi postado no meu blog e não me lembro se foi postado na antiga Spell. De todo modo, é um texto bastante metafórico.
Chero!
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Livre eternamente
Estávamos no lugar onde o horizonte facilmente poderia ser percebido como uma linha. Era amanhecer e os primeiros raios de sol timidamente tomavam espaço na linha traçada ao longe. Naquele lugar até mesmo o pensamento metafísico se transcendia. Ali apenas a brisa era sentida tocando nossas faces. Era longe não o lugar físico, mas o lugar onde estávamos, além de qualquer lugar descrito pelo homem. E mesmo assim ali continuávamos, corpos físicos inertes no vazio silencioso de nossas mentes. Ele começa o diálogo:
— Por que?
Surpreendo-me com repentina pergunta, mas como de hábito tento elaborar uma resposta audível suficientemente para aquele momento:
— Acho que nenhum deles sabe o valor de uma conquista. É, eles não sabem, eles não devem saber...
O silêncio mais uma vez paira, enquanto meus cabelos serpenteiam com a brisa. Ele continua com o olhar parado, como se tentasse enxergar além da linha ilusória. Eu também tento olhar além, mas para mim era difícil manter o olhar concentrado e linear. Ele retoma:
— E de que valem as conquistas?
Tento não desviar o olhar enquanto respondo:
— Elas estão presentes em nossas vidas. Estamos sempre tentando conquistar algo. Alguns saem vitoriosos, outros não.
Ele parecia não se importar com o que eu dizia e continuou:
— E daí? Há tantos que se esforçam para que outros vençam... Vale se esforçar por quem não merece e não vê o seu esforço?
Eu olho para as nuvens acinzentadas misturando-se ao amarelado trazido pelo sol. Olho aquela aquarela matutina bicolor. Observo as nuances de cada raio penetrando nuvens num momento eterno. Respondo:
— Não, não vale. Mas como saber quem merece seu esforço?
Ele abre os braços como quem quer receber o vento num abraço infindo. Estático nesta posição permanece por alguns instantes, olhando para cima, para as nuvens acima do céu florescendo luminosidade. Por fim, fecha os braços novamente e suspira:
— Tem razão. Mas eu cansei. Por que afinal de contas, existem mais aqueles que inventam intrigas do que aqueles que trazem boas notícias?
Meus pensamentos divagaram por alguns minutos como que para encontrar um argumento. Atravessei as camadas de minhas idéias sem muito encontrar, procurei por algo plausível para falar, mas tudo parecia inútil naquele momento. Contentei-me em dizer:
— É, se todos soubessem o mal que uma única palavra pode causar quando utilizada na hora errada... Mas eles não sabem, eles não devem saber...
— Deve existir pessoas conscientes.
— Sim, mas são poucas, como eu e você.
— Um dia quero conhecer alguém assim...
— Mudou sua idéia?
— Não.
— E como pretende fazê-lo?
— Não sei. Deve haver algum modo. As pessoas encontram modos de mentir, ser desonestas, inescrupulosas, arrogantes... E eu não posso conhecer alguém consciente?
— Arranjaremos isso...
— E toda essa mediocridade? Societá? Francamente!
Eu começava a ficar impaciente, mas preferi manter a cordialidade e continuar o diálogo da forma mais gentil que poderia parecer-lhe. Balancei a cabeça com veemência e, olhando para o lado oposto ao dele, respondi:
— Medíocres todos eles são. Não podemos culpá-los por isso. Eles não sabem, eles não devem saber...
E paramos mais uma vez de dialogar por algumas horas. Por minha cabeça passavam muitas coisas além das nuvens. Mistérios da vida, mistérios da identidade, mistérios dele que não tinham solução. O sol já ia alto e esquentava nossa tez quando repentinamente ele virou-se e olhando nos meus olhos, disse:
— Eles não sabem, eles não devem saber...
E dizendo isso foi livre. Eternamente.
Eu recolhi-me, voltando aos meus infelizes afazeres. Não quis ficar para observar o restante.
Afinal, era uma longa queda do 18º andar.
(Elara Leite)