por Lady Draconnasti em 27 Ago 2007, 20:44
Conto postado pelo Lobo Branco
O Acordo
por Breno “Lobo Branco” Brito
- Não consigo mais contar às noites que desejei não chegar o amanhã. Perdidos os sonhos e o amor, molhada pela chuva, estou chorando... Mas ninguém me ouve... – Ela disse num sussurro ao qual ninguém conseguiu ouvir. – Por mais que grite e chore lágrimas negras, eu sei que ele não chegará para mim.
Naoe Kanami escondeu o rosto com as duas mãos alvas e frias, manchadas de sangue vermelho e quente, ao ouvir os passos pesados se aproximarem de seu quarto. Medo e vergonha se misturavam enquanto as cores do aposento eram roubadas, restando apenas o desagradável cinza. O amanhecer se aproximava, trazendo consigo a dor daquele dia que nunca terminará para a jovem. O sino novamente ressoava.
Estava condenada a reviver aquilo a cada dia, e condenada a compartilhar seu destino com qualquer um que puser seus pés na casa dos Naoe.
Lentamente, com um mórbido rangido, ela pode ver a porta se abrir, revelando a macabra silhueta de um velho de olhos amarelados cheios de lasciva. Sua pele rachada, lábios finos e tortos, abertos em um sorriso, revelando dentes mal formados.
A jovem se encolheu contra a parede, não mais sentia os punhos, e sorria ao imaginar que não mais iria sentir o toque do velho que avançava a curtos passos em sua direção.
As mãos ressecadas do velho, tocaram os punhos sangrentos de Naoe, os apertando, a puxando para si, enquanto ele sentava na mesma cama que a garota usava antigamente para ter bons sonhos.
- Jovem tola. Sabe que isso não a fará fugir do seu destino. – disse ele friamente, enquanto lambia as lagrimas da jovem que desfalecia pela perda de sangue.
(...)
Outro dia se iniciava, mais uma vez a srta. Kanami despertava com o soar de seu celular. Não mais havia o entusiasmo das novidades que o dia traria, ou a esperança de que seus pais voltassem de viagem e a salvassem das ações de seu avô. Apenas abriu os olhos, os deixando transbordar de lagrimas pela dor, que nem a morte podia salvá-la da situação de repetir o mesmo dia eternamente junto às depravações que o velho fazia a ela.
Tentou juntar forças para erguer-se, podia matá-lo, como já tinha tentado antes, mas sempre se mostrou inútil. De alguma forma ele sabia, e no próximo dia, ele a trataria pior e garantiria que ela lamentasse por isso.
A mesma dor de sempre, o mesmo toque gelado de mãos ávidas de vida, em busca de um prazer bizarro.
Sentou-se, não conseguindo conter um grito ao ver a criatura na janela. Viu o reflexo de um homem de cócoras, esquálido, com braços e pernas longas. Mãos esqueléticas, fechadas sobre um báculo, pálidas como a morte. Rosto fino, com grandes olhos vazios, lábios que se estendiam de orelha a orelha. Tinha pintado no rosto um sol e uma lua, o dividindo ao meio. E era assim que se vestia.
A metade direita, tinha detalhes como chamas, de um dourado vivo, e a esquerda parecia apenas um colante prateado, sem vida. Cabelos negros e quebradiços, caiam-lhe pela face, lhe dando um ar de louco.
Por um breve momento, ela pode sentir o frio dos olhos vazios da criatura caírem sobre seu corpo, mas o abrir repentino da porta o fez sumir, a deixando mais uma vez sozinha com o velho.
- Quão tola é você, minha netinha querida. Não há como fugir, não há como buscar ajuda. Já deveria saber que o que está feito, o que eu fiz por nosso amor, não pode ser vencido pela morte ou por qualquer coisa.. – disse o velho, se sentando sobre a cama, estendendo a mão até a perna da jovem, que se encolhia ao toque do mesmo.
Demorou em ele sair do quarto, a deixando em prantos no chão, limpando o sangue de seus lábios partidos.
(...)
Humilhada, ferida, envergonhada, Naoe se escondia com o lençol, vendo o velho sumindo no corredor à frente, consertando as puídas calças.
- Cadê você? – sussurrou em meio a lagrimas para a janela. – Seja quem for, me tire daqui! – gritou ao nada, não obtendo resposta.
Arrastou-se até o banheiro, se levantando com o apoio da pia. Iria cortar mais uma vez os pulsos. Faria isso todas às vezes ao acordar. Não poderia mais suportar aquela situação.
