O Lixo

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O Lixo

Mensagempor Magyar em 25 Ago 2011, 20:36

... e desci do ônibus, finalmente, a caminho de casa. Uma lixeira revirada indicava os traços da cidade. Um copo plástico vazio e sujo de um compromisso atrasado. Um comprovante bancário de uma vida de dívidas. Uma camisinha usada é o entrave das idéias - um gênio pode ter sido desperdiçado. Bitucas de cigarro de pessoas que anseiam a morte.

Os pensamentos voam longe quando se está cansado. O mundo perde o sentido quando você não é mais escravo do tempo - mesmo que seja nas horas finais de seu dia. O cansaço de uma lata vazia e amassada, esvaziada às pressas. Você pode falar que a culpa é dos demais sujismundos da cidade, mas ainda assim fará parte do lixo. Pode falar que isso é trabalho dos garis, e que está dando emprego para eles, mas isso não faz a rotina deles menos cansativa ou honrosa que a sua. E ainda tem a cara de pau de afirmar que um médico precisa ganhar mais para cuidar da sua saúde - pois ele te salva a vida.

Tem coisas que nunca deveriam ter saído da lata de lixo. Vagando solitárias pela cidade, à espera de uma alma caridosa que lhe conceda o céu. Uma reciclagem, talvez? A vida após a morte num período de tempo indeterminado. Ao menos até a reciclagem não dar mais conta disso.

E te xingam caso você resolva tirar proveito dele, em busca de um bilhete de loteria jogado fora ao acaso, um sofá mal utilizado ou um resto de comida para manter-se vivo. O lixo dos lixos não é quem tira proveito dele... é quem estimula o seu crescimento, sem dar valor ao que desperdiça.

Lixos também contam histórias. Fazem reflexões, criam arte. Você acabou de ler a minha. Também pode contar a sua.
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Re: O Lixo

Mensagempor Heliot em 26 Ago 2011, 09:17

Cara, eu gostei mesmo desse conto. Foi curto, não deu trabalho de ler e teve conteúdo. Você tem escrito bastante coisa por aqui, e dá pra notar que toda essa prática está melhorando seu estilo.

O conto já começa nas reticências, o que mais tarde se justifica pela maneira como o pensamento do narrador trabalha. A escrita toda é a reflexão banal (ou talvez nem tanto) de alguém, que começa de fato com o gatilho da visão da lixeira. Aí começa uma corrente de pensamentos que enxerga os elementos do lixo como índices (fumaça, logo fogo), mas extrapola isso no campo da metonímia (o copo era parte da situação de encontro, a camisinha era parte da relação sexual). Não sei se foi intencional, mas percebi um joguinho de palavras sutil ali pelo meio :"vida de dívidas", que, na pronúncia, tem uma estrutura quase especular ("vida de" = "vidadi", que é "dívida", com a primeira sílaba na outra ponta). Forçando a barra, eu diria que a dívida é tão grande que continuou mesmo depois da vida :bwaha:

Essa parte aqui: "Pode falar que isso é trabalho dos garis, e que está dando emprego para eles,..." me lembrou uma frase que li um dia desses "Você, que joga lixo no chão pra garantir o trabalho dos garis, MORRA, e garanta o trabalho dos coveiros!". Não sei se a minha interpretação foi superficial, mas parece que aqui você (ou antes o narrador) está fazendo uma crítica bem direta aos hábitos da nossa sociedade.

Só que mais à frente:

"Tem coisas que nunca deveriam ter saído da lata de lixo. Vagando solitárias pela cidade, à espera de uma alma caridosa que lhe conceda o céu."

O lixo fica cada vez com menos cara de lixo. As reflexões do narrador já voaram longe demais. Da metonímia, passamos à metáfora. E assim o conto segue até o final, com reflexões cada vez mais gerais e abrangentes. Morte, e o que há depois dela, indivíduo x sociedade, etc.

Finalmente, percebe-se que não apenas as reflexões do narrador partem de algo mais simples para algo mais abrangente, como também a estrutura das figuras que você usa seguem esse mesmo caminho (da "pré-metonímia", que é mais concreta, até a metáfora, que é mais abstrata). Isso faz com que aquilo que ao meu ver é o cerne do conto - a reflexão, mais importante até que a sua visão pessimista do mundo -, seja reforçado por diversas figuras e recursos, deixando o sentido bastante coeso. E você brinda a isso na hora de fechar: "Lixos também contam histórias. Fazem reflexões, criam arte. Você acabou de ler a minha. Também pode contar a sua."

Enfim, cara, eu gostei MUITO.
Parabéns!

P.S.: Agora sim, meu comentário ficou maior que o teu conto :duh:
"Os homens não vivem apenas pela cultura; a grande maioria deles, em toda a história, sempre foi privada da oportunidade de conhecê-la, e os poucos afortunados que puderam vivê-la o podem fazer hoje graças ao trabalho dos outros. Penso que qualquer teoria cultural ou crítica que não se inicie por esse fato isolado de extrema importância, e o tenha sempre presente em suas atividades, provavelmente não terá muito valor"

Terry Eagleton, Teoria da Literatura - Uma introdução
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Re: O Lixo

Mensagempor Magyar em 26 Ago 2011, 14:12

Hiho Heliot!

Que bom que gostou. Eu fiquei apreensivo em postá-lo por se tratar mais de uma reflexão do que um conto em si. Penso ainda em escrever um conto baseado nelas, então registrei-as para não me esquecer - o que acaba acontecendo bastante comigo. Como achei que ficou interessante, resolvi postá-la mesmo assim, um tanto crua. Afinal de contas, tem gente que come carne crua, então deduzi que ler um textículo desses não faria mal a ninguém. rs

Gostei bastante da sua interpretação. Só faltou comentar sobre uma dúvida que, pelo menos eu, fiquei ao terminá-lo: seria o narrador um literalmente um lixo ou só uma pessoa refletindo sobre o lixo? Não sei se essa dúvida surgiu ao lê-lo, mas pelo menos permaneceu em mim ao terminá-lo.

Inté!
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