Libra

Mostre seus textos, troque idéias e opiniões sobre contos.

Moderadores: Léderon, Moderadores

Libra

Mensagempor Speranza em 12 Jan 2008, 19:56

Um homem sem camisa se encontra deitado no chão, olhos fechados. Uma garota se encontra sentada, olhando para ele. Ele acorda, olha ao seu redor e manca em direção a ela.

HOMEM: Garota, ajude-me a quebrar essas correntes que prendem a minha perna?

GAROTA: Você sabe o seu nome? Você se lembra de onde vem?

HOMEM: Não lembro de nada... tudo é vazio. Você sabe como vim parar aqui, acordando no mar?

GAROTA: Não, apesar de não ser a primeira vez que venho para cá.

HOMEM: Você pode me libertar?

A garota fica em silêncio, olhando nos olhos do rapaz durante alguns segundos.

GAROTA: Não.

HOMEM: Mas... por que?

GAROTA: Eu consigo ver através dos olhos se alguém merece ou não. Através dos olhos, dentro das almas. Se você merecesse ser salvo, eu quebraria a corrente. Do contrário, eu o deixaria para trás, para saciar a fome das marés.

HOMEM: Marés?

GAROTA: Toda noite, as marés dançam. Se eu não te tirar daí, o mar irá engatinhar areia acima, e você se afogará.

HOMEM: Então... eu não mereço?

GAROTA: Eu não sei. Eu olhei em sua alma, e nada vi. É como se sua vida, escrita na areia, tivesse sido levada pelo mar.

HOMEM: Me liberte, então! A minha alma é de todas a mais limpa, pois nunca fiz nada para maculá-la!

GAROTA: Mas também nada fez para poli-la. Uma vida crua, sem valor, tanto positivo quanto negativo. A verdade é que não sei como agir, pois pra mim, você não é nada.

HOMEM: Mas eu não mereço ser deixado para trás!

GAROTA: Isso é verdade. Você não não merece o cárcere, mas também nunca fez nada em prol de sua liberdade. Sua existência é um enigma.

A garota se levanta e anda para longe.

HOMEM: Onde você vai? Não me deixe aqui!

GAROTA: Eu voltarei, quando tiver uma resposta.

HOMEM: Não! Não se vá!

A garota desaparece. O homem fica olhando ela sumir, depois se senta ao chão, tentando remover as correntes. Tenta bastante, e enfim se frustra.

HOMEM: Quem colocou essas correntes aqui?! Eu não me lembro de nada... eu nada fiz, e, de certa forma, estou sendo punido por isto! Onde estarão minhas memórias? Eu procuro, mas minha cabeça está vazia, como se alguém as tivesse roubado todas. Uma cabeça seca, como uma concha deixada pra trás por seu morador do mar - Oh não!

O homem começa a mancar para longe do mar que se aproxima.

HOMEM: Como é possível que eu não tenha feito nada? Como pode um homem passar sua vida em branco? É como se eu subisse na balança do mundo, sozinho, e ela ficasse imóvel. Seria diferente de alguém que, para cada ação virtuosa que coloca em um lado, coloque uma terrível de mesmo peso no outro prato: a balança não treme, mas pelo menos este homem teve uma vida. Não importaria, para ele, o seu destino, pois ele o cumpriria acompanhado de suas doces e amargas lembranças. Mas e a mim? Não é necessário julgamento pois a sentença já foi dada, e esta é a minha pena! Mas o que poderia eu ter feito de tão vil de forma que a punição seja sofrer sem saber o porquê?

A garota retorna. O homem olha a sua volta, encurralado, e pára de recuar.

HOMEM: O que aconteceu?

GAROTA: O mar não irá se mexer enquanto eu estiver aqui.

HOMEM: Você voltou. Assumo que tenha resolvido seu enigma.

GAROTA: Eu não posso decidir qual destino você merece. Se eu te libertasse, estaria sendo injusta, pois você nada fez para tal. Todavia, se te deixasse aqui, seria injusta na mesma medida. Todo homem deve receber aquilo que merece, contudo eu não posso dizer o que isto seria para ti.

HOMEM: Então não chegou a nenhuma conclusão?

A garota joga algo na areia e o homem cai de joelhos para pegar.

HOMEM: Uma chave?

GAROTA: Eu disse que EU não poderia decidir. VOCÊ pode. Essa chave vai destravar a corrente. Se você decidir que quer a liberdade, ela é sua, e você será livre. Livre para agir e arcar com as conseqüências de todos os seus atos. Se você ainda não estiver pronto, deixe que as ondas do esquecimento te arrastem mar adentro, mais uma vez.

A garota vai embora, enquanto o homem olha atônito para a chave enquanto o mar começa a subir.


