Conto que refiz essa semana. Envolve muita história.
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Prólogo: Chamado ao Império.
“A Vlad Tsepesh, Voivoda.
Senhor:
Nosso poderoso trono vê com grande consternação a queda de Constantinopla, a segunda Roma, ante o Sultão dos Infiéis. Tal abalo atinge, igualmente, a toda a cristandade, mesmo a esses gregos que só recentemente inclinaram a orgulhosa espinha ante o poder do Sólio Pontifício.
Foi na hora da missa que chegou a má nova. O ânimo de nossa Real e Imperial Majestade era mui elevado e contemplativo, se bem que triste, pois o sermão fora realizado com base no apocalipse, e demasiado bem o faz o Arcebispo.
Um rumorejo na porta indicava que algo não ia bem. Entrou, pois, o Arce-Camareiro do Império, com uma carta, e anunciou a terrífica notícia. A missa não foi interrompida, mas foi encerrada mais cedo. Ainda demorei-me a avistar-me com aqueles com quem deveria discutir, pois fomos convidados a orar em memória de nossos irmãos. Esta, aliás, é a primeira ordem de nossa Majestade Real e Imperial: rezai pelos gregos, e lembrai-vos que hoje foram eles, mas amanhã poderá ser a vossa hora.
Após as rezas, em uma das salas vizinhas da capela, todos os grandes senhores do reino que então estavam na cidade vieram ver-me; éramos poucos, mas lá esteve o Arce-Chanceler, o Arce-Marechal, o Arce-Copeiro, os maiores bispos. Foi lá que tomei, após me aconselhar com esses grandes oficiais, a decisão de reunir todos os maiores senhores do Santo Império Romano em uma das metrópoles imperiais, e discutir a situação e o que nos cabe fazer, ante a ameaça dos infiéis. Pois não vos enganeis, a cidade de Constantino era o nosso escudo. Com a Sublime Porta ocupando ambos os lados do Helesponto, o renovado Império Romano, que remonta a César e a Otávio, corre perigo.
O rei de França, que usa o nome de Carlos VII, e se gaba de ter doze nobres que lhe eram iguais em poder, mas que reconheceram à superioridade de Hugo Capeto. Por meu lado, eu chamo o dobro daqueles senhores que reconhecem o poder e magnificência de minha mui Augusta, Real e Imperial Majestade.
Assim sendo, espero-o nos idos do mês de Agosto do ano da Graça de Nosso Senhor de 1453, na metrópole imperial de Nuremberg.
Com o selo de Sua Majestade Real e Imperial.
Sigismundo Von Luxemboug,
Sagrado Imperador Romano,
Rei dos Romanos, Rei da Boêmia,
Rei Apostólico da Hungria
Capítulo I
Vlad Tsepesh III, por direito Voivoda da Valáquia, estava muito ansioso. Não que isso fosse visível, pois, sentado numa espécie de trono alto, em uma sala austera de seu castelo, era quase uma imagem de pedra. Um artista teria, nele, um modelo perfeito da gravidade de Estilicão, ou de Aécio, dignos generais e políticos romanos. Tal e qual eles, era um servidor; tal e qual eles, conheceu derrota e vitórias nas mãos de um inimigo muito poderoso, vindo do vasto e desconhecido leste; tal e qual eles, enfrentava-os, também, pois eram infiéis.
Mas a Morávia não era Roma, e Vlad não era o equivalente atual do Magister Militium (papel que cabia ao Arce-Marechal). Mesmo ante tal fato, ele era um dos escolhidos pelo imperador para discutir o futuro do império e da cristandade. Afinal, mesmo os supracitados tiveram seus poucos gloriosos tempos de meros oficiais nas legiões.
Ele ignorava, serenamente, dois monges beneditinos: Ugo de Tarento e Iohannes de Metz, enviados do imperador com a curiosa missiva que tinha nas mãos. Ora, eles não eram, de forma alguma, monges normais; havia, em ambos, qualquer coisa de cônego das grandes catedrais, e Vlad era levado a supor isso: dois espiões cuidadosamente escolhidos levavam a sua carta (e a de todos os outros senhores?), para ver de que forma receberiam a ordem de seu soberano.
Aquele não era um dos métodos dos mais sutis, mas ele não podia esperar muito daquele que enviara os monges com esse objetivo. Assim, esperou por alguns momentos, aparentemente relaxado, antes de se levantar e dirigir algumas palavras aos dignos sacerdotes do senhor. Vestia uma pesada capa de pele de urso, quente, com forro de marta e cortes de seda. Ela era quente e muito luxuosa, com um tom rico de negro realçando sua pele quase lívida. O único vestígio de cor era em uma jóia cor de malva, que lhe servia de prendedor.
Ele fitou os monges por um segundo, antes de começar a falar. Mais velho, Ugo, devia ter perto de cinquenta anos, e parecia mais autêntico, com seu hábito simples e gasto, sua tonsura bem cortada e branca, e sua pele da mesma cor. Seus dedos, especialmente, eram sujos de tinta, e Vlad sabia o quanto aqueles homens santos valorizavam, porém, e mesmo chegavam a matar em troca de um códice.
Iohannes era um rapagão alto, de bela figura. Era tão louro quanto o outro era moreno, e não tinha nenhuma tonsura. Se despisse o hábito branco e vestisse uma malha metálica do tipo que agora se usava na península italiana, ele o confundiria com um guarda suíço. Não: com um condottieri, um podestà, talvez o próprio Sforza, que reinava em Milão.
Depois do brevíssimo escrutínio, pois, na mente, o que se escreve em dezenas de linhas leva a menor unidade de tempo, disse:
- Vós sois bem vindos a minha humilíssima morada. Espero que a vossa viagem não vos tenha sido penosa em demasia. Afinal, mal terminou o verão, e a terra guarda com avaro cuidado a lembrança de dias de estio.
