por Saxplr em 22 Jan 2008, 23:45
*Entro na arena, respiro fundo e me concentro... Que vença o melhor!!!
E aos poucos as sílabas são pronunciadas...
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O Esquilo e a Rolinha
Um conto por Rodrigo "Saxplr" van Kampen
Crate era um esquilo alto e esguio que ganhava a vida tocando contrabaixo acústico em uma castanheira acabada, bastante freqüentada por alguns pica-paus velhos, além de Johnny, um texugo que em seus tempos áureos esbanjara popularidade. Hoje em dia tudo o que eles queriam era uma boa cerveja e um bom jazz, e uma boa dançarina para alimentar-lhes a memória.
Jack, o rato saxofonista e Mark, camundongo pianista que perdera uma das patas na ratoeira, acompanhavam Crate nos “Ratoes Blues”, músicos freqüentes naquela árvore carregada de fumaça que lhes era tão acolhedora.
Doris havia acabado de ser despejada do quinto emprego no mês. A rolinha tentara trabalhar de atendente do salão de uma doninha, mas derrubara o esmalte sobre os pêlos de uma cliente; depois conseguiu um teste de telefonista na central do joão-de-barro, mas não agüentou a pressão. Agora um casal de raposas quase a jantava por ela ter quebrado um jogo de louças caríssimo. Ela respirou fundo, embora as lágrimas nem mais lhe viessem aos olhos, já estava acostumada à sensação. Abriu as asas e alçou vôo, deixando no solo apenas algumas penas velhas.
Sem olhar para trás, subiu cada vez mais alto, flutuando nas correntes, sentindo o vento em seu rosto e deslizando as penas pelo ar, permitindo-se ao menos esse carinho. Aquela cidade já não tinha mais para oferecer, Doris havia decidido voar para o sul em busca de novas oportunidades. Queria recomeçar, uma nova vida em algum lugar onde seu passado não importasse.
— Muito obrigado pessoal, é sempre um prazer tocar para ilustres cavalheiros! — Crate era habilidoso com as palavras, embora somente seus companheiros de banda fossem capazes de perceber a ironia em sua voz. — Agora vou tocar em homenagem ao nosso amigo Johnny ali a Summertime Spring, composta pelo melhor texugo baixista que esta mata já viu!
Johnny retribuiu a gentileza jogando uma moeda para o garçom. Crate era bom, com apenas algumas palavras acabara de reabastecer o estoque de cerveja dos Ratoes Blues. Os tiozinhos ali não poupavam por uma gota do prestígio que um dia tiveram. Até mesmo Crate um dia estaria se sentaria naquelas mesmas mesas com um charuto nos lábios atirando moedas para que um esquilo jovem tocasse uma de suas canções. Abandonou os pensamentos, e começou a dedilhar a tradicional escala azul.
Doris não estava acostumada a voar de noite, sequer olhava a direção que seguia. Mas sabia que a cada bater de suas asas as luzes da cidade se distanciavam, e uma nova vida se estenderia adiante. Respirou o ar gelado das alturas, o único que um dia fora capaz de congelar suas lágrimas quando seu pai a rejeitara, pouco antes de ser preso. Não gostava do solo; apesar de precisar descer sempre, era somente nas nuvens que podia se sentir bem consigo mesma, o vento a completava, a pequena rolinha e as correntes eram uma só criatura planando pelo céu estrelado.
Mas já diziam os mais experientes que pássaro branco não voa à noite. Completamente absorta em seu próprio mundo, Doris mal sentiu a aproximação do gavião seguindo em seu próprio ritmo veloz. Todos sabem que gaviões não atacam rolinhas, mas acontece que este em questão havia bebido demais naquela noite, e mal enxergava um palmo à sua frente. E quando foi mudar a corrente para a esquerda, acertou com as garras na asa esquerda de Doris, que não se recuperou do susto antes de cair em algo duro sobre outro algo macio vários metros abaixo. A parte macia eram folhas. A parte dura um contrabaixo acústico.
Crate havia acabado de pegar o cachê daquela noite quando viu cair do céu uma desengonçada mancha branca que atingiu em cheio o seu instrumento, cuidadosamente colocado sobre um monte de folhas. Pasmo, não respirou por alguns segundos, em silêncio e com os olhos esbugalhados, ainda tentando entender o que acabara de acontecer e por quê havia uma pomba sobre os restos do que um dia fora um contrabaixo acústico.