Fim.
(Eu escrevi esse pequeno script baseado num antigo conto que eu tinha escrito e postado aqui chamado "Liberdade". Eu elaborei mais os diálogos nessa versão, e acho que particularmente ficou mais concisa e muito, muito melhor.)
http://ygorsperanza.deviantart.com

Lei de Speranza: não importa o quão pervertida, ultrajante, escatológica e desrespeitosa seja sua opinião, existe alguém na internet que concorde com ela.
Avatar do usuário
Speranza
 
Mensagens: 91
Registrado em: 20 Out 2007, 07:52
Localização: RJ

Libra

Mensagempor Lady Draconnasti em 12 Jan 2008, 21:40

Fiquei meio deslocada com relação ao lugar. Os dialogos estão bons, principalmente na questão do julgamento do rapaz, mas a falta de descrição do local me incomodou um pouco. Talvez pelo hábito de ler contos mais diretos, mas ainda assim, um bom conto.

De resto, parece uma peça de teatro.
Imagem

Status: Cursed
Alinhamento do mês: Caótica e Neutra
Avatar do usuário
Lady Draconnasti
 
Mensagens: 3753
Registrado em: 25 Ago 2007, 10:41
Localização: Hellcife, 10º Círculo do Inferno

Libra

Mensagempor Speranza em 12 Jan 2008, 22:01

Lady Draconnasti escreveu:Fiquei meio deslocada com relação ao lugar. Os dialogos estão bons, principalmente na questão do julgamento do rapaz, mas a falta de descrição do local me incomodou um pouco. Talvez pelo hábito de ler contos mais diretos, mas ainda assim, um bom conto.

De resto, parece uma peça de teatro.


A idéia é ser um script teatral mesmo, por isso não me preocupei em descrever o cenário, ao contrário do que fiz no conto original. Mas acho que posso colocar uma descrição breve do local onde se passa a história no início: uma praia deserta.
http://ygorsperanza.deviantart.com

Lei de Speranza: não importa o quão pervertida, ultrajante, escatológica e desrespeitosa seja sua opinião, existe alguém na internet que concorde com ela.
Avatar do usuário
Speranza
 
Mensagens: 91
Registrado em: 20 Out 2007, 07:52
Localização: RJ

Libra

Mensagempor DracoDruida em 13 Jan 2008, 13:44

Para mim, a praia deserta ficou subentendida. Eu só não entendi aonde que o homem estava preso.
Mas eu gostei bastante do conto. Eu só me pergunto: Se o homem já não sabia de nada, para que ele seria levado pelo mar do esquecimento de novo?
Avatar do usuário
DracoDruida
 
Mensagens: 1677
Registrado em: 18 Ago 2007, 23:41

Libra

Mensagempor Speranza em 13 Jan 2008, 15:11

Para mim, a praia deserta ficou subentendida. Eu só não entendi aonde que o homem estava preso.
Mas eu gostei bastante do conto. Eu só me pergunto: Se o homem já não sabia de nada, para que ele seria levado pelo mar do esquecimento de novo?


Realmente faltou explicação aí, estava no texto original: a corrente começa em algum lugar no fundo do oceano e termina na perna do homem.

O homem, ao fim do conto, seria levado pelo mar para que não se lembrasse desse dia, e no seguinte, tivesse mais uma oportunidade de se libertar.
Avatar do usuário
Speranza
 
Mensagens: 91
Registrado em: 20 Out 2007, 07:52
Localização: RJ

Libra

Mensagempor Ermel em 14 Jan 2008, 00:06

Um bom conto. Curto e enigmatico. Elaborado teatralmente como Lady disse.
Mas, interessante, me faz lembrar Nouvelle Vague, porem bem mais simples e sem a filmagem de informações altamente contraditorias.
Até :)
"And the question is
Was I more alive then than I am now?
I happily have to disagree
I laugh more often now
I cry more often now
I am more me!"
Avatar do usuário
Ermel
 
Mensagens: 133
Registrado em: 05 Set 2007, 23:41

Libra

Mensagempor Mirallatos em 14 Jan 2008, 10:36

É o que no teatro chamamos de Esquete, eu já escrevi algumas também e encenei muitas quando fazia teatro. Seu texto me lembra particularmente outros dois: Nepal e A Insólita Busca do Nada, sendo que este último eu fiz uma personagem. Era um soldado e uma sacerdotisa no fim do mundo, ambos com caixa enormes buscando uma solução para seus próprios males (Descrença e Inimigos invisíveis). Bem interessante. Acabava que eles encontravam um cemitério de caixas...

Gostei Speranza.
Imagem
Avatar do usuário
Mirallatos
 
Mensagens: 775
Registrado em: 23 Ago 2007, 12:54
Localização: São Paulo - SP

Libra

Mensagempor Speranza em 14 Jan 2008, 11:51

Um bom conto. Curto e enigmatico. Elaborado teatralmente como Lady disse.
Mas, interessante, me faz lembrar Nouvelle Vague, porem bem mais simples e sem a filmagem de informações altamente contraditorias.

Eu tenho problemas em escrever durante muito tempo mesmo (coisas muito longas). Ainda pretendo aumentá-lo com informações que recebo das discussões que este conto gera. Curiosamente, ainda não assisti nenhum filme da Nouvelle Vague, mas considero um elogio mesmo assim! :) Obrigado, Ermel.

