Seguindo a sugestão de Dahak, o segundo capítulo segue nesse post.
CAPÍTULO II
A GargantaELA SE ESTENDIA como uma enorme bocarra, engolindo os raios solares e escondendo-os em algum lugar lá embaixo, dentro das profundezas da terra. Reger se debruçou com cuidado para espiar o desconhecido, tendo seu coração apertado todas as vezes em que pensava como descer para aquele lugar.
– Não dá para descer. É impossível. Não dá mesmo para descer. Não dá repetiu o jovem Lem mais uma vez desde que saíram da cidade. Reger fechou os olhos e suspirou, impaciente com aquela insistência em desistir. Mas ele estava decidido.
– Seremos os primeiros. Podemos fazer isso, Lem – falou Gorkuff em uma voz altiva, cheia de confiança, que Reger invejava. – Imagine o que tem ali embaixo. Ouro e muitas outras coisas, Lem. E seremos os primeiros. Em todos os cantos, das terras ermas ao reino de Jalor, das planícies de Warinsc às ilhas de Inverne, eles cantarão os nossos nomes. Lem, o intrépido; Gorkuff, o sem-medo; Vicory, o rápido; e Reger, o... – , neste momento ele hesitou.
– O mudo – completou Vicory, olhando de sobressaio para Reger, que preferiu ignorá-lo. O mercenário era como uma víbora, olhos negros semi-cerrados sempre que destoava seu veneno da ironia, algo que sabia fazer muito bem. Seu cabelo caía na frente do rosto com uma franja despretensiosa, bagunçado atrás e com o forte cheiro de óleo de gordura de porco, usado para mantê-lo no lugar.
Lem passou a mão direita nos cabelos castanhos, tirando-os da frente da testa e depois coçou o cocoruto.
– Mas vocês vão primeiro. Se vocês caírem e morrerem, eu não desço nem que a vaca da minha mãe volte do inferno e puxe os meus pés. Não mesmo – bradou e então fez um círculo no ar com o dedo, o sinal de Selleni.
A risada de Gorkuff foi como um espirro de cachorro, na melhor comparação que Reger pôde pensar no momento. Feia, mas autêntica o suficiente para fazê-lo sentir um pouco de alívio. Ele não tinha como confiar totalmente naquele homem que acabara de conhecer, mas havia algo no rosto cansado que o tornava razoável.
Reger rasgou sua própria garganta com um sopro, fez mira, e cuspiu n’A Garganta, o lugar onde a selvagem o tinha mandado.
Se é o que ela quer, que se dane, é para lá que eu vou, pensou, enquanto sua saliva viajava vários pés em direção ao que todos chamavam de porta do inferno na terra.
– Vamos indo. O homem vai nos pagar e ele falou que queria um trabalho rápido quando nos chamou – disse Gorkuff, desamarrando a corda de sua mochila nas costas.
– Ele falou mesmo? Eu não ouvi ele falar nada – Vicory tirou sua própria corda, colocou um dedo na boca e levantou para o céu. – Os ventos estão calmos, então eu não acho que os demônios lá dentro estarão agitados. Deve ser quente no inferno, pelo o que dizem, mas os capetas não devem estar tentando sair hoje.
– Você está falando sério, Vic? Tem demônios lá dentro? – perguntou Lem, fitando a grande sombra escura.
– Claro que tem. Sua mãe deve estar se divertindo com eles agora. Quando estivermos dentro, lembre de fazer silêncio para não interrompê-los – zombou Vicory.
Foi muito rápido, mas logo depois de Vicory falar, Reger viu Lem dando um passo para frente, querendo ver um pouco mais longe. O terreno arenoso cedeu e o jovem escorregou para o abismo. Reger gritou, fazendo um berro gutural para avisar a Gorkuff, que estava mais próximo. Ele entendeu e se jogou no chão em direção ao buraco, agarrando Lem pela camisa. Reger segurou Gorkuff e prendeu seus pés em uma rocha, para não ser arrastado junto. Virou a cabeça para o lado e viu Vicory olhando atônito para ele.