Seu corpo dolorido, suas pernas tremendo. Mal conseguia ficar de pé, ou se encarar no espelho. Com terror viu a criatura no reflexo, atrás dela.
Ele sorria, um largo sorriso. Seus dentes pontudos e serrilhados como os de um tubarão, seus negros fios de cabelo tampando seus olhos vazios.
A jovem sentiu falta de ar, e não mais sentia o chão – como se afundasse no mais frio e profundo lago. Logo fora tomada pela escuridão.
Acordou horas depois, deitada no chão gelado do banheiro. No teto, novamente de cócoras, estava a criatura a observá-la. Mantinha o sorriso nos finos e tortos lábios.
Naoe piscou varias vez, imaginou-se louca. Depois, por nervosismo, sorriu de volta a criatura, que ficou de pé, revelando ter mais de três metros de altura. Ele girou o seu báculo, o deixando de cabeça para baixo em relação a ele.
O equilibrou no chão gelado do banheiro, depois estendendo seus longos braços, tocando suas esquálidas mãos no chão, como se plantasse bananeira. Com um arcar de corpo, ele levou seus pés até o chão, como se fizesse uma ponte.
Indo contra as leis da física, ele pôs de pé. Do alto de seus três metros, pareceu encarar a jovem Naoe, que o observava boquiaberta.
Girou seu báculo, fazendo o cabelo da jovem balançar levemente. Apoiou sobre o ombro, o arrastando na parede suja do banheiro. Estendeu seu rosto até próximo do rosto da jovem, o inclinando levemente, como um animal selvagem que analisa o desconhecido.
Estendeu mais o sorriso sinistro, colocando a língua fina, comprida e negra para fora, se aproximando do lábio ferido da jovem.
Naoe fechou os olhos com força, sentindo o frio toque nos lábios. O cheiro acre da saliva da criatura tomou suas narinas, a fazendo recuar, tocando suas costas nuas contra a pia.
- Acre sangue, doce dor. Dela me atraíste, luxuoso farol cintilante. Darei-te os céus, ficarei com os Sonhos. – disse com a voz aveludada, soando no intimo do ser da jovem oriental. Soava como se cantada, rítmica, ninando os ouvidos.
Naoe tremeu ao ouvi-la. Abriu os olhos, vendo a criatura ainda curvada, mantendo seu rosto próximo ao dela. Ele apertava o báculo, com uma mão, enquanto gesticulava com a outra, tentando encantar a jovem com movimentos lentos no mesmo ritmo de suas palavras.
- Quem é você? – gaguejou Naoe, se prensando contra a pia.
A criatura girou o corpo, sem tirar o rosto da direção da face da jovem. Parecia que seus ossos, se é que ossos tinha, não seguiam as mesma limitações dos outros seres. A olhava agora com a face de cabeça para baixo, com a coluna arqueada em um arco torcido. As mãos juntas atrás do corpo, apoiadas no báculo, que parecia ter em alto relevo um quadro esculpido revelando um picadeiro circense, com um maestro, palhaços, leão e marabalistas, porém, todos eram apenas esqueletos.
- O mais faminto dos artistas. Devorador daquilo que sustenta os poetas. Herói e vilão dos presos a sombras. Nomes não serão ditos, poder não será dado. Alcunhas tenho o bastante para encher mil tomos e ainda faltaria. Quem sou não interessa, apenas sou Circus. – cantarolou o sombrio ser, abrindo mais seu sorriso, revelando melhor seus dentes pontiagudos.
Ela continuou o encarando, encantada pela sua voz, hipnotizada pela sua indumentária estranha, assustada pela sua face cadavérica.
- O que você quer? – sussurrou a jovem, temendo a resposta da criatura.
Circus, fechou sua bocarra. Seu corpo girou, o deixando mais uma vez ereto, sem contorções de seu dorso. Tocou a parede, primeira uma mão, depois um pé, sendo seguido do outro. Com passos largos, estava mais uma vez no teto, de cabeça para baixo, tendo sua face virada para a jovem.
- Anseio por muito. Do singelo dente-de-leão ao cósmico nascer de uma estrela. Assim como quem sou não estas em questão, também a ninguém interessa o que de todo quero. O Guaxinim cantou teu nome, teus desejos têm poder aqui, eles serão saciados no seio que irei oferecer. – disse, voltando a cabeça em direção a porta.
