Não sei muito o que falar sem ser spoiler do que planejo para essa obra, exceto que ela se passa no mesmo cenário que Onslaught, o que, sinceramente, não quer dizer muito (enquanto eu não publicar outras coisas ligadas a estes dois textos pelo menos).
Quem quiser alguma explicação de porque eu coloco títulos em inglês ou dos números ao longo do texto pode encontrar elas no meu outro tópico aqui: Final Flight.
Talvez eu coloque mais notas depois, talvez não.
Sem mais delongas, o texto:
Puppets
1.
Bai-Jing andava pelas passarelas elevadas de Londres com casualidade. Não havia ninguém ligado a Hotaru com ela na cidade, ninguém a vigiando. Tentar fugir seria algo simples, mas ela tinha motivos para não tentar aquilo. Hotaru havia lhe prometido uma nova vida, livre de sua atual condição. Ela desconfiava, havia aprendido que nada estava acima de Hotaru, mas havia presenciado alguma honra nela. Era esperado que ela cumprisse sua palavra no final.
Tentou deixar aquilo de lado, as condições para obter sua nova vida demorariam a se realizar, e até lá ela precisava seguir as ordens que tinha estritamente.
Retirou o palmtop do bolso e releu o último e-mail que havia recebido. A ordem era para localizar e vigiar uma pessoa, uma garota. Hotaru não havia dado muitos detalhes, como sempre, mas ela podia facilmente afirmar que a garota era um dos tais elfos.
Estava livre para usar quaisquer métodos, mas não deveria deixar qualquer rastro que pudesse ligar suas ações a Hotaru, ou ao governo japonês.
“Bem, parece uma tarefa simples, mas nada do que ela me pede é simples. Melhor aproveitar a verba extra que Fukui enviou para me equipar.”
2.
Uthihel observava atentamente seu reflexo na vitrine. O novo corte de cabelo, agora na altura dos ombros, não havia dificultado em nada sua identificação à distância, para sua frustração. As tatuagens genéticas, todas em azul escuro, eram muito aparentes, e ela começava a odiá-las agora. A gota sob o olho esquerdo nunca lhe agradou, mas não incomodava. A dupla hélice no braço direito era algo fácil de ocultar, especialmente no clima frio daquela cidade. O problema real era a corrente no pescoço. Ela poderia usar um lenço, mas ele também chamaria atenção de seus perseguidores.
Por hora ela aproveitava a folga que havia obtido. Seu olhar se desviou das tatuagens quando ela afastou os cabelos do rosto. As orelhas pontudas seriam um problema extra se ela tivesse cortado o cabelo bem curto como havia planejado inicialmente.
Retomando a caminhada ela notou que era um alo ainda mais fácil de identificar. Na correria desde que deixara o complexo cientifico onde era mantida praticamente como prisioneira ela não havia notado que a maior parte das pessoas na cidade possuíam cores escuras de cabelo, ou então eram jovens com cores nada naturais. Seus delicados cabelos loiros se destacavam lá.
O som de sirenes a assustou, fazendo-a se encolher contra a vitrine, instantes antes dos veículos policiais passarem zunindo pelo vão entre as passarelas elevadas. Quando se recuperou do susto ela voltou a pensar no problema em mãos: a facilidade com que podia ser encontrada.
Por fim uma conclusão produtiva foi alcançada. Uthihel nada podia fazer agora sobre as tatuagens ou o cabelo, mas certamente podia se livrar das roupas que era obrigada a usar em seu cativeiro. A roupa branca colante cobria tudo abaixo do pescoço, exceto pelos braços, e fazia pouco para esconder o exuberante corpo da jovem, algo que certamente chamava a atenção de todos, não apenas seus perseguidores. Ela havia sido confrontada com essa dura realidade apenas algumas horas antes, ao tentar se ocultar nas partes mais pobres da cidade, onde despistara os perseguidores, e atraíra a atenção de marginais. Sua ousadia, ou talvez seu descaso com sua própria vida, lhe permitiram escapar por uma rota suicida: saltando entre as passarelas elevadas.
Ao parar diante de uma loja de roupas Uthihel finalmente se deu conta de fatores desconsiderados em sua fuga. Ela não possuía nada além das roupas do corpo. Enquanto estava parada diante da vitrine, pensando nos problemas recém descobertos notou outra preocupação. Em algum momento de sua fuga desesperada ela havia se cortado no braço esquerdo, próximo ao ombro. Um corte leve, nada preocupante, exceto que ele ainda sangrava. Ela notou a pequena trilha de gotas de sangue na passarela por onde andara.
Foi quando se lembrou: ela não havia tomado a dose diária do coquetel de drogas que recebia no cativeiro. Apesar de conhecer muito pouco sobre medicina ou biologia foi fácil para ela concluir que seu sangue não coagularia naturalmente sem o coquetel. O medo a tomou de forma que ela nunca havia sentido antes. Ela havia sido criada já adulta, havia apenas alguns meses, mas já se habituara aos ciclos de seu corpo. Sua menstruação chegaria dali cerca de uma semana, mais tardar em dez dias na melhor das hipóteses. Se a conclusão precipitada de que seu sangue não coagularia sem o coquetel estivesse certa isso significaria morte certa para ela.
Sua atenção foi novamente desviada, agora para a realidade de sua condição de fugitiva. Ela avistou Kalian pelo reflexo na vitrine, um dos outros elfos, como ele gostava de se referir aos seus semelhantes. Uthihel não entendia os motivos por trás de insistência dele nessa denominação, para ela eles não passavam de humanos com modificações genéticas que resultavam em orelhas pontudas e tatuagens únicas para cada individuo, além de uma série de melhorias mais discretas.
Kalian já havia avistado ela, e se aproximava rapidamente. Ela fixou o olhar nas tatuagens dele, um par de raios negros no rosto, e na espada que ele portava. Rapidamente analisou os arredores, a única rota de fuga rápida o suficiente para despistar alguém como Kalian seria uma rota igualmente suicida à que ela usara poucas horas antes. Sem pensar duas vezes ela avançou até a beirada da passarela, lançou um olhar para baixo, não via nenhuma outra passarela ao alcance, mas viu o rio ao fundo. Saltou.
Kalian acelerou o passo ao ver Uthihel saltar, mas parou na beirada, observando a garota escapar. Observou a distância, era uma longa queda, facilmente mais de meio quilometro. Retirou o celular do bolso, não fazia sentido dar continuidade a perseguição, Uthihel certamente tinha chances de sobreviver a queda no rio, embora não sem graves ferimentos, seria fácil encontrá-la e recolhê-la sem pressa.