– Merda. Me segura, me segura – berrava Lem. Vicory finalmente acordou e correu para amarrar uma corda em uma das imensas formações rochosas que cobriam o lado oeste da Garganta. A outra ponta ele jogou para o jovem, que em pouco tempo estava em terreno seguro novamente.
Passado o susto, todos se sentaram por um minuto, retomando o fôlego. Reger percebeu, sem precisar olhar novamente, que Vicory estava fitando-o. Um olhar que ele sabia o que significava. Um olhar pior do que o de ódio e da gozação. Um olhar que só fazia piorar o silêncio que era sua vida.
Reger o havia visto pela primeira vez quando criança, ao redor de uma das inúmeras fogueiras que iluminavam os campos de Sullastian. Uma batalha estava por vir na manhã seguinte, então os homens se embebedavam e contavam histórias para disfarçar o nervosismo que remexia as tripas e tirava o sono. Reger era o centro das atenções, recebendo piadas dos mais diversos tipos. Em certo momento, não havia como agüentar mais, então ele se levantou e os xingou de bastardos nojentos, filhos de vacas e os amaldiçoou ao inferno. Ou pelo menos pensou que tinha feito aquilo.
– É a sua vez, Reger – falou Gorkuff, acordando-o. Ele amarrou trapos de pano nas mãos e segurou na corda. Tocou no cabo de sua espada, sentiu-se mais leve e então deixou seu corpo se soltar no vazio, para enrolar seus pés na corda. Passou a descer, sem olhar para baixo.
O tempo foi passando e cada espaço vencido era feito vagarosamente. Lá embaixo descia Vicory, enquanto logo acima Lem esperava sua vez de começar. O trabalho de paciência fez Reger pensar novamente naquela noite viva do passado. Logo depois que gritou, um silêncio mais fino que uma agulha espetou seu ouvido. Não só os homens que estavam ao seu redor, mas também os das fogueiras mais próximas o encaravam, com aquele olhar maldito no rosto. O único som que veio depois foi o de um deles. “
Você fala como se as palavras saíssem de sua bunda, garoto”. Alguns poucos risos soaram lentos no campo, mas aquela acabou sendo a última piada da noite. Ainda assim, ela não tinha doído tanto no orgulho do jovem Reger como as anteriores. O pior agora eram aqueles olhares ao seu redor, que às vezes vinham e às vezes iam, meio tímidos, meio curiosos. Todos eles sentindo...
Não vou nem pensar nessa palavra amaldiçoada. Danem-se todos eles que a sentem. Eles não fazem a mínima ideia.
Dentro da Garganta, Reger não podia ver o sol, mas soube pela cor do céu que a noite estava chegando. Ele tocou seus pés naquele chão virgem e sentiu uma agonia crescendo no peito.
Estou perto. Vicory segurava uma espada e olhava para dentro da entrada da caverna que se estendia como um portão para a escuridão. Lá a luz nunca entrava, pois sua posição dentro da Garganta a protegia do sol que nascia. As pedras lá no alto impediam que o sol viesse do oeste. Uma rotina que se seguia todos os dias naquele deserto arenoso das terras ermas.
Quando todos estavam em segurança, e com armas nas mãos, começaram a andar. Reger carregava uma tocha na mão esquerda e sua espada na direita. A descida não tinha sido tão difícil como esperava. Mas alguns poucos esqueletos comidos pela areia indicavam que tiveram sorte.
Nada de ventos, nada de chuvas. Está tudo dando certo.
Se aquele era o portão do inferno, talvez a morte não fosse algo tão ruim assim.
– Dizem que isso aqui foi feito quando um pedaço de Illuni caiu do céu. Mas se foi mesmo, onde ele está? – perguntou Lem, quebrando o silêncio.
– Quem se importa? – falou Vicory, visivelmente nervoso, e então todos voltaram a ficar calados por um bom tempo. O mercenário acendeu outra tocha e eles passaram a andar fitando a passagem que se seguia sinuosa, sempre em frente, sempre para baixo.
