O Som do Silêncio (Finalizado)

Mostre seus textos, troque idéias e opiniões sobre contos.

Moderadores: Léderon, Moderadores

O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor laharra em 05 Mar 2008, 00:59

Demorou um pouco, mas saiu. Decidi que o conto terá mesmo cinco capítulos, todos eles mais ou menos do mesmo tamanho para não afugentar possíveis novos leitores. :cool: Continuem comentando, pessoal.

CAPÍTULO III
A mensagem


UMA CORUJA PIOU em algum lugar obscuro dentro da floresta. Reger sempre escutara dizer que aquilo era um mau presságio, um aviso dos deuses de que alguma coisa iria dar errado para o bastardo infeliz que o ouvisse. Mas se era realmente verdade, eles iriam ter muito trabalho para uma noite, pois todos os seus homens, lá atrás, também a tinham escutado.

Reger respirou fundo, sentindo seus pulmões queimarem com o ar frio, escarrou forte e cuspiu no chão. Não era hora de pensar em deuses. Esta é uma noite para os homens. Não haveria espíritos, olhos vermelhos, demônios ou medo. Era o momento de fazer todos escutarem sua mensagem, mesmo que ele não tivesse voz para passá-la.

À sua frente, a cerca de quinhentos pés, estavam as muralhas da cidade de Winsc, pesados blocos de pedras postos um sobre o outro, se erguendo como montanhas. Não havia luzes para se ver lá em cima, apenas o brilho da lua refletido em uma lança, ou em um elmo, sempre que um guarda caminhava de um lado para o outro.

Atrás de Reger, passos soaram rápidos.

– Devemos ir agora, meu senhor? – perguntou Mulgruv, seu braço direito, postando-se do seu lado e olhando para a frente, para o oeste, para o portão do mundo civilizado.

Por que não? Vamos logo e acabamos com isso, pensou Reger, mas não se mexeu. Tanta coisa havia acontecido desde que entrara naquela cabana da selvagem, há meses atrás. Depois veio A Garganta, o ouro, os escravos, e então um exército. Só que, mais importante do que tudo aquilo, era sua amiga.

Ele a puxou da bainha, e Ela sussurrou enquanto saía. Um silvo que antecedia a morte e o prazer, uma combinação amarga e ao mesmo tempo doce que preenchia o ouvido de Reger. Você pode ver? Foi lá que tudo começou, ele analisou o metal, que se misturava com o céu negro do horizonte.

– Você sabe o que fazer, Reger – Ela cochichou em sua mente, e na mesma hora ele sentiu um calor morno tocar seu coração. – Eu estarei com você o tempo todo, mas não preciso falar. As decisões são suas.

Ela sempre dizia aquilo, mas as decisões não eram só dele. Reger sempre a ouviu, desde o primeiro momento, quando matou os homens n’A Garganta. Depois, tinha ponderado sobre a morte de Gorkuff. Talvez o homem não precisasse morrer, mas as palavras tinham sido claras. “Apenas eu e você, Reger. E ninguém mais. Ninguém...” E havia aquele calor. Aquela força. Era apenas impossível de resistir.

– Meu senhor? – perguntou Mulgruv, dessa vez virando seus olhos verde-cinzentos para fitá-lo. – Você está bem?

Reger retribuiu o olhar e apenas sorriu. Nunca estive tão bem em toda minha vida. Colocou seu elmo na cabeça, empurrando até sentir que o forro de couro estava bem ajustado, girou sua amiga na mão, olhou para o céu, e esperou. Ao seu redor, homens se arrumavam, tilintando cotas de malha, bordas de escudos, espadas e machados. Outros rezavam para os deuses do ocidente. Alguns esvaziavam as tripas lá atrás, para acalmar os ânimos. A fedentina da guerra. Merda, suor e sangue.

– Falta o sangue – Ela falou.

Por pouco tempo, ele pensou. Estou indo atrás dele.

E então ele foi. Em cima de sua cabeça, as nuvens escondiam a lua, dando a cobertura necessária. Reger correu com cerca de duas centenas de homens pelo terreno aberto em direção aos inimigos. Dos outros lados da cidade, outros estariam fazendo o mesmo, em um ataque simultâneo que deixaria os defensores perdidos.

Apenas quando estava bem próximo das muralhas, um grito de puro terror ecoou lá do alto. E então veio um zumbido, quando a primeira das flechas passou perto de sua cabeça.

Começou.

Reger levantou sua amiga, apontando para o topo da muralha, e todos entenderam. As escadas de madeira e corda começaram a subir acima das cabeças dos homens. Uma, duas, cinco, oito, dez... Lentas, elas iam se inclinando, formando um arco no vazio até beijar as paredes de pedra. Agora, o mundo havia virado uma imensa colméia, com os zumbidos ecoando sem parar. Uma flecha de pena branca atingiu em cheio o olho de um homem que havia acabado de colocar o pé no primeiro degrau e ele foi jogado para trás, grunhindo. Seu cadáver foi puxado e outro homem começou a subir no lugar.

Um corpo caiu lá de cima, abatido por um dos arqueiros de Reger. Seus homens estavam gritando agora, dizendo a eles próprios que subissem ou morressem. Outros se engasgavam com sangue. E alguns apenas olhavam, esperando a vez de participar daquele inferno.

Uma flecha atingiu o elmo de Reger, e o impacto o fez titubear no chão ensangüentado. Ele praguejou em sua voz interior e apanhou o escudo de um dos mortos. Encaixou as alças no braço esquerdo e fez força para sentir seu músculo apertando as tiras de couro.

– Reger, a flecha – Ela gritou, e ele levantou o escudo bem a tempo de pegar uma flecha inimiga que atingiria seu peito. Ela sempre fazia aquilo.

Continuou se protegendo e mais corpos caíram, um deles bem perto de sua perna. Reger saltou para o lado antes que aquele peso o esmagasse. Eu tenho que subir lá, eles estão morrendo, ele pensou, mas antes que pudesse andar em direção à escada mais próxima, escutou o sussurro.

– Não, Reger. Não vá.

Mas eu sou o líder desses homes. Se eu não for, quem eles irão seguir?

– Não vá, Reger. Espere pelo trovão.