— Caramba, Crate... — Jack quebrou o silêncio, com o cigarro nas mãos. — Ferrou.
A pomba se revirou um pouco. Doris não se lembrava de jamais ter sentido tamanha dor em sua vida, mas ainda conseguia se mover. Pelo menos uma das asas, na outra sequer sentia qualquer coisa.
— Ai... minha... cabeça... — foi o que conseguiu dizer.
— Sua... sua... sua pomba! — Berrou Crate ainda procurando as palavras. — Olha só o que você fez! Olha para o meu Strato! Como é que eu vou tocar agora, como é que eu vou ganhar minha grana?
Doris conhecia muito bem aquela situação. Alguma coisa terrível que não fora necessariamente sua culpa, mas que invariavelmente a envolvia havia acabado de ocorrer, e sua reação natural seria pedir desculpas, voar e chorar. Pela dor na sua asa voar já não seria possível. Olhou por alguns instantes para a criatura que berrava inconformado, um esquilo alto, mas não muito forte. Estava cansada da velha Doris, se havia uma hora para mudar, por quê não aquela?
— Escuta aqui, seu esquilo, eu não sei o que eu fiz, mas isso não te dá o direito de sair berrando assim para cima de mim e eu exijo que... — Foi nesse momento que a rolinha tentou apontar a asa ameaçadoramente para o esquilo. Mas como sua asa não se movia e doía lancinantemente, tudo o que conseguiu dizer foi “ai... ai... ai... me desculpe”.
— Crate, dá um desconto pra ela. — Jack com seu pulmão de saxofonista terminava um cigarro em um terço do tempo normal. — A guria não fez de propósito, dá pra ver que se estrupiou.
— Certo, Jack, e você me empresta teu sax pra eu ganhar minha grana? — O rato recuou, e Mark também fez uma menção de que o piano era seu. Os dois ratos olharam um para o outro, perguntando-se se realmente precisavam daquele esquilo. Um duo de sax e piano poderia ser lucrativo...
— Bom, esquilo, tu vê aí com a guria, vamos indo. — Mark e Jack pularam no pastor alemão que passava àquela hora e acenaram.
Crate respirou fundo, abaixando os ombros. — Como é teu nome?
— Doris... Escuta, esquilo... Aliás, como se chama? — A rolinha também havia abaixado o tom de sua voz. — Crate, se o problema é dinheiro, eu posso tentar conseguir pra você. Eu não fiz por mal, é só me dizer o que fazer... Sou nova aqui, não sei nem que lugar é esse.
— Vem, pomba, eu moro perto. Melhor você cuidar dessa sua asa antes que inflame, a gente pensa em alguma coisa.
Crate morava em uma árvore a trezentos pés dali, em frente a uma coruja tão velha que mal enxergava, por isso nem mais voava, e se alimentava das nozes que o esquilo jogava por piedade. Verdade seja dita, Crate gostava da Dona Herma, ao menos tinha alguém para conversar tarde da noite, a velha aprendeu a gostar de jazz depois dos tantos ensaios, e ultimamente até palpitava suas composições.
A velha coruja ouviu os passos da rolinha e reconheceu uma mancha branca ao lado do esquilo. Pediu que se aproximasse para que pudesse vê-la, e nos dias que se seguiram cuidou de sua asa.
— Minha querida, foi uma bela queda a sua pelo que vejo aqui. Mas não se preocupe não, criança, em breve vai voltar a voar. Eu mesma já estive muito pior!
— Mas a senhora não voa, Dona Herma! — Gritou o esquilo enquanto subia na sua própria árvore.
— Porque eu sou cega! Não sou morcego pra me guiar pelo som, e você sabe muito bem disso! — E voltando-se carinhosamente para a rolinha. — Ele é um bom rapaz, mas esses jovens de hoje em dia não sabem escolher as companhias. Hoo hoo, você ainda vai gostar desse esquilo como eu gosto.
