Um homem sem camisa se encontra deitado no chão, olhos fechados. Uma garota se encontra sentada, olhando para ele. Ele acorda, olha ao seu redor e manca em direção a ela.
HOMEM: Garota, ajude-me a quebrar essas correntes que prendem a minha perna?
GAROTA: Você sabe o seu nome? Você se lembra de onde vem?
HOMEM: Não lembro de nada... tudo é vazio. Você sabe como vim parar aqui, acordando no mar?
GAROTA: Não, apesar de não ser a primeira vez que venho para cá.
HOMEM: Você pode me libertar?
A garota fica em silêncio, olhando nos olhos do rapaz durante alguns segundos.
GAROTA: Não.
HOMEM: Mas... por que?
GAROTA: Eu consigo ver através dos olhos se alguém merece ou não. Através dos olhos, dentro das almas. Se você merecesse ser salvo, eu quebraria a corrente. Do contrário, eu o deixaria para trás, para saciar a fome das marés.
HOMEM: Marés?
GAROTA: Toda noite, as marés dançam. Se eu não te tirar daí, o mar irá engatinhar areia acima, e você se afogará.
HOMEM: Então... eu não mereço?
GAROTA: Eu não sei. Eu olhei em sua alma, e nada vi. É como se sua vida, escrita na areia, tivesse sido levada pelo mar.
HOMEM: Me liberte, então! A minha alma é de todas a mais limpa, pois nunca fiz nada para maculá-la!
GAROTA: Mas também nada fez para poli-la. Uma vida crua, sem valor, tanto positivo quanto negativo. A verdade é que não sei como agir, pois pra mim, você não é nada.
HOMEM: Mas eu não mereço ser deixado para trás!
GAROTA: Isso é verdade. Você não não merece o cárcere, mas também nunca fez nada em prol de sua liberdade. Sua existência é um enigma.
A garota se levanta e anda para longe.
HOMEM: Onde você vai? Não me deixe aqui!
GAROTA: Eu voltarei, quando tiver uma resposta.
HOMEM: Não! Não se vá!
A garota desaparece. O homem fica olhando ela sumir, depois se senta ao chão, tentando remover as correntes. Tenta bastante, e enfim se frustra.
HOMEM: Quem colocou essas correntes aqui?! Eu não me lembro de nada... eu nada fiz, e, de certa forma, estou sendo punido por isto! Onde estarão minhas memórias? Eu procuro, mas minha cabeça está vazia, como se alguém as tivesse roubado todas. Uma cabeça seca, como uma concha deixada pra trás por seu morador do mar - Oh não!
O homem começa a mancar para longe do mar que se aproxima.
HOMEM: Como é possível que eu não tenha feito nada? Como pode um homem passar sua vida em branco? É como se eu subisse na balança do mundo, sozinho, e ela ficasse imóvel. Seria diferente de alguém que, para cada ação virtuosa que coloca em um lado, coloque uma terrível de mesmo peso no outro prato: a balança não treme, mas pelo menos este homem teve uma vida. Não importaria, para ele, o seu destino, pois ele o cumpriria acompanhado de suas doces e amargas lembranças. Mas e a mim? Não é necessário julgamento pois a sentença já foi dada, e esta é a minha pena! Mas o que poderia eu ter feito de tão vil de forma que a punição seja sofrer sem saber o porquê?
A garota retorna. O homem olha a sua volta, encurralado, e pára de recuar.
HOMEM: O que aconteceu?
GAROTA: O mar não irá se mexer enquanto eu estiver aqui.
HOMEM: Você voltou. Assumo que tenha resolvido seu enigma.
GAROTA: Eu não posso decidir qual destino você merece. Se eu te libertasse, estaria sendo injusta, pois você nada fez para tal. Todavia, se te deixasse aqui, seria injusta na mesma medida. Todo homem deve receber aquilo que merece, contudo eu não posso dizer o que isto seria para ti.
HOMEM: Então não chegou a nenhuma conclusão?
A garota joga algo na areia e o homem cai de joelhos para pegar.
HOMEM: Uma chave?
GAROTA: Eu disse que EU não poderia decidir. VOCÊ pode. Essa chave vai destravar a corrente. Se você decidir que quer a liberdade, ela é sua, e você será livre. Livre para agir e arcar com as conseqüências de todos os seus atos. Se você ainda não estiver pronto, deixe que as ondas do esquecimento te arrastem mar adentro, mais uma vez.
A garota vai embora, enquanto o homem olha atônito para a chave enquanto o mar começa a subir.
Fim.
(Eu escrevi esse pequeno script baseado num antigo conto que eu tinha escrito e postado aqui chamado "Liberdade". Eu elaborei mais os diálogos nessa versão, e acho que particularmente ficou mais concisa e muito, muito melhor.)