Reger sabia que tinha de esperar pelo trovão, mas ele deveria ter vindo rápido. Aquela demora poderia pôr tudo a perder. Todos os seus planos, sua confiança frente aos homens. Sua reputação. E mais do que tudo, a possibilidade de se fazer escutar, ecoando sua mensagem por toda a eternidade.

A decisão é minha.

– Nunca duvidei disso.

Pela primeira vez Reger hesitou. Pela primeira vez desde que esteve com Ela, ele não soube o que fazer. Foi então que ele sentiu a força morna saindo do seu braço direito e percorrendo seu corpo e trazendo pensamentos mais claros. Acreditaria nela. A decisão seria dela, mais uma vez.

E quando o primeiro dos homens finalmente subiu na grande muralha de Winsc, o trovão chegou. Ele veio como um lamento dos céus e dos deuses que pairavam naquela cidade sagrada. O som percorreu o campo sombrio, enchendo os ouvidos de cada um dos homens e dando a esperança que Reger tanto esperava.

– A trombeta! Para o portão. Para o portão, bastardos miseráveis. Esqueçam as escadas. Para a merda do portão – gritou Mulgruv.

Mas Reger não precisou escutar aquilo. Ele era o primeiro a correr e foi o primeiro a chegar na boca escancarada que o convidava. Alguns dos seus homens lutavam contra os guardas de Winsc já dentro da cidade para manter o portão aberto.

O grupo de Reger atingiu os inimigos em uma carga frenética, como um cavalo de batalha em cima de um homem a pé. Ele esmagou a cabeça de um com seu escudo, estocou fundo na barriga do outro, chutou o rosto do terceiro e seguiu cortando de um lado para o outro, levantando jorros de sangue e gritos de homens desesperados. Agora os bastardos já sabiam. A cidade caía, e com ela viriam seus malditos orgulhos. Suas malditas honras. Suas vidas.

Outros chegaram e morreram. Mas eram poucos. Em certo momento, Reger apenas parou para olhar aquela defesa patética, a fortaleza que subjugara para obter a passagem entre o oriente e o ocidente. O centro do mundo conhecido. Ele percebeu que o momento do ataque havia sido essencial para a vitória. Ela havia dito para esperar. O grande exército de Winsc estava no oeste, lutando pelo Rei. Aqueles bastardos que estavam morrendo na cidade eram a escória. Apenas a escória. Talvez por isso se sentisse tão vazio.

– Lá em cima. Lá está o que você procura.

Ele levantou os olhos e viu do que Ela falava. O pequenino castelo, que ele se acostumara a observar do longe, agora parecia muito mais imponente em cima do morro. Atrás da construção de pedras marrons, a lua saiu de seu esconderijo nas nuvens para brilhar no infinito. Reger soltou seu escudo, viu Mulgruv olhar em sua direção e fez sinal para que o homem cuidasse de tudo.

O caminho se estendeu sinuoso como uma serpente, com degraus que pareciam não acabar. Lá atrás a cidade chorava com os gritos dos últimos homens mortos. Lá na frente, alguém mais iria chorar, então Reger apressou o passo para acabar logo com a agonia.

– Você sabe o que fazer, Reger – Ela falou. Aquilo o irritou, mas tentou disfarçar o sentimento, esperando que pudesse escondê-lo de sua amiga. Sabia que fazer aquilo com Ela em sua mão era como tentar se enganar, mas não havia palavras que pudessem ser pensadas naquele momento.

Sem saber o que o esperar, ele entrou pelas portas abertas do castelo. Não havia guardas no luxuoso salão principal. Não havia luta ou resistência. Ao invés daquilo, apenas o silêncio e uma mulher parada bem no centro. Seus cabelos, iluminados pelas tochas, eram uma mistura de castanho cor de mel com um loiro escurecido. Os expressivos olhos grandes e marrons piscavam e transbordavam nervosismo. Assim como suas mãos magras, que agarravam inconscientemente a barra do vestido branco. No topo de sua cabeça, uma frágil coroa de brilhantes.

– Bárbaro – ela começou, tentando falar com uma voz alta, mas soou vacilante. – Eu, princesa Alyse de Hamma, regente da cidade de Winsc na ausência do meu pai, Harillin II de Hamma, e dos meus irmãos-herdeiros Harilin III, Borgeon e Benfred, lhe peço que pegue o que quiser e depois saia de nossa cidade sagrada. Não há nada para você aqui.

Em outro momento, Reger sorriria daquela cena patética. Mas não havia graça no rosto da princesa.

– Ela mente – sua amiga falou, tirando a concentração de Reger. Sem ação, ele apenas continuou olhando para Alyse até que novos passos foram ouvidos de dentro do castelo. Um pequeno garoto havia aparecido do nada e corria em direção da princesa.

– MATE-O – a espada gritou em sua mente. Reger se assustou. Ela nunca gritava. “Mate-o antes que ele fale com a princesa. É a criança, Reger. É o mais novo. Mate-o!”
Reger se perdeu entre a vontade que parecia querer tomar conta do seu corpo e os olhos tristes de Alyse.

– NÃO –, a princesa também gritou. – Volte, Ben!.

– Rápido, Reger. Mate o garoto – a espada insistiu.

Sua mão direita começou a levantar, vagarosamente. A princesa viu e correu para abraçar Benfred, enquanto chorava e soluçava. Reger andou até eles, com sua amiga segura nas duas mãos. Sentia-se perdido, no mesmo frenesi que o levara a matar Gorkuff, em um passado que agora parecia tão vivo em sua mente. Mas aprendera a confiar n’Ela.

– Isso, Reger. Confie em mim.

E quando estava prestes a dar seu golpe, ele viu o que precisava para tirá-lo daquele estado de loucura. Alyse se separou de Benfred e falou baixinho com ele, ao mesmo tempo em que gesticulava com a mão, fazendo sinais com os dedos. Alguns batiam no peito, outros no ombro, outros na cabeça.

– Vai ficar tudo bem – a princesa sussurrou para o garoto, entre outras palavras que saíam junto dos sinais. Benfred se comunicava com ela da mesma forma, mas não havia voz na sua boca. Havia apenas a silenciosa voz de suas mãos.