Naoe olhou na mesma direção que ele, vendo o seu avô surgindo no quarto, procurando por ela com olhos obsessivos.
Ela se encontrou sozinha mais uma vez, e logo estaria com o velho a desfrutar de seu belo corpo. Sua dor recomeçaria, sua tortura eterna, condenada pelos anseios do ancião.
Lutou, gritou, implorou. Mais uma vez, suas suplicas de nada adiantaram, apenas conseguindo excitar mais o avô.
(...)
O dia mais uma vez iria se iniciar como muitas vezes o fizera. O toque do celular, tirando a jovem Naoe dos braços do Sonhar.
Porém, desta vez, a primeira coisa que avistou, foi Circus, agachado ao lado da cama, passando sua mão a poucos milímetros de seu corpo, como se o contornasse. Seus olhos vazios, seu rosto inclinado para o lado. Mais uma vez sorria, e tinha o macabro báculo, apoiado no ombro.
- Me abandonou ontem. – disse a jovem, prendendo a respiração, tentando evitar o toque de mais um ser repugnante.
- Nunca com vos realmente estive, nunca a realmente abandonei. – sussurrou Circus, se aproximando do ouvido da jovem.
Ela o encarou, voltando sua atenção para a porta. Por mais estranho que aquilo parecesse, a porta manteve-se fechada.
- Como consegue entrar aqui? Ninguém o pode, assim como ninguém pode sair. Caso ocorra, a pessoa estará perdida em meio ao mesmo fato por séculos a fio. – choramingou Naoe.
- Mais de uma entrada, uma sala sem portas revela. Acordos mal feitos não garantem a segurança d’Aquilo que busco. – sorriu o estranho ser.
Naoe encarou o monstro ao seu lado. Apesar de bizarro, não conseguia sentir realmente medo dele, não conseguia explicar o porque. Isso a assustava mais que o seu largo sorriso e seus dentes pontiagudos.
- Por muito tempo gritei por socorro, é isso que veio fazer aqui? – disse esperançosa, apesar de não saber por que entregava seus anseios abertamente a criatura.
- Atrás de sustento me encontro. Voar deixarei, se alimentado me encontrar. Dois dias se passaram, no Terceiro, respostas serão dadas, pois tudo deve depender de uma trindade. – disse Circus, se endireitando.
- Uma espiral será feita, no próximo dia que esse é, um sim ouvirei. – sorriu, deitando levemente a mão gelada sobre o ventre de Naoe, que tremeu ao toque.
Ela sentiu como se vermes circundassem seu umbigo, algo gelado e viscoso dançando sob a extensão das mãos de Circus.
Contorceu-se, escondendo a face sobre os olhos. Logo não sentia mais o toque de Circus, e se encontrava mais uma vez sozinha no quarto.
Olhou a região onde Circus tinha tocado, vendo ali, uma espiral disforme, marcada em negro. Passou a mão sobre ela, sentindo um sinistro calafrio percorrer sua espinha enquanto sua mão ali estava. Não sentiu nem dor, nem prazer, tomada por uma enorme apatia.
Com suavidade retirou a mão, assustada por ter perdido tanto com um mero toque.
Encarou a porta por um breve momento, erguendo-se logo depois para poder se vestir. A sensação do toque de Circus não a abandonava, a ponto de que foi surpreendida pelo abraço do velho, que procurava a jogar no chão, enquanto lambia avidamente seu pescoço e orelha.
Com surpresa Naoe viu o velho estagnar, se afastando logo em seguida. Ele começou a se debater assustado, como se tivesse algo andando sobre seu corpo. Naoe sentiu fortes tonturas, e uma dor lancinante, como se a pele de seu ventre estivesse a girar no mesmo sentido da espiral.
Ela gritou, alto o suficiente para ignorar os gritos do seu avô. Logo estava vomitando, se contorcendo ao chão.
Não demorou a estar imersa na escuridão da inconsciência.
(...)
Pela primeira vez em muito tempo, Naoe não acordara com o som de seu celular. Acordou com o som de gralhas, e o bater de asas das mesmas.
Ao abrir os olhos viu Circus parado a frente de sua cama, coberto de aves negras, como um assustador espantalho.
Ele a encarava, com o mesmo sorriso das outras vezes, parecia um corcunda agora, apoiado sobre o báculo com vigor.
- Três dias se passaram, no mesmo dia paramos. Um sim dos teus doces lábios espero. – disse jovialmente a criatura esquálida.
Ela o encarou, lembrando-se da dor do dia anterior, assim como lembrou que conseguiu ficar longe do vil toque do avô.