Em outro momento, Reger nunca poderia imaginar que estaria bem fundo, dentro da Garganta, indo em direção aos seus segredos. Muito menos que estaria acompanhado. Havia sido muito difícil convencer Vicory, Lem e Gorkuff a seguirem-no, ainda mais porque não podia persuadi-los com palavras tocantes. No entanto, parece que ele pôde sentir algo o guiando quando entrou naquela taverna, na beira da estrada, e sentou perto dos três, no dia que saiu da tenda em Dink-Rabur.
“Você sabe quem eu sou, garota? Sou Vicory, o homem que escalou as montanhas do norte, mijou nos pés dos titãs e voltou vivo para contar a história”, se gabava o mercenário, tentando agarrar na aba da saia de uma das atendentes. “Você pode escalar minha montanha, se quiser”.
“Ou a minha também”, Lem havia se intrometido, para depois continuar. “Diga a ela, Gork, como nós alcançamos a Espada do Mundo, o pico mais alto de todos os reinos juntos. E como nós descemos o abismo da Ilha Virgem, para saquear aquele navio de corsários bem embaixo dos narizes deles. Diga a eles”.
E então, Gork, que Reger acabou conhecendo depois como Gorkuff, contou para todos como eram tão bons naquilo que faziam: escalar e descer de muros, paredes, ou quaisquer obstáculos, fossem eles feitos pelos homens ou pelos deuses.
“E A Garganta? Vocês nunca estiveram lá”, a mulher perguntou, após voltar com novas canecas de cerveja. “Nós já vimos por aqui pequenos diabos, homens de pele cinza, do tamanho de pigmeus, só que rápidos. Eles vêm durante a noite, chupam o sangue de bois e cabras e voltam para as profundezas do inferno, lá dentro, n'A Garganta”, o rosto da mulher ficou obscuro, e por um momento Reger sentiu seu sangue gelar ao lembrar dos olhos rubros fitando-o na escuridão. “Dizem que lá é o inferno e que ninguém que entra pode sair vivo. Se sair, nunca mais será o mesmo”.
“Deite comigo hoje”, falou Vicory, para a garota, “e descerei A Garganta”.
“Desça A Garganta e então deitará comigo”, ela respondeu, saindo logo em seguida sob os uivos e aplausos dos homens que estavam sentados ao redor.
“Depois que eu descer A Garganta vou poder me deitar com quem quiser, então é melhor aproveitar enquanto ainda estou aqui”, gritou Vicory, para o deleite de Lem e o olhar divertido de Gorkuff.
Depois daquilo, Reger havia os interpelado com sinais, fazendo gestos que lembravam ouro e apontando para dentro de sua própria garganta. Uma tarefa desgastante e que ele odiava.
“O que vocês acham? Ele está propondo ouro para que desçamos com ele. E pelo o que entendi boa parte do que encontrarmos lá embaixo”, afirmou Gorkuff.
“E como podemos saber se ele é um homem de palavra?”, Vicory fez uma careta e depois bateu com a palma da mão direita na testa, fingindo surpresa. “Ah, esqueci. Ele não fala, então não é um homem de palavra”. Lem riu da piada, mas Reger já havia escutado-a várias vezes, então os ignorou.
As palavras foram e voltaram, piadas surgiram e morreram, até que Gorkuff convenceu seus amigos. Eles argumentaram que podiam muito bem descer sozinhos e pegar tudo que estava lá embaixo, mas Gorkuff falou que uma espada a mais era sempre bem vinda, principalmente no que diz respeito aos mistérios da terra. E do inferno. Apesar de todos os seus problemas, Reger sabia que sua aparência inspirava respeito e medo. Muitos homens já haviam derramado seus sangues na sua espada por piadas no momento errado. Para a sorte de Vicory, aquele era o momento certo.
Após pensar no mercenário, Reger voltou as atenções ao tempo presente quando o viu correr para as paredes d’A Garganta.