Lá fora, o trovão soou duas vezes, indicando que a vitória estava consumada. O tremor no céu vindo das trombetas ecoaria pelas planícies e chegaria nos senhores do leste e do oeste, passando a mensagem de Reger para o mundo. Mas naquele momento, olhando para os herdeiros de Minsc, ele percebeu que a mensagem ficaria incompleta. A decisão era apenas dele.

– Isso é um erro, Reger – sua amiga falou, um sussurro cortante que lhe arrepiou os pêlos das costas e dos braços. – É para ser apenas eu e você, Reger. E ninguém...

A mensagem morreu no exato momento em que a espada voltou para a bainha.
Editado pela última vez por laharra em 24 Fev 2013, 23:41, em um total de 3 vezes.
Tentando encontrar inspiração para terminar o conto abaixo:
O Som do Silêncio: Parte IV - A decisão
Reger está às vésperas de uma batalha onde decidirá seu futuro. Durante o que podem ser seus últimos momentos com a Espada e com Alyse, ele se pega pensando sobre a validade de suas aspirações. Acompanhe o conto no link a seguir:
http://www.spellrpg.com.br/forum/viewtopic.php?f=24&t=1067
Avatar do usuário
laharra
 
Mensagens: 123
Registrado em: 21 Out 2007, 18:27

O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor Elara em 05 Mar 2008, 14:49

Laharra,

O texto foi muito bem construído, a história permanece bastante envolvente. Entretanto, achei um corte muito abrupto de um capítulo para o outro. É como se faltasse alguma coisa no meio...

De todo modo, parabéns!

Chero!
This is NOT Sparta!
Avatar do usuário
Elara
 
Mensagens: 668
Registrado em: 05 Set 2007, 12:04
Localização: João Pessoa

O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor Ermel em 06 Mar 2008, 20:24

Tenho de concordar que esse corte abrupto pode ter deixado o conto um pouco vago. Mas não nego que, ao pegar a espada o destino dele estava traçado como algo grandioso.

Me perdi um pouco no momento em que Benfred apareceu, mas nada que uma leitura mais cuidadosa e lenta não pudesse salvar. Achei muito interessante um personagem mudo, mas ainda fico com a pergunta pairando no ar, mesmo com a provavel confirmação da "Amiga" de que a Princesa e seu irmão tenham sobrevivido.

Um guerra descrita com um dinamismo impar. Meus parabens!
"And the question is
Was I more alive then than I am now?
I happily have to disagree
I laugh more often now
I cry more often now
I am more me!"
Avatar do usuário
Ermel
 
Mensagens: 133
Registrado em: 05 Set 2007, 23:41

O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor laharra em 10 Mar 2008, 17:07

Oi, pessoal. Agradeço pelos comentários.

Quanto ao corte, ele era necessário. :cool: Talvez vocês tenham sentido que ele foi tao brusco pelo fato de eu ter demorado muito para postar esse capítulo. Acho que a demora prejudicou um pouco.

E Ermel, não entendi muito bem qual a dúvida que você tem. Se você explicá-la melhor talvez eu possa dar uma luz :cool:

Abraços.
Tentando encontrar inspiração para terminar o conto abaixo:
O Som do Silêncio: Parte IV - A decisão
Reger está às vésperas de uma batalha onde decidirá seu futuro. Durante o que podem ser seus últimos momentos com a Espada e com Alyse, ele se pega pensando sobre a validade de suas aspirações. Acompanhe o conto no link a seguir:
http://www.spellrpg.com.br/forum/viewtopic.php?f=24&t=1067
Avatar do usuário
laharra
 
Mensagens: 123
Registrado em: 21 Out 2007, 18:27

O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor laharra em 17 Mai 2008, 05:55

Estou de volta com a parte 4 das 5 do conto. Demorou, mas antes inspirado do que forçado :cool:

Quanto a esse capítulo, não se enganem pois ele não é grande. Espero críticas e sugestões, como sempre. :cool:

CAPÍTULO IV
A decisão


ESCURO SE ESPREGUIÇOU, alongando os músculos das patas e arrepiando os pêlos. Olhou para Reger com indiferença e então voltou a andar, se equilibrando sobre o parapeito fino da torre. A cor preta do gato se destacava perante as nuvens alaranjadas que se distanciavam no horizonte, como uma mancha de tinta em uma roupa de cor berrante.
Reger odiava aquele olhar displicente dos gatos. Mas o daquele gato, em especial, ele não conseguia deixar de gostar.

– Venha, Escuro. Aqui, para o meu colo – falou Alyse, e Escuro desceu até ela, se esfregando provocativamente em Reger antes de chegar. – Você se lembra, guerreiro, como é o sinal de gato? – ela perguntou.

Reger se lembrava, então fez o sinal e foi correspondido por um sorriso. Alyse estava sentada em uma cadeira baixa e usava um vestido branco cuja dobra da cintura era ladeada por pequenas pedras de alto valor. O tecido caro colava na parte de cima do corpo magro, valorizando os seios. Uma roupa digna de uma princesa. Era impossível deixar de olhá-la sem sentir desejo.

E era bom conversar com ela, mesmo que não houvesse palavras na boca de Reger. Depois de todos aqueles meses, o “bárbaro” havia virado “guerreiro”, e Alyse o havia ensinado a passar suas próprias mensagens. Pelo menos para ela. Todo aquele frio do primeiro dia agora era calor. E como Reger sentia calor naqueles dias, só os deuses – se é que eles de fato existiam – poderiam saber.

Tenho que ir embora, Reger fez os sinais com as mãos. Sabia que tinha de dizer algo mais, só que não sabia o quê. Nunca tinha precisado fazer aquilo antes.

Alyse continuou encarando-o, mas o sorriso morreu na boca. Reger andou até o parapeito, onde há poucos segundos Escuro passeava, e apertou os olhos, fitando a massa cinzenta que se espalhava lá embaixo, a milhares de passos de distância. Centenas de homens se aglomeravam sob comando do príncipe Borgeon, para tirá-lo de Minsc.

Amanhã é o dia.

Alyse se prostou ao lado dele, e o leve roçar dos braços desarmou Reger. Aquele cheiro levemente adocicado que ela carregava também era uma tentação, muito longe do suor e das loções baratas das putas das cidades. Um cheiro único, digno de princesa. Era impossível deixar de cheirá-la sem sentir desejo.