Suspirou profundamente, evitando olhá-lo.
- Mais dor me espera, caso eu diga sim? – indagou, de forma quase inaudível, Naoe Kanami.
- Não sentiras mais dor. Voará sem a dor física, sem a dor emocional. Não mais chorará ao ver cristais se partirem, não mais verás o desespero de ver a areia voar. Arrancarei de ti, o pesado fardo que a impede de ver a azul da liberdade. – sorriu Circus, mostrando todos os dentes, girando a cabeça.
Naoe manteve-se pensativa, olhando a criatura e as aves que empestava todo o cômodo. Viu Circus girar uma mão, mostrando a porta atrás dele, pode ouvir então os fortes passos do avô subindo as escadas.
- Estaria livre dele para sempre? – perguntou a jovem, encarando a criatura.
Circus concordou, imitando uma leve vênia de cabeça.
Naoe respirou fundo, apertando as próprias mãos, a ponto de sentir suas unhas encravar na própria carne.
- Sim. – sussurrou temerosa.
- O dito não pode ser mais desdito. Escolhas marcam nossos caminhos e pela eternidade nos assombrarão. Bem feito fez. Bem dito foi. – riu Circus, abrindo os braços, fazendo as gralhas começarem a voar pelo quarto, grasnando sinais de mau agouro.
Os passos estagnaram frente à porta, estavam prestes a retornarem, quando Circus, com um leve empurrão a abriu.
O velho gritou frente à imagem da criatura esquelética, vestida como um bufão. Recuou um passo, porém, logo estava coberto pelas gralhas, que lhe bicavam a carne frágil, a pele quebradiça se abrindo frente as navalhas que os bicos representavam.
Desesperado gritou, recuando pelo corredor, se debatendo confuso.
Circus o seguiu, subindo pela parede, se arrastando pela mesma, utilizando pés e mãos como apoio.
A porta logo se fechou, deixando Naoe sozinha mais uma vez no quarto. Logo os gritos acabaram, fazendo a casa imergir no mais profundo silêncio.
A jovem levantou-se, caminhando lentamente até a porta. A abriu com cuidado, vendo penas e sangue espalhado por todo o corredor. Temerosa, seguiu o rastro macabro.
Gritou ao ver a cena na sala.
O avô encontrava-se nu, com lacerações por todo o corpo, seus olhos tinham sido arrancados. O baixo ventre encontrava-se aberto, e seu intestino, utilizado como corda para amarrar suas mãos e prendê-lo ao teto.
Ele ainda gemia e respirava, balbuciando por ajuda.
Naoe vomitou ao ver tão asquerosa cena.
- Logo estarás livre. Alimentar-me-ei. Enfadonha vida retornará. – disse Circus, surgindo atrás da jovem.
Seus longos dedos repousaram sobre o ombro da garota, que tremeu ao toque frio do mesmo.
Ela fechou os olhos, imaginando o que viria agora. Não viu o esquelético ser curvar-se sobre ela, de boca aberta, engolfando seu pálido rosto.
(...)
Um pequeno guaxinim, trajando um quimono claro, com folhas servindo de estampa. Ele observava um casal carregar uma jovem por um jardim. Ela tinha a face pálida, olhos inexpressivos, mortos. Em aparente estado de catatonia.
- Triste acordo fora feito. – sussurrou o guaxinim. – Para livrar-se de uma situação ruim, adentrou em outra.
Ele virou-se em direção a sombra de uma frondosa árvore.
- Condenada a nunca mais sonhar, nunca mais sorrir, nunca mais chorar. É sempre isso que procuras não Devorador de Sonhos? – indagou o guaxinim a sombra próxima.
- Condenada a ser livre das esperanças que prendem os homens ao chão. – sorriu macabramente Circus, de cócoras, apoiado sobre o báculo.
O guaxinim suspirou, acenando em despedida a ele.
Afastou-se do parque, pegando uma pequena bolsa de dentro do quimono, a abrindo e vendo amarelos e brilhantes olhos no interior da mesma, que refletiam o eterno quadro macabro do ancião Kanami, ainda vivo, preso aos mesmos eventos pela eternidade.
- Carmicamente me condeno por levar crianças a isso. Mas, sou o que sou. Que jeito mais fácil de roubar, que não seja outro fazendo isso por você? – sorriu enquanto sumia entre as moitas próximas.
Status: Cursed
Alinhamento do mês: Caótica e Neutra