Exponho aqui um conto, talvez alguém note que ela é mais real do que parece...
A noite cai, as folhas cantam no chão uma triste melodia embalada pelo vento e ele é o mesmo que faz vibrar os galhos frágeis, que toca frio e úmido, o rosto de alguém em meio às sombras, seus trajes mais finos acompanham o movimento, de longe é impossível separá-lo da natureza, mas um feixe de luz da lua permite que se veja por segundos aquele que ali se senta.
É jovem, não se diria belo, mas cavaleiro, um guardião encostado nos muros de um grande castelo, sentado sob uma janela, ele vela, recebe o toque do vento, as folhas nos pés, a melodia na alma e sorri, sob tanta adversidade ele sorri, parece não se preocupar com o anúncio do inverno que se aproxima, os dias se seguem e ele ali, noite e dia, mesmo nas claras manhãs ele não se move daquele muro, debaixo daquela janela, e as manhãs são menos frias, as canções de outros lugares, outros mundos, chamam, clamam por sua presença, mas ele agradece e permanece ali, fixo, quase imóvel, quase aquele muro.
Como não pensar nas dores pelo corpo? Como não imaginar estar em outros lugares em outras épocas vivendo aventuras que ele mesmo abdicou?
É de noite que ele se liberta, a brisa trás de terras longínquas as músicas que os trovadores cantam para suas amadas em dueto com o vento, aquelas guardam e protegem o guardião, lembram de sua tarefa, que para muitos é loucura, para ele é simples prova.
Lutas, dragões, cavaleiros, vem e vão à mente do guerreiro, algumas vezes ele se levanta e combate a todos, rasgando sua espada no ar, em meio ao vazio, então ele retorna e se vê só, senta-se e espera, olha para a floresta e esta sorri de volta, sabendo o que ele quer, entendendo suas dores e seus desejos, a brisa entra pela janela acima, o aroma das flores também, a primavera que chega secando a neve dos ombros e umedecendo a terra.
A floresta chama e é atendida, a jovem senhora, musa daquele que vela, surge para olhar as flores e o horizonte, é neste momento que ele se recorda do juramento feito a si mesmo, a ordem que se dera de proteger os aposentos de sua amada, ela que já o notara, mas não da forma que ele desejava, nunca viajou em terras desconhecidas para salvá-la, será que Lancelot já passara por isso? Ele discorda...
Ele a olha de baixo, para o anjo em forma de mulher, para a maestria divina, ou outros adjetivos que ouviu por aí e com muita calma não calou as bocas que pronunciaram... Ele sussurra aquilo que memorizou em seu coração, algo que só os amantes são capazes de guardar:
Se pena por amar-vos se merece,
Quem dela livre está? ou quem isento?
Que alma, que razão, que entendimento
Em ver-vos se não rende e obedece?
Que mor glória na vida se oferece
Que ocupar-se em vós o pensamento?
Toda a pena cruel, todo o tormento
Em ver-vos se não sente, mas esquece.
Mas se merece pena quem amando
Contínuo vos está, se vos ofende,
O mundo matareis, que todo é vosso.
Em mim, Senhora, podeis ir começando,
Que claro se conhece e bem se entende
Amar-vos quanto devo e quanto posso.