É o que no teatro chamamos de Esquete, eu já escrevi algumas também e encenei muitas quando fazia teatro. Seu texto me lembra particularmente outros dois: Nepal e A Insólita Busca do Nada, sendo que este último eu fiz uma personagem. Era um soldado e uma sacerdotisa no fim do mundo, ambos com caixa enormes buscando uma solução para seus próprios males (Descrença e Inimigos invisíveis). Bem interessante. Acabava que eles encontravam um cemitério de caixas...

Gostei Speranza.

Obrigado pelo elogio, Mirallatos. Fiquei interessado no "A Insólita Busca do Nada", acho que ele pode me ajudar em algumas coisas, seria possível encontrá-lo em algum lugar pela internet?
http://ygorsperanza.deviantart.com

Lei de Speranza: não importa o quão pervertida, ultrajante, escatológica e desrespeitosa seja sua opinião, existe alguém na internet que concorde com ela.
Avatar do usuário
Speranza
 
Mensagens: 91
Registrado em: 20 Out 2007, 07:52
Localização: RJ

Libra

Mensagempor Mirallatos em 14 Jan 2008, 14:43

Olha, esse texto é de um amigo e o material não está na internet. Mas em todo caso vou tentar te enviar, devo ter uma cópia dele em algum lugar por aqui. O problema é que vou ter de digitalizar...
Imagem
Avatar do usuário
Mirallatos
 
Mensagens: 775
Registrado em: 23 Ago 2007, 12:54
Localização: São Paulo - SP

Libra

Mensagempor Dahak em 23 Jan 2008, 01:13

Olha, uma estrutura de diálogo das mais fortes que vi por aqui nos últimos tempos.
Mais do que mostrar diversas carcaterísticas das personagens, também nos passou a ambientação, a tensão e etc.
Riquíssimos. Valeu mesmo dar essa "revisada" nos diálogos.

Também gostei do final, deu aquela sensação de "fábula" com uma moral da história ^^"

Parabéns!


Dahak Out
Life. Live.
Avatar do usuário
Dahak
 
Mensagens: 1655
Registrado em: 20 Ago 2007, 22:32
Localização: São Paulo

Libra

Mensagempor Speranza em 16 Fev 2008, 08:27

Dahak escreveu:Olha, uma estrutura de diálogo das mais fortes que vi por aqui nos últimos tempos.
Mais do que mostrar diversas carcaterísticas das personagens, também nos passou a ambientação, a tensão e etc.
Riquíssimos. Valeu mesmo dar essa "revisada" nos diálogos.

Também gostei do final, deu aquela sensação de "fábula" com uma moral da história ^^"

Parabéns!
Dahak Out


Muito obrigado, Dahak! Também fiquei com essa sensação de que valeu muito pena. Acho que agora o ideal é pegar o melhor dos dois mundos: utilizar esse diálogo e adicionar a ele a descrição do cenário antiga... transformá-lo de volta num conto. :)

A sensação de fábula é totalmente intencional. Desde que comecei a escrever almejava criar algo com um ar alegórico, fico feliz que tenha conseguido, mesmo que um pouquinho. :)

Obrigado mais uma vez!
http://ygorsperanza.deviantart.com

Lei de Speranza: não importa o quão pervertida, ultrajante, escatológica e desrespeitosa seja sua opinião, existe alguém na internet que concorde com ela.
Avatar do usuário
Speranza
 
Mensagens: 91
Registrado em: 20 Out 2007, 07:52
Localização: RJ

Libra

Mensagempor Lobo_Branco em 16 Fev 2008, 12:25

Bom dialogo. Apesar d'eu não curtir muito ler textos produzidos para apresentações, eles tendem a ser secos na leitura, pois são feitos p/ auxilio visual. Vc poderia deixa-lo mais descritivo, porém, sei que não era esse o objetivo.

Apesar da pobreza de descrições, ele não foi hora nenhuma mecânico, pelo contrario, a agonia do homem era até palpável, o que tornou ele mais colorido do que a maioria dos textos produzidos assim.

O drama dele me fez parecer os de pessoas - geralmente idosas - que sofram de problemas sérios de memória e agravam isso com o sentimento que a vida deles não vale a pena. Porém, por conformismo nunca sabem se devem deixar o comodismo que se encontram e partir p/ coisas novas, ou fik na mesma coisa de sempre, por segurança.

De mais a mais, parabéns.

Abraços!
"— Nós também éramos crianças, e se eles nos deixaram órfãos, os deixamos sem filhos."(

Óglaigh na hÉireann)


O Último Duelo - conto Capa&Espada
Avatar do usuário
Lobo_Branco
 
Mensagens: 289
Registrado em: 26 Ago 2007, 13:22
Localização: Aquele Bosque com ares de Floresta, na periferia de Contonópolis


Voltar para Contos

Quem está online

Usuários navegando neste fórum: Nenhum usuário registrado e 2 visitantes

cron