– Um dia, eu lhe pedi que não matasse meu irmão Benfred, e você aceitou o meu pedido – ela começou a falar. – Hoje, não posso pedir que não mate Borgeon, pois ele também o quer morto. Mas posso pedir para que não vá amanhã.

Você não pode me pedir isso, Reger se expressou pelos sinais.

– Eu posso, sim. Fui eu quem lhe ensinou como falar com as mãos, guerreiro. Você pode passar suas mensagens por meio delas. Não por meio da sua espada – O simples mencionar d’Ela fez Reger tocar o punho, sentindo o metal roçar na pele áspera da mão.

Um silêncio reinou absoluto por algum tempo enquanto ele olhava para o futuro lá embaixo. Reger havia pensado em não ir, por apenas alguns rápidos segundos, mas sabia que aquela decisão não só o tiraria de perto de Alyse, mas também de sua amiga.

Alguns pingos caíram sobre os braços, e logo eles procuraram também a cabeça e o tronco. Escuro deu um pulo para baixo de uma cadeira e depois correu para a escada de pedra coberta. Alyse colocou a palma da mão cobrindo os olhos e mordeu o fino lábio superior de leve. Você sempre faz isso. Alyse correu para a escada, seguindo Escuro. Depois, assim como o gato, se perdeu na penumbra, fazendo Reger pensar, mais uma vez, pela vez de número incontável, se deveria ter dito algo mais.

Voltando seu olhar para baixo, ele viu o garoto Benfred no pátio, correndo de duas serviçais que tentavam tirá-lo da chuva. Ele se esquivava delas, e mesmo lá de cima Reger pôde ouvir os sorrisos de diversão do menino. Tantas diferenças, mas também tanto em comum... A coroa e o sangue real não evitariam as mesmas piadas, os olhares penosos ou muito menos a dificuldade de dizer aos homens o que fazer. Havia muito que ele poderia aprender se houvesse tempo.

Quando Benfred finalmente entrou no castelo, Reger se pegou sozinho no topo da torre, com apenas a companhia distante dos sentinelas nas muralhas. Castigado pelo lamento frio e molhado dos deuses, ele resolveu conversar com sua amiga.

– Preparado, Reger? – Ela sussurrou assim que foi tirada da bainha.

Sim.

Um novo silêncio. Em algum lugar no leste, um trovão explodiu em meio a um céu cinzento e tempestuoso, ecoando tremores na base do castelo.

– Você sabe que pode mentir para si mesmo, Reger, mas não para mim.

Reger não tinha réplica. Antes que pudesse pensar em algo, Ela voltou a falar.

– O menino. Você não me ouviu, Reger.

Como eu poderia ter matado um garoto. Ele não é uma ameaça.

– Você sabe que deveria tê-lo matado. Era a sua mensagem ao mundo, Reger.

Ela tinha razão. Por mais que ele odiasse admitir aquilo, Ela tinha razão. Com a morte de Benfred dentro do castelo, pelas mãos do invasor, Reger tinha direito pelas leis do oriente a tomar posse da cidade. Com isso, poderia ganhar o apoio de tribos e povos dos arredores para uma batalha contra Borgeon na tentativa de retomada. Mas ele simplesmente não pôde derramar aquele sangue.

Não é essa minha mensagem.

– Então qual é?

Reger também não tinha resposta àquilo. Ele quase se traiu e pensou eu não sei, mas lembrou de que a espada o escutaria e se segurou.

– Eu posso sentir sua indecisão, Reger. Mas você sabe o que deve fazer.

Eu não tenho escolha.

Depois de um novo silêncio, quebrado apenas pelo som surdo dos pingos de chuva em sua roupa, ele voltou a conversar.

Naquele dia, com a selvagem, foi você?

– Eu não estava lá, Reger.

Aqueles olhos vermelhos. Dizem que são sinais dos demônios.

– Dizem, Reger, mas quem quer que os tenha visto não poderia falar nunca. Os que falam isso mentem.

Com isso, Reger a levantou e olhou para a lâmina negra. Lá ele viu o próprio reflexo escuro, com seus cabelos castanhos e molhados descendo pelas sobrancelhas, o maxilar duro do qual ele tinha tanto orgulho, e os olhos profundos.

E por um breve momento, parecia que eles tinham tomado uma coloração rubra. Reger deixou soltar um suspiro de surpresa, sentindo as alfinetadas do susto nos músculos. A água da chuva caiu em seus olhos e ele os esfregou com o antebraço esquerdo, para depois voltar a se olhar. Não havia nada de diferente agora.

– Está tudo bem, Reger? – a voz d’Ela soou distante.

Sim. Está tudo bem, ele ofegou. A chuva parou, mas o céu começava a escurecer.

– Claro que sim, Reger.

O odor de terra molhada chegou com uma lufada de vento que engolfou a torre. Aquele momento tinha um cheiro de anos perdidos em algum lugar da memória, e a breve lembrança fez Reger tremer, ainda que ele tivesse falado para si mesmo que tinha sido o frio.

Você acha que eu poderei ter Alyse?, ele perguntou com a imagem dos lábio fino de Alyse sendo mordido por ela própria.

– Se você me escutar, Reger, você a terá para toda a eternidade.

Qualquer coisa, ele respondeu, com uma cobra se revirando na boca do estômago.

– Vá sozinho amanhã, e então tudo ficará bem, Reger. Esqueça o que falei do garoto e apenas confie em mim.

E mesmo tendo um pressentimento de que aquela poderia ser a última vez que teria uma conversa daquele tipo com Ela, Reger aceitou a proposta.
Editado pela última vez por laharra em 24 Fev 2013, 23:48, em um total de 1 vez.
Tentando encontrar inspiração para terminar o conto abaixo:
O Som do Silêncio: Parte IV - A decisão
Reger está às vésperas de uma batalha onde decidirá seu futuro. Durante o que podem ser seus últimos momentos com a Espada e com Alyse, ele se pega pensando sobre a validade de suas aspirações. Acompanhe o conto no link a seguir:
http://www.spellrpg.com.br/forum/viewtopic.php?f=24&t=1067
Avatar do usuário
laharra
 
Mensagens: 123
Registrado em: 21 Out 2007, 18:27

O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor Ermel em 17 Mai 2008, 16:21

Só 5 capitulos? Me parece pequeno...

