Mais de um ano depois, concluí o conto. A idéia sempre foi essa mesma abaixo, mas não sei se consegui manter a mesma narrativa dos contos anteriores. Achei que ficou mais leve e mais dinâmica, mas não tenho certeza se ficou favorável para o texto. Bem, se alguém tiver o interesse de comentar, agradeço.
O Retorno a LusitâniaUma turba caminha pelas ruas de Roma seguindo uma pira póstuma carregada por quatro homens. Choros lamentosos e lampejos de desespero dominam o ambiente, enquanto um séquito de preto cerca a urna funerária dentro de um domo gradeado que era levado em uma pequena carruagem puxada por cabras.
O sol começava a nascer e sua luz guiava aquela multidão em direção ao jazigo de Soeiro*. Das edificações vizinhas, curiosos corriam para as janelas e observavam aquela procissão e do alto dos telhados, corvos grasnavam esporadicamente.
Viriato e sua filha estavam ali, logo à frente da carruagem que levava as cinzas de Nênia. Embora todas as lamúrias fossem constantes, o lusitano apenas ouvia aquele corvejar o amaldiçoando. Aquilo o assombrava desde o início de sua vida como soldado de Roma e até hoje ele não havia entendido seu significado.
-- “Malditas aves” – murmurou o soldado. -- “Até na morte de minha amada mulher elas não me deixam.” – reclamou novamente sozinho, embora ouvido por sua única filha, Caliana.
Ela olhou para o alto dos prédios tentando avistar aquilo que seu pai via, mas nada havia lá além de curiosos imundos. Caliana havia herdado o espírito forte de seu pai, mas tinha por sua mãe um tamanho respeito poucas vezes visto de uma filha para com sua genitora. Enquanto Viriato lhe contava histórias de guerras e conquistas, sua mãe lhe dava discernimento e ponderação.
Já na velhice de seus mais de cinqüenta anos, Viriato era ainda mais intensamente guiado por seus preconceitos funestos. Nênia nunca teve voz para conseguir evitar as insanidades cometidas pelo senado quando Viriato o influenciava, mas Caliana tinha e pouco depois de seus quinze anos passou a se interessar pela política de que tanto seu pai lhe falava.
Embora influenciada por seu pai desde a infância e herdeira de sua astúcia e inteligência, ela havia adotado uma postura neutra em defesa de Roma, o que lhe permitia pensar além das intimidações e assassinatos que levaram seu pai ao poder. Em um certo momento, Caliana passou a utilizar de sua lábia para o bem de seu próprio pai e ele a tinha como uma confidente política, sempre recorrendo a seus conselhos quando não via saídas para suas decisões mais contraditórias, visto que temia, com razão, a ira de Cesar Tibério Augusto, o recém assumido novo imperador de Roma.
Caliana estava noiva, prometida para casamento a Caio Tiriano, que era sobrinho em segundo grau do imperador. Tal união não garantia, mas dava aos Soeiros uma estabilidade política muito forte.
O sepultamento de Nênia teve grande comoção no senado, onde Viriato sugeriu uma lei instaurando o Dia Nêniano, onde as cinzas dos mortos devem ser honradas com o hasteamento da bandeira do Império Romano em todos os cemitérios e túmulos. Tal sugestão foi aclamada pelos senadores e muito bem recebida por Tibério, que se encontrava no senado ocultado por um capuz naquele dia.
Tibério já estava ciente da sagacidade daquele senador lusitano e após aquela demonstração de influência, ele removeu seu capuz e o senado fora rapidamente invadido por centuriões que faziam a guarda o imperador. Um tumulto de medo começou, mas logo se dissipou quando o imperador declamou palavras de tranqüilidade. Ele estava ali por um único motivo, escolher seu conselheiro político. Olhando para Viriato, ele disse:
-- “Sagaz com as palavras e veloz em raciocínio. Influencia e encoraja essa corja de abutres enfadonhos, enquanto entoa sua defesa por Roma. É de ti que preciso, prezado Viriato, e aqui eu o proclamo meu conselheiro político. Deixarás o senado e sua cadeira permanecerá vaga até que meu sobrinho case-se com sua filha e tome seu lugar”.