- É feliz em palavras, alteza; a terra é bela, e ofereceu-nos em profusão os doces frutos. Apesar disso, esses vossos servos viajaram com grande pressa, pois assim nos foi ordenado fazer. E mais quarenta e seis clérigos fizeram o caminho em busca de outros destinatários.
- Ah, sim, a tão preciosa missiva. Terrível é a mensagem que ela guarda, mas não nova; há mais de um mês alguns sobreviventes chegaram daquela cidade. Dei-lhes comida e água, e permiti que partissem.
- Mas cometestes um grande erro!
- Não creio que seja assim. Apenas poderia detê-los pela força, mas não vi porque fazê-lo.
- Alguns chegaram à corte, e o imperador ficaria satisfeito em palestrar com os sobreviventes de tão horrendo massacre.
- Contentar-se-á Sua Majestade Real e Imperial com minhas palavras.
- Esperemos que sim, senhor.
- Mas não há motivos para tal diálogo há essas horas. Estais cansados de tão veloz demanda, e mereceis descansar.
Vlad tocou um sino de prata que estava pousado em uma bandeja, numa mesa em frente à cadeira. Em momentos um homem chegou vestido com a libré vermelha do Voivoda, e Vlad trocou com ele algumas palavras em sua estranha língua, a mesma que decodificou o nobre São Cirilo. Depois, voltando-se, disse, no mesmo bom latim:
- Acompanhai este servo até vosso aposento. Mais tarde poderemos falar.
Os monges saíram um pouco surpresos com a acolhida cordial, mas fria do destinatário. Sobretudo, eles tinham certo mal estar com aquela expressão de um touro, de uma estátua, mas sob a qual cintilava a força de um espírito capaz. Alguns dos recebedores das palavras do Imperador eram parentes; outros, ainda, ricos; outros, covardes. Mas aquele homem devia tão alta correspondência a sua força, mérito e gênio.
Vlad estava, entretanto, tenso. Ele havia combatido os infiéis algumas vezes ao longo de sua vida. Em dois casos obtivera a vitória, mas ele sabia que seis adversários não eram, senão, saqueadores, e o refugo dos regimentos do Sultão. Só uma vez batera-se contra os Janízaros, e desse encontro guardava uma derrota pesada.
E, no entanto... Era quase como se houvesse um chamado miraculoso do destino, como se a Providência quisesse dizer: “Vai tomai a tua lança e apaga a derrota de teu pai, grande Vlad II, o Dragão, do trono dos Valáquios”. Sim, dez anos antes, seu pai, grande e bravo, fora despojado de seu trono pelo covarde meio irmão, o boyar Radu, o belo. Maldito fosse esse tio, indigno de sua estirpe, que remontava ao Dácio Constâncio Chlorus, pai de Constantino, e, mais recentemente, a Besarab, o grande! Ah, o ódio que corrompia aquele homem que, poderia ser tão mais perfeito quanto era bravo e lido nos assuntos dos homens. Nada devia aos doutores de Pádua em Teologia, e aos de Bolonha em direito; nada devia ao lendário Rolando, ou a Carlos Magno. Exceto, nisso sim, em piedade pelos seus inimigos. A esses, o ódio era eterno e mortal.
Não que sua posição atual fosse desconfortável, longe disso. Estrategista brilhante, Vlad soubera como se tornar valioso, e, sobretudo, como não se tornar dispensável. A sua habilidade de erudito e guerreiro, juntava as de cortesão. Assim, armara as suas custas uma cavalaria leve, a qual, com seus reides, reduziu o ímpeto de vários invasores otomanos. Com o dinheiro daí proveniente, armou tanto mais quanto julgara útil outros infantes, mas mais pesadamente armados, e bem treinados. Soubera se fazer notar por Sigismundo, e isso lhe trouxe castelos, terras, fidelidade e poder, especialmente na época que a família Hyundai tentou obter o trono. Mais tarde, fora um dos articuladores da eleição de Sigismundo à coroa de Rei dos Romanos, indispensável ao candidato a Imperador - em detrimento de Luís D’anjou, apoiado pelo rei da Sicília.
Mas com toda a honra, dinheiro e terras que tinha obtido não satisfizeram Vlad. Ele não desejava ser apenas um vassalo, o qual o imperador tratava ou destratava conforme lhe convinha, mas sim ser seu próprio senhor. E o único lugar do mundo onde poderia fazer isso era na sua Valáquia natal, em seu castelo no fim do passo do Borgo, lar ancestral de sua família. Com seus poucos milhares de soldados ele não podia ambicionar derrotar seu primo Radu I, apoiado como ele estava por milhares de soldados turcos e Janízaros, mas se o imperador lançasse uma Cruzada... Pois era isso que ele podia deduzir daquela carta.
Ainda que, a rigor, fosse um desvio de objetivo – sua Voivoda não ficava na rota que levava a Constantinopla – quem desejaria um inimigo bem estabelecido nas terras altas da Valáquia, com castelos e abastecimento garantido? Porventura outros príncipes, como Balduíno de Bolonha e Boemundo de Tarento não houve, na primeira Cruzada, conquistado estados no levante e, mesmo assim, combatido garbosamente na conquista da Cidade Santa de Jerusalém? Ele faria o mesmo! E seus soldados varreriam os Otomanos para a costa leste do Helesponto. E seria ele a entregar, nas mãos do Papa, a cabeça do maldito Mehmet II, e as chaves da Igreja de Haguia Sophia. Ele, de novo,no governo de sua Voivoda.
Com o crânio do tio a guisa de taça, é claro.
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Seth