Vemos o desenrolar do desejo por Alyse nesse capitulo. Me sinto um pouco preso a duvida, de que, talvez, essa espada não passe ser muito confiavel a partir do momento que ela conseguir o que almeja.

Enfim, a dinamica do texto fluiu legal, não tornando muito lento o desenrolar do conto.

Agora é esperar pela conclusão.

Até :D
"And the question is
Was I more alive then than I am now?
I happily have to disagree
I laugh more often now
I cry more often now
I am more me!"
Avatar do usuário
Ermel
 
Mensagens: 133
Registrado em: 05 Set 2007, 23:41

O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor laharra em 17 Mai 2008, 22:46

Valeu pela passagem, Ermel. Serão cinco capítulos mesmo para não ficar muito grande. Tenho projeto de fazer outros contos de fantasia no mesmo estilo, para ir aperfeiçoando minha narrativa.

Mas, para falar a verdade, O Som do Silêncio terá um epílogo (que será pequeno) além da quinta parte. :cool:

Tentarei não demorar muito para a conclusão.

Abraços.
Tentando encontrar inspiração para terminar o conto abaixo:
O Som do Silêncio: Parte IV - A decisão
Reger está às vésperas de uma batalha onde decidirá seu futuro. Durante o que podem ser seus últimos momentos com a Espada e com Alyse, ele se pega pensando sobre a validade de suas aspirações. Acompanhe o conto no link a seguir:
http://www.spellrpg.com.br/forum/viewtopic.php?f=24&t=1067
Avatar do usuário
laharra
 
Mensagens: 123
Registrado em: 21 Out 2007, 18:27

O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor Elara em 19 Mai 2008, 15:12

Laharra,

Esse capítulo fluiu muito bem, deixando um "q" de "continua no próximo capítulo". Narrativa gostosa de ler, bem leve. Parabéns.

Só fiquei com uma dúvida. Alyse é surda mas não é muda, pelo que entendi (o que na verdade é muitíssimo raro). E se ela não é muda, poderia se comunicar por linguagem labial, sem que Reger precisasse fazer sinais para ela (como aliás, muitos surdos-mudos fazem). Então, por que ela usa sinais?

E se ela for surda-muda, o que acho improvável, como ela fala com o gato?

Chero!
This is NOT Sparta!
Avatar do usuário
Elara
 
Mensagens: 668
Registrado em: 05 Set 2007, 12:04
Localização: João Pessoa

O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor laharra em 19 Mai 2008, 15:41

Oi, Elara. Legal ter sua presença aqui acompanhando o conto mais uma vez. :cool:

Na verdade, Alyse não é surda nem muda. Já o príncipe Benfred é surdo-mudo. Se você reparar, ela só usou a linguagem de sinais até agora com ele (o príncipe).

Alyse ensinou a Reger a linguagem de sinais para que ele pudesse se comunicar com ela (já que ele é mudo).

Eu ia mostrar exemplos de trechos, só que to meio apressado. Mas acredito que deu pra pegar a idéia.

Bjao.
Tentando encontrar inspiração para terminar o conto abaixo:
O Som do Silêncio: Parte IV - A decisão
Reger está às vésperas de uma batalha onde decidirá seu futuro. Durante o que podem ser seus últimos momentos com a Espada e com Alyse, ele se pega pensando sobre a validade de suas aspirações. Acompanhe o conto no link a seguir:
http://www.spellrpg.com.br/forum/viewtopic.php?f=24&t=1067
Avatar do usuário
laharra
 
Mensagens: 123
Registrado em: 21 Out 2007, 18:27

O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor Elara em 19 Mai 2008, 16:06

o.O

Reger é mudo?????

Acredita que eu não tinha percebido?

Chero!
This is NOT Sparta!
Avatar do usuário
Elara
 
Mensagens: 668
Registrado em: 05 Set 2007, 12:04
Localização: João Pessoa

O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor laharra em 19 Mai 2008, 21:18

Eu nunca ia imaginar que você não sabia se não tivesse dito heheheh

Depois que eu terminar o conto, então, tenta reler, se tiver tempo, porque aí eu acho que você terá uma visão totalmente diferente dele. Até porque, o foco maior da história é sobre isso. Daí o nome do conto :cool:

É tanto que os pensamentos de Reger são escritos em itálico, mesmo aqueles em que ele conversa com a espada (porque é com a mente que ele fala com ela). Já os diálogos falados (inclusive as falas da espada, apesar de serem só para ele) estão entre aspas, seguindo o modelo de livros de fantasia norte-americanos e europeus.

Flw!
Tentando encontrar inspiração para terminar o conto abaixo:
O Som do Silêncio: Parte IV - A decisão
Reger está às vésperas de uma batalha onde decidirá seu futuro. Durante o que podem ser seus últimos momentos com a Espada e com Alyse, ele se pega pensando sobre a validade de suas aspirações. Acompanhe o conto no link a seguir:
http://www.spellrpg.com.br/forum/viewtopic.php?f=24&t=1067
Avatar do usuário
laharra
 
Mensagens: 123
Registrado em: 21 Out 2007, 18:27

O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor Radasforth Longshank em 29 Dez 2009, 13:48

Eu não li seu conto, amigo, mas queria que me ajudasse a entender o título da história.
Teoricamente, o silência não seria a ausência de som ou ruído?
Porque o título chama-se O Som do Silêncio?
Acho que seria impossível um fenômeno destes..
Desculpe por interromper a publicação dos capítulos..Aliás, li o primeiro e me interessei fortemente.

Abraços,
Radas.
Avatar do usuário
Radasforth Longshank
 
Mensagens: 71
Registrado em: 08 Fev 2009, 09:18
Localização: Myth Drannor

O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor Bahamute em 29 Dez 2009, 18:31

Acho que o titulo faz alusão ao personagem mudo da história...