O senador Tárcio imediatamente se opôs, sentindo-se insultado pelas palavras do imperador e pela imposição ao senado de aceitar alguém tão jovem e inexperiente. Imediatamente ele foi acusado de traição a Roma pelo imperador, sendo ali mesmo sentenciado ao enforcamento público, como lição aos demais senadores que se opuserem às suas ordens. Por fim ele disse:
-- “Deixem a cadeira deste verme vaga. Nenhum outro senador o substituirá. Isto é para que sempre se recordem que Roma não admite instauradores do caos”.
Semanas depois ocorrera o casamento de Caio e Caliana. Caio era fraco e influenciável, mas tal condição era vista por Caliana como uma qualidade. E no fim, o senador Caio passou a legislar as causas que sua mulher ditava por de trás dos véus do senado. Eles tiveram um filho, ao qual foi dado o nome de Flavius Primus Soeiro.
Viriato, em seu ápice, tornou-se tudo o que sempre almejou, um dos homens de confiança do imperador, mas ele havia se afastado de sua filha, que era a única âncora que o continha. Influenciado ocultamente por Viriato, Tibério deu início a uma época de terror, espionagens e delações.
O lusitano influenciou tanto as idéias de traição em Tibério que não demorou muito para que o imperador o chamasse uma última vez:
-- “Por três anos eu o escuto e faço valer algumas de suas idéias. Aumentamos o tempo de serviço ao exército. Com astúcia, limitamos os comícios e laçamos o senado. Aumentamos a influência dos pretorianos.” – Viriato sorri, sente-se elogiado. -- “Então, pergunto-te. Deseja me dizer como governar este império? Deseja ocupar este lugar como imperador de Roma?” – A voz condolente do imperador começava a tomar um sombrio ar de ira e seus olhos espremiam ardência, enquanto seu rosto se enrugava rispidamente.
-- “Não, meu imperador. Você está enganado em suas conjecturas...” – Tentou se justificar, Viriato, bruscamente interrompido com a chegado de seis pretorianos ao salão.
-- “Tudo o que eu fiz tem um dedo seu. Tudo o que realizei possui sua influência. Sou acusado de assassino por meu povo e o senado critica meu governo. Meus soldados me temem, mas não me respeitam. Então, como posso eu estar enganado a seu respeito?” – Com o tom vociferante e esbraveja esta última pergunta, e se acalma.
-- “Homens, levem este homem. Anunciem que será enforcado não por traição, mas por tentar tomar para si o poder dado ao imperador romano.”
Viriato tenta emitir um último pedido de clemência, mas foi ferozmente agredido pelos soldados quando tentou se aproximar de Tibério. Em meio às pauladas e chutes ele desmaia e é arrastado.
Dias depois a notícia de seu enforcamento se espalha por toda a capital. Caliana, ao saber, se entristece profundamente, pois em seu íntimo sabia que este fim era previsível. Nada ela podia fazer quanto a ordem do imperador, mas ao menos ela teria permissão para unir as cinzas de seu pai com a sua mãe.
No dia de seu enforcamento, a Viriato não foi dado nenhum direito de falar. Morreria sozinho em meio a multidão que o assistiria. Em pensamento ele amaldiçoou:
-- “Tibério. Alguém o matará assim como tu me mataste, mas antes disso sofrerá da solidão que sofro agora. Isto eu te prometo, pois não lhe deixarei enquanto não estiveres morto em agonia”.
Do alto um corvo avista uma sacada de mármore, onde pousa. Ele olha curiosamente um homem que se aproxima. Tibério vê aquela figura negra e alada em sua sacada e a espanta. Ao se aproximar da mureta ele avista corvos por toda Roma, pousados às centenas em vários telhados.
EpílogoMeses depois de Tibério ordenar a morte de Viriato, ele determinou que seu sobrinho se divorciasse de Caliana.
A filha e o neto de Viriato foram exilados de Roma e seus diretos de família foram todos negados, assim como os relatos sobre os Soeiros eliminados dos documentos da época. Eles seguiram viagem para a cidade de Balsa, na Lusitânia, mas apenas Flavius completou a jornada, quase dois anos depois.
Tibério, vários anos depois se auto-exilou e seu reinado apático foi encerrado com seu assassinato em 37 d.c. por seu sucessor, Calígula.
*Neste ponto, Soeiro nada mais era que o sobrenome dado a Viriato e sua família, quando este assumiu sua cadeira no senado, onde os demais senadores sugeriram seu novo batismo em honra a Roma.