– Olhem isso aqui. É ouro. É ouro – Vicory gritou, esfregando as rochas com um lenço. Os outros correram para ver a descoberta, mas por mais que o brilho dourado chamasse a atenção de Reger, ele não sentiu a mesma felicidade.
“Há muitas outras glórias esperando por você, Reger, se seguir em direção ao norte, dentro d'A Garganta. É lá que tudo isso lhe espera...” As palavras da selvagem não saíam de sua cabeça. Mas ela estaria falando de ouro? Não era possível. Não fazia sentido. Ele perguntara quem ela era. “Alguém em quem você encontrará o som através do silêncio no momento necessário, e que lhe dará de volta algo que foi perdido”.
Ouro nunca iria recuperar seu orgulho.
Foi então que Reger sentiu um leve formigamento no peito. Ignorando os homens, ele continuou a andar, até que a viu. Cravada no chão, a lâmina escura refletindo estranhamente o brilho fosco da tocha, e o punho bem trabalhado em prata e ouro.
– Reger... – o mesmo sussurro dos seus sonhos ecoou em algum lugar na sua mente, mas ele não estava aflito agora. – Reger... – era ela, a espada, quem falava com ele.
Reger não parou para pensar. Sem titubear, puxou a espada negra, que refletia seus olhos cinzentos na lâmina, e ela era tão linda. “Sou eu e você agora, Reger... eu e você”.
– Isso fica com a gente – quem havia falado era Vicory, meio que escondido pelas sombras. Reger se virou e viu que ao seu lado estava Lem, segurando uma machadinha em cada uma das mãos e ostentando um sorriso meio torto no rosto. Reger soltou a tocha no chão e segurou sua nova arma com as duas mãos. E como ela era leve.
De repente, Gorkuff passou correndo entre ambos e parou na frente de Reger, mas virado para seus companheiros.
– Fizemos um trato. Teremos o ouro. Deixem-no com a espada, seus bastardos gananciosos. Não vou sujar meu nome por ela.
– Eu a quero para mim – gritou Vicory, levantando sua própria arma sobre a cabeça, e então uma discussão se iniciou. Mas Reger não escutava mais nada, a não ser aquela voz gelada e penetrante, chamando seu nome.
– Reger... Apenas eu e você, Reger. E ninguém mais. Ninguém...
Não precisou que ela repetisse a frase. Em um impulso que fez seu sangue ferver, ele estocou fundo a lâmina negra nas costas de Gorkuff, sentindo os ossos de sua coluna estraçalharem. Torceu a espada e a puxou. O homem nem gritou enquanto seu sangue e sua alma esvaíram do corpo.
– Sim, Reger...
Lem deu uma corrida desesperada para a frente, e Reger, já esperando, atacou de cima para baixo, com um arco poderoso. O jovem tentou aparar o golpe cruzando as machadinhas, mas o metal escuro ultrapassou a defesa, crânio e só parou na altura do pescoço, com o líquido escuro espirrando no rosto de ambos.
À sua frente, Vicory ficou paralisado por um momento. Depois, se ajoelhou e jogou a espada ao lado. Não olhava no rosto de Reger e choramingava como uma criancinha, murmurando pedidos de piedade. Reger olhou para sua espada negra.
Apenas eu e você?, ele pensou.
– Apenas eu e você – ela concordou.
Sentindo uma vontade forte que o impulsionava à loucura e o gosto amargo do sangue de Lem na boca, ele puxou a cabeça de Vicory com sua mão esquerda e arrancou-a do corpo com um golpe, abatendo-o como uma galinha. Olhou naqueles olhos escuros do maldito e gostou do que viu. Não era o olhar da pena, que tanto o atormentava, e sim do medo e do respeito, um adorno gostoso para seu orgulho.
E agora?, perguntou à sua nova amiga, em meio a um frenesi incontrolável que o fez se sentir invencível.
– Vamos fazer todos ouvirem você, Reger. Todos eles.
Ele não podia esperar uma resposta melhor.