Outra, acredito que seja apenas uma força de expreção, uma metafora ou algo assim.
Não quer, necessáriamente, dizer que o silêncio tenha algum som ou coisa do tipo, é só uma forma poética.
Aquele abraço!
Avatar do usuário
Bahamute
Coordenador do Cenário Futurista da Spell
 
Mensagens: 2848
Registrado em: 26 Ago 2007, 00:25
Localização: São Paulo - SP -

O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor laharra em 30 Dez 2009, 00:08

Bahamute falou tudo, Radas :cool:

Aproveito e convido os dois a lerem o conto por completo e entenderem melhor o sentido ao redor do título... Inclusive, vcs me lembraram que estou na metade do capítulo final e tenho de terminá-lo logo antes que o fantasma desse conto venha me assombrar novamente (acontece isso toda vez que leio minha própria assinatura). Estou devendo esse final aos leitores antigos e, principalmente, a mim mesmo.

Abraços...
Tentando encontrar inspiração para terminar o conto abaixo:
O Som do Silêncio: Parte IV - A decisão
Reger está às vésperas de uma batalha onde decidirá seu futuro. Durante o que podem ser seus últimos momentos com a Espada e com Alyse, ele se pega pensando sobre a validade de suas aspirações. Acompanhe o conto no link a seguir:
http://www.spellrpg.com.br/forum/viewtopic.php?f=24&t=1067
Avatar do usuário
laharra
 
Mensagens: 123
Registrado em: 21 Out 2007, 18:27

Re: O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor laharra em 25 Fev 2013, 00:05

Pelo o que vi, o fórum não tem mais a mesma atividade de antes... Mas era uma questão de honra terminar este conto.

Segue o final de O Som do Silêncio, mais de cinco anos depois de eu ter colocado o primeiro post. Espero que o pessoal que leu antes possa ver o texto final. Ainda aproveitei e fiz alterações nos textos dos outros capítulos.

E para quem não leu... Não é tão grande. Vale a pena :)


CAPÍTULO V
O adeus



ELA ESTÁ INDO EMBORA, e eu vou com ela. Para as montanhas ao leste, ou para os mares a sudoeste, e eu vou com ela. Com minha espada na mão, e um escudo no coração, eu vou com ela. Até o fim desta canção, até estar a sete palmos do chão, eu vou com ela.

As canções que saíam das bocas de bardos e bêbados sempre se agarravam na memória de Reger. Ele se pegava boquiaberto, desde pequeno, quando escutava aquelas palavras saírem em rimas mágicas, que iam se desdobrando e contando uma história. Os sons subiam e dançavam ao redor das chamas da fogueira, ou das curvas nos corpos das putas. Era como se os versos – como insistiam em dizer os músicos – fossem donos de seus próprios destinos.

Azar de Reger se ele não podia cantá-los, fosse com uma voz altiva e ressonante, que hipnotizasse todos os homens e mulheres de um grande salão, ou com um barítono grosseiro e esganado, como se um porco estivesse fazendo força para colocar as próprias tripas para fora. Não importava. Ele simplesmente não podia.

Lembrar daquelas canções que ele aprendera em todos os cerca de trinta e alguns outros anos de sua vida lhe aliviava a ansiedade. E pensar em suas andanças pelas terras do continente o fez se questionar se o desgraçado que fez aquela música estaria tendo uma visão do futuro, pois era exatamente daquela forma escrita que ele se sentia.

“Senhor, sua armadura está ajustada”, o servo avisou logo após outro puxão em uma das tiras de couro.

Reger pendeu sua cabeça para a direita e para a esquerda, depois para trás e para a frente. Sem dor, nem aperto. Um belo ajuste. Abriu e fechou com força a mão direita, olhando seus dedos apertarem cicatrizes esquecidas, depois fez o mesmo com a esquerda, coberta com o metal da luva. Bateu com o punho na placa de aço que cobria seu peitoral, sentindo a onda do choque percorrer até sua cintura. Ajoelhou-se até onde pôde com a perna esquerda, sentindo todo o peso da cota de malha. Fez um sinal de positivo com a cabeça e então o serviçal se virou, andou até a parede e tirou Ela do suporte.

Apenas eu e você, Reger disse para ele mesmo, mais uma vez. O seu lema era aquele, ainda que a frase não soasse tão forte como antigamente. Ele A pegou em suas mãos, analisando as curvas de ouro entrelaçadas e esculpidas na bainha. O punho tinha um cabo de madeira retalhado em três gomos arredondados, banhados de prata nas junções e com uma pincelada de ouro na ponta.

Se existia uma espada perfeita no mundo, essa era Ela.

E com Ela segura na mão direita Reger andou. Andou pelos corredores escuros da torre, escoltado por sua sombra. Andou pelos jardins privados do castelo, sentindo o cheiro de jasmins e escutando o canto de passarinhos. Andou também pelas pedras finas e cascalhos da entrada, acompanhado de perto de pequenos lagartos. Só parou quando passou pelo portão e olhou, do topo do morro, o brilho cinzento e uniforme do sol refletido nos elmos e armaduras de seus homens, lá embaixo, espalhados pelas ruas. Escutou o uivo da cornuália dos inimigos, o grito uníssono da infantaria e o bater de lanças e espadas em escudos. A batalha me chama.

Reger desceu os degraus e passou pelos seus homens, carregando os pesos dos olhares. Eles não falavam, e aquele silêncio era corrompido pela intrusão do barulho que vinha de fora. Reger sabia que eles queriam lutar, que estariam ao seu lado caso mudasse de ideia. Por isso estavam armados, prontos para a batalha.

Mas ele havia se decidido.

Os portões se abriram com um lamento profundo de ferrugem. À frente dele, um campo se estendia por vários metros até uma imagem cinzenta borrada de calor onde sua visão pôde alcançar, como uma miragem. Quando foi dar seu primeiro passo em direção ao desafio, Reger sentiu um puxão no ombro.

Era Alyse.

Ele esperava outro pedido para que não fosse e ostentou uma face dura, intolerável. Alyse não se intimidou. Respondeu com um olhar carrancudo e uma marra que contrastava com seu rosto angelical. Ela parecia pequena naquele vestido branco, o mesmo que usou no dia em que Reger invadiu sua casa e se tornou o maior inimigo da família Hamma.

– Houve um tempo em que eu queria que você morresse, guerreiro – a voz de Alyse enlaçou o coração de Reger com um gelo terrível. – Houve um tempo em que eu temia o que você poderia fazer comigo e com Benfred. Houve um tempo que eu sonhei com meu irmão Borgeon entrando em nossa cidade sagrada e cortando sua cabeça para alimentar os corvos. Mas esse tempo se foi, e com ele minhas frustrações. Eu amadureci ao seu lado muito mais nesse tempo juntos do que sob a proteção excessiva que recebi no meu crescimento. E eu venho aqui agora para falar que isso tudo nos marcará para sempre, pois hoje é o dia em que tudo acaba.

