Tobias

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Tobias

Mensagempor Lanzi em 03 Jul 2011, 13:54

Havia um papel sobre a mesa. O papel sobre a mesa dizia algo. Dizia “Mate-a”. Na cadeira diante da mesa estava sentado um homem. O homem sentado na cadeira diante da mesa se chamava Tobias. Tobias era calvo, tinha mais ou menos trinta anos. Nesses trinta anos Tobias pouca coisa fez de interessante. Tobias se interessava por jazz e filmes italianos. Dos filmes italianos Tobias gostava mais das comédias de Ettore Scola e Mario Moniccelli. Dos filmes de Scola seu preferido era Nós que nos Amávamos Tanto. A simples menção do título era suficiente para encher seus olhos de lágrimas. Tobias não era homem de chorar à toa, todavia, era sempre saudade o principal motivo. Tobias tinha saudades da infância e das coisas que não se realizaram. Entre as coisas que não se realizaram para Tobias estava um amor da infância. As coisas que não se realizavam incomodavam Tobias mais do que quaisquer outras coisas. Essas coisas que não se realizavam, na maioria das vezes, eram obsessões, idéias fixas. A certeza de que não se realizavam por serem idéias fixas incomodava Tobias. Também o incomodava outra certeza; a de que não deixariam de ser idéias fixas enquanto não se realizassem. O excesso de certezas o incomodava. Havia dúvida, entretanto, em como proceder com essas idéias. Nunca procedeu devidamente. Os procedimentos só levaram ao acúmulo de idéias fixas, umas mais fixas que as outras. Soltavam-se à medida que iam enfraquecendo o seu grude. Grudavam a partir do quê? Incomodava-lhe a dúvida. A dúvida de que vivia em um conto de Edgar Allan Poe lhe parecia divertida. Era divertido, dizia para si mesmo, a obsessão de Egeu pelos dentes de sua prima Berenice. A sua obsessão, entretanto, ficava escondida de si mesmo. Tobias se escondia de si mesmo. Tobias escondia suas vontades e seus desejos de si mesmo. Tobias desejava sua prima. Tobias desejava as pernas e os pés de sua prima. Sua prima se chamava Dora. Dora não desejava Tobias. Dora não sabia que Tobias a desejava. Tobias imaginava que Dora soubesse, pelos olhares que lhe enviava enquanto sorria. Seu sorriso desconcertava Tobias, que se imaginava perdido entre suas pernas. As pernas de Dora eram perfeitas. As pernas de Dora eram, para Tobias, uma idéia. Por serem uma idéia, as pernas de Dora eram intangíveis, intocáveis. As pernas de Dora eram uma idéia fixa para Tobias desde cedo e a certeza de que nunca iria conseguir livrar daquela idéia incomodava Tobias. Incomodava-lhe o excesso de certezas. Incomodava-lhe a certeza de que, por ser uma idéia, Tobias nunca iria conseguir caminhar em direção àquelas pernas para tocá-las. Tobias nunca iria conseguir dizer isso a Dora. Tobias convenceu-se de que se Dora morresse aquela idéia morreria com ela. Tobias escreveu “Mate-a” em um papel, para si mesmo. Matar Dora era uma idéia fixa para Tobias. Mataria Dora com um punhal antigo. O punhal era uma herança de família e estava enferrujado. A ferrugem do punhal dizia algo. A engrenagem do pensamento de Tobias estava enferrujada. Tobias convenceu-se de que seria possível matar Dora sem que fosse descoberto. O excesso de certezas lhe incomodava. Incomodava-o também a ausência de alguém que pusesse se opor às suas certezas. Não havia ninguém que pudesse se opor às suas certezas porque escondia suas certezas até de si mesmo. Tobias vivia sozinho. Dora morava com os pais. Tobias iria invadir a casa de Dora pelos fundos. Tobias foi até seu quarto, armado de seu punhal. Tobias viu as pernas e os pés de Dora. Dora viu Tobias na janela e deu um grito. Tobias se escondeu. Dora não sabia quem era que estava espiando da janela, do lado de fora. Tobias fugiu. O excesso de dúvidas lhe incomodava. Tinha dúvida se ela havia discernido seu rosto no meio da escuridão. Havia a certeza de que deveria matar aquela idéia. Matar aquela idéia significava matar a própria a Dora ou perder-se naquele mar de pernas. Perder-se no mar de pernas era impossível. Matar Dora pareceu ser uma saída viável. Conviver com aquela idéia fixa até o fim da vida não pareceu ser uma idéia viável. A simples visão, ou a simples menção de Dora, de seus pés e suas pernas, todavia, e disso Tobias nunca saberia, seria o suficiente para enfraquecê-lo e desistir de quaisquer planos. Fosse alguma armadilha preparada pelo destino ou por ele mesmo, involuntariamente. A perfeição daquelas partes íntimas lhe daria e lhe tiraria o desejo de matar. O desejo de tocá-las ficaria com ele até o fim da vida e se expressaria sempre pela tristeza dos seus olhos. Na tristeza de seus olhos estava expressa a dúvida de que talvez Dora o tivesse visto. A dúvida era outra idéia fixa insolúvel que morreria com ele. Quando velho, depois de tudo, outra dúvida; que outro caminho poderia ter tomado? Havia um papel sobre a mesa. O papel sobre a mesa dizia algo. Dizia “Mate-se”.
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Re: Tobias

Mensagempor Emil em 04 Jul 2011, 00:02

Achei a ideia bem interessante. Mas tem algo com o ritmo. Achei que o ritmo dado por esse encadeamento seria um ponto chave. Talvez ele seja, mas não tenho certeza. E eu odeio incertezas.
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Re: Tobias

Mensagempor Blackbird em 04 Jul 2011, 00:19

Gostei das angústias do Tobias, achei-as muito familiares. Muito mesmo.

Quanto à estrutura do texto, a maneira que você usou níveis, essa progressão encadeada, essa coisa sequencial, deu-me tudo uma boa impressão.
Ele passa muito tempo no âmbito das ideias; mais da metade do texto, na verdade - e só então parte pra ação (que é quando o Tobias espreita a prima). Daí tive a impressão de que a ação sofre algum desfalque, e agora não tenho certeza se ela deveria ser assim ou se deveria ocupar tanto espaço (não necessariamente físico) no texto quanto a parte ideológica/psicológica.
i am jack's complete lack of surprise.


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Re: Tobias

Mensagempor Lanzi em 04 Jul 2011, 22:20

Também achei que o conto falhou na hora em que foi pra ação. Alguém tem alguma sugestão?
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Re: Tobias

Mensagempor Heliot em 05 Jul 2011, 16:28

Um Tobias apaixonado pela prima. É referência bíblica ou só coincidência?
"Os homens não vivem apenas pela cultura; a grande maioria deles, em toda a história, sempre foi privada da oportunidade de conhecê-la, e os poucos afortunados que puderam vivê-la o podem fazer hoje graças ao trabalho dos outros. Penso que qualquer teoria cultural ou crítica que não se inicie por esse fato isolado de extrema importância, e o tenha sempre presente em suas atividades, provavelmente não terá muito valor"

Terry Eagleton, Teoria da Literatura - Uma introdução
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