Gostar desse esquilo era a última coisa na mente de Doris. Fugindo das besteiras que fizera, acabou por fazer uma nova. Mas essa teria que reparar. Não sabia como arrumaria dinheiro para um baixo novo, mas alguma forma haveria de ter.
A coruja, afinal, estava certa. Doris arrumou um trabalho como dançarina na árvore onde o Ratoes Blues tocava, Crate alugara um baixo de um pica-pau mercenário, que Doris pagava com metade de seu cachê. A outra parte guardava para comprar um novo para o esquilo. Não era o trabalho mais digno do mundo rebolar as suas penas para um bando de animais velhos que mais de uma vez ofereciam-na rios de dinheiro por uma noite empoleirados. Mas era uma coisa que sabia fazer, e dada a atual situação, a única oferta em mãos.
Dos seus dias de antigamente, Doris sentia falta apenas do céu. De sentir a brisa em suas penas, de escorregar o vento entre seu bico, poder ser ela mesma entre as nuvens.
Ao menos ali embaixo havia Crate. O esquilo olhava de soslaio para a pomba durante as apresentações com um sorriso na boca, e uma vez comprara briga com um pombo do dobro de seu tamanho que arrastava a asa para Doris. Como não podia bater de frente com o grandalhão, usou os métodos que lhe eram cabíveis:
— Senhoras e senhores, em homenagem ao grandalhão ali nós vamos tocar Lady Marmelade. — E o primeiro compasso do dedilhado foi tudo o que conseguiu tocar antes de armar a confusão que encerrou a noite do bar com várias garrafas quebradas, um pombo perdido e um esquilo e uma rolinha sentados escondidos sobre o telhado, rindo à vontade. Foi nessa mesma noite que aquele diálogo acontecera.
— Doris, a sua asa melhorou! Você voou até aqui em cima!
— Pois é, já fazia algum tempo que eu não testava. — A verdade é que Doris sabia que estava boa, mas por mais que sentisse saudades do céu, queria encerrar seus assuntos na terra antes de entregar-se de vez ao seu amado celeste. — Crate, eu consegui um bom dinheiro, e...
— Shhh. — interrompeu o esquilo, com seus dedos nos lábios. Aos poucos aproximou seu rosto do dela e beijou o seu bico suavemente. Doris hesitou por um momento, mas afastou-o delicadamente com a asa.
— Crate, não... Eu sou uma pomba, você é um esquilo, nunca ia dar certo.
— Doris, por favor, não me venha com esse papo conservador...
— Não, Crate. — Disse ela delicadamente escolhendo as palavras para não ferir o amigo. — O problema é o céu... Ou melhor, a ausência dele. Eu sinto tanta falta de poder voar, sentir o vento... E esquilos não podem voar.
O esquilo estava confuso, não entendia onde Doris queria chegar. Não podia ser...
— Escute, Crate, eu amo o céu mais que todas as coisas. Se naquele acidente eu nunca mais pudesse voar, eu choraria todos os meus dias. Mas há algo mágico lá em cima, só lá eu posso me sentir eu mesma.
— Mas tudo bem, eu não estou impedindo você de voar, eu só quero... — O esquilo agitava os braços, mas não conseguia disfarçar seus olhos vermelhos marejados. Doris chorava também, mas mantinha-se mais calma, as lágrimas apenas escorriam de seus olhos gotejando no telhado.
— Crate, querido... Você é mais do que um amigo para mim. Mas assim como a música é tão importante para você, o céu é para mim. Eu não sou capaz de amar alguém que não ama o céu como eu... Me desculpe... Crate... — E a rolinha bateu as asas e perdeu-se na escuridão da noite.
O esquilo encontrou um bom dinheiro em sua casa aquela noite.
— Dona Herma...
— Crate, não fique assim. — respondeu ela prontamente. — Algumas criaturas são da terra, outras são do ar. Os seus caminhos acabam se encontrando, mas no fundo do seu coração você a amava na terra e não a suportaria no céu. Meu esquilo querido, foi o melhor para vocês dois.
Crate tocava em bares novos a cada semana, e dia após dia estava mais longe de onde chamara de lar. Suas canções corriam as folhas das árvores; cantava o céu, as estrelas, as nuvens e os ventos, temas incomuns para um esquilo. Mas sabia que ao longe uma rolinha cantarolava suas canções.
FIM