E tão rápido como apareceu, Alyse se foi.

Reger nunca a vira daquele jeito, nem nos primeiros dias posteriores à invasão. Finalmente ele entendeu a mágoa que ela sentia. Não a da intrusão, mas do adeus. De repente, ele se viu com o coração de Alyse nas mãos e a imaginou em seus braços, beijando-a e afagando seus cabelos, sentindo seu perfume mais perto e o macio da sua pele deslizando por seu corpo. Reger chegou a dar um passo em direção a ela, em um ato de pura fraqueza, mas se recompôs a tempo.

Você não consegue entender, Alyse... Ela nos dará isso... A espada me falou.

Bastava confiar, como sempre tinha acontecido inúmeras outras vezes, e tudo daria certo. Reger teria sua princesa por toda a eternidade, Ela havia falado. Antes, Ela havia lhe dado ouro para construir um exército, a confiança para comandá-lo mesmo sem voz e o poder para passar sua mensagem ao mundo. Ela o daria Alyse, mesmo que custasse a vida de Borgeon.

Ele confiou e andou sozinho pelo portão.

O ar do lado de fora era mais leve, sem a opressão dos esgotos que uma cidade grande tinha. O cheiro da planície invadiu os pulmões de Reger como uma bebida inebriante, trazendo energia para a luta que se configurava à sua frente. A poeira levantada pelos cascos do cavalo de Borgeon estava cada vez mais próxima e pouco a pouco Reger pôde ver o contorno escuro da armadura que envolvia o animal. Era um forro de malha negra sobre couro, com pontas nas extremidades que tinham um brilho vivo de tão afiadas. O príncipe cavalgava com uma postura rústica, meio corcunda, olhos baixos e compenetrados por baixo do elmo simples de pluma branca, fitados no inimigo e em seu objetivo.

O cavalo chegou a perigosos cinqüenta passos e então, com um leve puxar de mão, ele freou e diminuiu o ritmo para um trote nervoso. Borgeon chegou bem perto de Reger e passou a circunda-lo, com uma curiosidade feroz em seus olhos castanhos claros. Não havia muito de Alyse nele e isso, de certa forma, surpreendeu Reger, visto a similaridade dela com Benfred. Também não havia glamour de trajes ostentosos ou de uma armadura banhada a ouro. Havia apenas um jovem cavaleiro de cabelos levemente loiros e insurretos que escorriam pelo final do elmo. Vestia uma cota de malha perfeitamente polida que lhe protegia o corpo todo, com a heráldica da casa Hamma costurada no peito de seu colete claro. Na mão direita, a espada sagrada de sua casa, Lágrima, era segurada com a força de quem pensa apenas em matar.

– Então você é Reger – começou Borgeon, segurando as rédeas de seu inquieto cavalo. Continuou rodeando Reger, que apenas o encarava quando ele estava à sua frente. – Reger, o mudo que fala pela espada – continuou o príncipe, tentando manter uma calma impossível. O ódio que sentia exalava pela alma e as palavras saíam praticamente como um sussurro de seus dentes trincados.

– Eu escutei sua mensagem, bárbaro. Seu nome ecoou da fronteira do reino bombardeada pelo coração do continente, minha cidade, a qual você tomou de forma vil e traiçoeira. Recebi seu nome como o de um fantasma, que apareceu do outro mundo para atemorizar a todos – disse Borgeon, apontando Lágrima para o rosto de Reger, que apenas olhou e esperou o final do discurso. – Me dizem que minha irmã e meu irmão estão vivos e a salvo, mas não acredito em seus mensageiros. Eu sei o que homens como você fazem e isso é o alimento de minha vingança. Você pediu um duelo entre nós dois e colocou termos que eu não poderia recusar. Saiba que agora tudo acaba. Seu jogo de nobre acaba com sua morte.

Borgeon desceu de seu cavalo, sem nunca tirar os olhos de Reger. Depois deu um tapa na anca do animal e ele saiu em um cavalgar rápido, treinado, para lugar nenhum. O príncipe assumiu sua posição de combate, abrindo um espaço de um passo entre os pés e levantando sua longa espada de duas mãos sobre a cabeça, em um desafio. A lâmina parecia translúcida sob a luz do sol forte que iluminava aquele dia sangrento. Era como se uma verdadeira lágrima estivesse sendo derramada no campo de batalha, mas segura pela mágica que rondava a história daquela família.

Reger percebeu que chegara o momento.

Ele A puxou para fora da bainha, em um silvo penetrante que, por um breve momento, tirou a atenção de Borgeon para a lâmina opaca e única. O grito saído de sua espada pareceu ter chamado a atenção dos deuses para aquele encontro, pois uma lufada de vento passou redemoinhando entre os dois.

– Sim... – Ela sussurou.

O avanço de Borgeon foi como o de um touro indomável. Ele não mediu os passos em uma corrida desenfreada, que terminou em um ataque que desceu de uma diagonal à outra. Reger deu um passo para trás, vendo Lágrima passar com um sibilo frustrado à frente do seu rosto. O segundo ataque veio da esquerda para a direita, sendo bloqueado com a sua própria amiga, que praticamente se moveu sozinha, com uma leveza que conduziu os braços dele para o local certo. Reger respondeu com um empurrão que tirou o balanço de Borgeon seguido de um ataque também lateral, defendido. O príncipe deu uma estocada que quase acertou a barriga de Reger, mas Ela espanou a investida para o lado.

Os movimentos do príncipe continuaram. Eram rápidos e bem treinados, mas ainda que estivesse sendo guiado por Ela, Reger sabia que poderia vencê-lo sem ajuda. O ódio cegava o jovem, fazendo com que abandonasse a disciplina a cada segundo passado. Em meio aos batuques dos dois corações, a agonia das respirações e os rangidos e tilintares das armaduras daquele duelo, Reger podia ver as brechas aparecendo claramente.

