O Moscovita

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O Moscovita

Mensagempor Lanzi em 01 Abr 2009, 10:34

O Moscovita

Lembro-me de quando ele entrou pela primeira vez na loja. Dizia se chamar Dario Stirbulov, e trazia consigo uma bengala. Trazia também um ar curioso e elegante, e olhava com muita curiosidade todas as prateleiras da loja, mas olhava com atenção especial, como viemos a perceber depois, as prateleiras da seção de importados russos. Entrou com pouca cerimônia e arranhou um português carregado de sotaque. Eu, na época, não reconheci de onde vinha esse sotaque, mas meu pai me dissera se tratar de russo, e, no momento, achei muito estranho, pois nunca havia visto russos no Brás e já era uma ocasião especial deparar-me com um naquela região, além do que, naqueles anos, a ditadura vivia a maior das ascensões e a Rússia, ou União Soviética na época, assim como o Leste Europeu eram deverás exóticos para nós, ainda que tivéssemos uma loja de importados e raridades do mundo todo. Rapidamente ele assentou-se e criou vínculos com a comunidade local, pois como se sabe, o brasileiro é um povo hospitaleiro.

Dario, em sua primeira visita à nossa loja, disse estar em busca de importados russos, dos mais raros, e soube, por intermédio de algum outro cliente na cidade, do nosso estabelecimento que se tratava do melhor negócio da região. Com o tempo tornou-se um cliente assíduo e todas as semanas nos visitava sempre para adquirir algum artefato russo, de sua “antiga terra”, assim o dizia. Tal religiosidade, pois também era muito pontual, nas visitas e nas aquisições, serviu para torná-lo ainda mais emblemático. E, aos poucos, deixou de notar as outras prateleiras, importados de outros países, e passou a ir correndo, direto, sempre que entrava, aos importados russos, ávido por novidades. Dizia meu pai que se tratava de saudade, e os outros funcionários, sempre preocupados com a vida alheia, diziam, por sua vez, que algumas pessoas, quando muito longe de seus países, buscam todo tipo de item que os faça recordar de sua terra natal.

No convívio diário com os outros moradores da vizinhança, através da circulação de notícias e fofocas, soubemos que ele morava no Condomínio das Nações, uma área fechada, muito rica, num bairro distante. Contribuiu para a estranheza de sua pessoa o fato de que ele morava, coincidentemente ou não, na Rua Rússia. Pensamos, todos da loja, que havia escolhido tal locação de propósito, para lembrar-se de sua terra mãe e anestesiar a angústia da saudade que lhe corroia por dentro. Eu era criança, e nunca havia passado tanto tempo longe de casa, portanto não conhecia a saudade propriamente dita e a situação toda me parecia exagerada.

Por eu ser criança, também, nunca entendi os conflitos ideológicos que se propagavam nos ares daquela época. Discussões irrompiam o tempo todo, mas Dario nunca estava envolvido com as mesmas e o fantasma do comunismo, apesar de assombrar toda a nação, nunca lhe pareceu familiar e dele nunca tomou conhecimento. Conforme as especulações que viriam a se formar desse comportamento e conduta, Dario tratava-se de um exilado de seu país, que viera buscar asilo e refúgio político no Brasil. Mas, como todo boato que morre por insuficiência, nunca lhe fora perguntado e, portanto, nunca fora confirmado.

E, talvez, por toda a incerteza dos boatos, a minha curiosidade a respeito de suas motivações foi se aguçando e atingiu o pico quando, após ter comprado um antigo sabre, que havia sido usado por um alferes cossaco na Batalha de Cercora, muito caro, diga-se de passagem, um dia depois voltou à loja, todo ferido, acusando meu pai de ter lhe vendido uma relíquia como russa, quando na verdade era ucraniana. Após o fracasso da aquisição – surpreendente, pois meu pai conhecia com clareza e discernimento as formas de cultura do leste europeu -, fomentou-se, com mais criatividade, outras tantas teorias mirabolantes sobre a sua natureza e ocupação, pois também não se entendia de onde retirava tanto dinheiro – alguns o aludiam a um magnata do caviar, outros, a um traficante internacional de artefatos e raridades, que revendia para um rico comprador russo, daí a natureza de seus ferimentos. Quando inquirido sobre alguma moléstia, no entanto, negou sempre de pés juntos, e com aquele sotaque que lhe era típico, não tanto carregado como antes, pois um ano já se passara desde que se mudara para o Brasil.

Aproveitando a ausência de meu pai e dos funcionários da loja, num dia em que ele nos visitara para comprar uma relíquia que havíamos recebido recentemente – um casaco siberiano -, resolvi perguntar-lhe o motivo de todas aquelas aquisições, pois os preços aumentaram por sua causa e a dificuldade de repor o estoque também. Disse-lhe, com toda a educação e ingenuidade que me eram possíveis na época:

- Sr. Stirbulov, por que você só compra coisas da Rússia?

Ele deu um sorriso franco como se compreendesse minha inquietação.