– A costela – Ela avisou. E ele fez uma finta mencionando um ataque pela direita. Quando Borgeon, que se recuperava de uma defesa, tentou aparar, viu tarde demais a lâmina de Reger batendo forte no lado esquerdo do seu tronco. Uma espada normal não passaria pela cota de malha, mas Ela não. Um corte se abriu no príncipe, dando coloração avermelhada naquele combate marcado pelo cinza e marrom.

Borgeon deu passos para trás, com um grunhido que revelava a vontade de gritar de dor. Inflou o peito e não deu muita atenção à ferida e investiu novamente, da mesma forma que tinha feito no início da peleja. Reger, desta vez, já sabia o que fazer. Deu um passo para o lado fraco do ataque, girando no próprio eixo enquanto levantava sua amiga com a força suficiente para fazê-la descer em um corte furioso nas costas de Borgeon, que acabara de passar batido na finta.

O grito de dor, agora, não pôde ser abafado.

– Sim, Reger – ela disse e então ele sentiu um formigamento nos músculos, um turbilhão de alfinetadas. A força morna voltava. A sensação daquele primeiro dia quando a havia encontrado o tomou novamente, enquanto via Borgeon ajoelhado, apoiado em Lágrima, de costas. Chegou a hora de passar outra mensagem. Caminhou para a frente do príncipe, que mantinha o olhar teimoso da honra, mas com o brilho apagado, de quem sabia que iria morrer.

– É agora, Reger.

O medo de Borgeon alimentava a euforia de Reger. O príncipe não aparentava ter muitas forças para se levantar ou bradar Lágrima em uma tentativa de sobreviver. Soltava insultos, mas Reger, o mudo, também ficou surdo naquele momento.

Não havia mais som. Apenas Ela.

– Apenas eu e você, Reger..

Reger a levantou sobre sua cabeça para o golpe final.

– E mais ninguém...

A frase veio como sempre, mas como nunca antes ele parou.

Seus olhos o traíram e foram até a muralha de Winsc, onde, em meio ao mar de elmos e lanças que o observavam, viu Alyse. Era como um fantasma naquele vestido branco, uma aparição que o tirou do torpor da morte. Ele sentiu o gosto de sangue se esvair durante um breve segundo. Voltou a olhar para Borgeon. Depois, para a espada.

Ela havia prometido Alyse.

Reger atacou com toda sua força, de baixo para cima.

E então Ela o deixou.

A espada negra dançou no ar daquela planície, em silêncio, enquanto voava para longe das mãos de Reger. Ele desceu as duas mãos com força esmagando os dedos no chão. Em meio à dor, olhou para o lado e a viu. Sua companheira, fincada no chão como um estandarte, balançando. Ele se levantou incrédulo, olhando enquanto ela dançava para frente e para trás. Para frente e para trás. Para a frente e...

Lágrima o mordeu forte na barriga. Não foi uma estocada tão firme, mas a lâmina sagrada varou a cota de malha e se alojou na barriga de Reger. Seus músculos se contraíram em um aperto diferente enquanto voltava a visão para Borgeon que, em um dos últimos suspiros de força, se levantou para desafiá-lo mais uma vez. Quando Lágrima saiu, Reger caiu de joelhos, com as mãos no abdômen, vendo o sangue espirrar. Sua vida se esvair.

Ele despencou para o lado, mal conseguindo se apoiar com o punho por conta da mão direita quebrada.

Olhou para Ela, que havia parado de balançar.

E ali se pegou chorando.

Por sua mensagem...

Por sua vida...

Por Alyse...

Traído.

Por quê?

A voz d’Ela ecoou pela última vez, enquanto a escuridão o tomava.

– Era pra ter sido eu e você, Reger...

E mais ninguém.



EPÍLOGO

Reger acordou sentindo cheiro de bacon e queijo. Ele se levantou com uma lerdeza comum de quem dormira há dias, mas ela logo se tornou em uma disposição fenomenal que o jogou para fora da cama. Ele sentou na mesa e fez o desejum. Tomou uma caneca de vinho adocicado e sentiu o cheiro dos jasmins que vinha do lado de fora da janela da casa, também invadida por um morno raio de luz do sol.

Seus ouvidos captaram uma gargalhada familiar. Andou até a porta, a abriu, e viu Alyse correndo em um campo do mais belo verde, acompanhada pela mancha negra de Escuro aos saltitos. Estavam no alto de um morro, que mais à frente descia em um mergulho para um vale. No meio, um rio que ia até onde a vista alcançava.

Alyse deslizava com leveza naquele palco, sua beleza se mesclando à natureza que tornava tudo em uma bela e reconfortante paisagem.

Ela o viu e fez sinal que a seguisse. Reger sorriu e fez que não com a cabeça. Apenas a observou mais, sendo agraciado pelo ar do seu sorriso e a melodia dos seus passos.

Depois que ela acabou, veio andando na direção dele, o gato do lado, como um fiel escudeiro. Ele a abraçou e deu um beijo longo e terno. Um carinho que o completou e fez aquela manhã mais especial.

Eles almoçaram juntos, conversaram com os sinais das mãos e riram de histórias do passado enquanto o sol se punha e a lua começava a dar suas caras. Saíram para um passeio noturno.

Banhados pela luz branca em meio à escuridão, se amaram. Primeiro com leveza e contemplação. Depois, com força e paixão, atenuando as vontades da carne. Deitaram nus em cima da grama, os corpos suados.

Reger afagou a cabeça de Alyse e sorriu.

Ela retribuiu com outro sorriso.

Não precisavam escutar ou falar nada.

Porque naquele momento, a eternidade ganhou vida.

Com o som do silêncio.
Tentando encontrar inspiração para terminar o conto abaixo:
O Som do Silêncio: Parte IV - A decisão
Reger está às vésperas de uma batalha onde decidirá seu futuro. Durante o que podem ser seus últimos momentos com a Espada e com Alyse, ele se pega pensando sobre a validade de suas aspirações. Acompanhe o conto no link a seguir:
http://www.spellrpg.com.br/forum/viewtopic.php?f=24&t=1067
Avatar do usuário
laharra
 
Mensagens: 123
Registrado em: 21 Out 2007, 18:27

AnteriorPróximo

Voltar para Contos

Quem está online

Usuários navegando neste fórum: Nenhum usuário registrado e 0 visitantes

cron