- Você quer mesmo saber? – disse se ajoelhando ao meu encontro, e por um momento eu hesitei, porque, apesar dele sempre nos ter parecido confiável e sem nenhum antecedente criminal, como fora dito pelos policiais, eu, por percorrer caminhos perigosos na cidade, recebia recomendações de não lidar com estranhos e minha esperteza sempre me garantiu certa imunidade. Mas com a curiosidade não se deve brincar e eu, sabendo que meu pai demoraria em voltar e tendo o seu aval para ir e vir naquelas cercanias, respondi-lhe um sonoro sim, e ele me levou até seu carro, de uma marca obscura da Rússia, do qual usamos para chegar até sua casa, no condomínio.

Entramos em sua casa, muito grande e bela, e adornada, em todas as paredes, com as artes da cultura russa. Havia, repousada numa das paredes, uma balalaica e aos seus redores manequins vestiam trajes típicos do folclore russo. Levou-me, após subirmos uma escada, até seu quarto que, apesar de imenso, tinha toda sua dimensão ofuscada por uma brilhante bandeira da Rússia que ficava pendurada sobre a superfície da parede, parecendo esconder algo de muito valioso que se revelava através do alto relevo que incutia na flâmula.

- Tem certeza que deseja saber? – perguntou-me novamente, pela última vez.

Respondi-lhe que sim e ele andou até a bandeira e levantou-a revelando, assim, algo que me faz estremecer até hoje cada vez que o busco em minhas memórias.

Enraizado, incrustado na parede havia a forma de uma cabeçorra oval, quase de meu tamanho, carnuda e monstruosa, de uma coloração rubra, mas escura. Tinha dois olhos aterrorizantes, embora estivessem cerrados sob duas pálpebras pesadas. A bocarra, que cultivava o aspecto mais terrível daquela criatura toda – embora criatura não fosse, pois só a cabeça era visível – se fechava em imensos e pontiagudos dentes, que saltavam para fora da gengiva e dos lábios. A respiração era tranqüila e parecia estar dormindo, mas do nariz se exalava um cheiro fétido, quase mefítico. Lembro-me com exatidão da descrição daquele bicho, e lembro-me, com mais eficiência, do que senti naquele momento; um profundo pavor que qualquer criança de doze anos sentiria. Caí ao chão e comecei a chorar desesperadamente. Neste ínterim Dario cobriu a cabeça de volta com a bandeira e veio me acudir, levando-me para fora do quarto, para não acordar a cabeça. Disse-me, após eu me recuperar:

- Entende agora? Ela se alimenta de todas as raridades, artefatos e relíquias que compro na loja de seu pai. Já tentei alimentá-la com coisas de outra nacionalidade, mas parece que sua dieta é exclusivamente moscovita. Se lhe dou algo que não é de origem russa ela regurgita para cima de mim com toda a violência.

Não fui capaz de lhe dirigir palavra alguma, pois até o resto da semana fiquei petrificado. Levou-me de volta para casa, em silêncio. E conforme retomava minha consciência, ao longo dos dias seguintes, ia formulando toda sorte de perguntas a fim de inquiri-lo a respeito daquele monstro. No entanto, apesar de esperar algumas semanas para revê-lo, Dario nunca mais retornou à loja, nem ao bairro. O que me faz pensar que o objetivo final daquela cabeça era degustar o próprio russo, vivo. Mas, se ele era o único que a alimentava, então, depois de ter se suicidado, o que teria restado daquela cabeça? Nunca criei coragem o suficiente para voltar àquela casa.

Também nunca contei o incidente para ninguém e a figura de Dario morreu ao longo dos anos, conforme se parou de falar nele, e sua ausência transformou-se num vácuo confortável. As especulações e teorias sobre sua natureza foram desaparecendo também. Boatos, de início, sobre sua partida também não deixaram de serem tão criativos quanto os de sua vinda. E, apesar de toda a criatividade por parte dos meus concidadãos em criar teorias sobre sua ida e vinda, nunca iriam acreditar em mim, pois embora fosse verdade, e baseada em experiência própria, aquela história era muito mais absurda e criativa que qualquer boato e só poderia ter saído mesmo da imaginação fértil de uma fantasia de criança.

Acontece que, às vezes, a realidade é mais absurda que nossa imaginação...
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O Moscovita

Mensagempor Allefcapt em 01 Abr 2009, 17:56

As regras são as seguintes:

1 - DO FORMATO:

1.1 - Cada usuário tem direito a enviar apenas um conto, identificado ao seu nickname com o limite de 1500 palavras.
Se esse limite for excedido, o participante será penalizado em um voto para cada 20 palavras excedentes. O título do conto não está incluso nesse limite e o tema é livre.
1.3 - Os contos deverão ser enviados para o e-mail concursocontos@spellrpg.com.br e postados em seguida no subfórum aberto para o concurso até 20 de abril de 2009.
Uma vez enviados para o e-mail ou postados, os contos não poderão sofrer alterações. A postagem deve ser idêntica a cópia que teremos recebido previamente. Do contrário, o trabalho será desclassificado.
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